O novo volume de poemas de Carpinejar reúne dois livros que se contrapõem e se completam ao fazer o registro biográfico e sentimental de um personagem que se configura na escrita dos poemas em primeira pessoa. No primeiro, Como no céu, o leitor viaja, de espanto em espanto, através de flashes que têm por objeto esse personagem e sua mulher. Estes vão se desenhando por meio de oposições de caráter, comportamento e gostos, elementos que registram o relacionamento entre os dois — uma convivência que atravessou suas vidas. Agora, no momento em que se escreve/lê essa “biografia”, a mulher é vista recolhida ao lado do homem, como um carretel, como um corpo que “já passou pelos filhos” que “já passaram pelo seu corpo”.
O tempo vivido, tal qual o tempo poético que emana dos poemas é como “O relógio na cozinha, pupila de faca”, um tempo que paira sobre esse olhar, que faz um balanço desse convívio e constata, lacônico, que “Quando não dividi a verdade contigo,/ a verdade me dividiu”. O balanço de uma vida, por cruento que seja, se faz de confissões patéticas como a que avisa que “Completo as palavras cruzadas/ com a ajuda dos resultados”. A certa altura, já entregues, temos certeza de que estamos de novo percorrendo o estilo marcante de Carpinejar, um estilo de escrita que brinca com a fantasia da autobiografia — “Fui duas palavras desfeitas/ para formar outra” ou “Meu rosto é estranho, metade/ elefante, metade cavalo,/ como se não tivesse sido acabado”. Ao mesmo tempo, esse estilo nos dá uma poesia inesperada, nascida de um arguto senso de observação, que pode ser expressa no poema seguinte: “Minha mulher/ não é seu nome e uma data/ inscritos na aliança./ Minha mulher é o sabão seco/ ao redor do anel./ Quando andamos de mãos dadas, / a aliança faz espuma”.
Passada toda uma vida, descobre-se que ela é sempre menor do que se imaginou, apesar de extravasar intensidade. Percorrendo esse balanço, vamos, de laconismo em laconismo, repassando descobertas como a de que “Entrei e saí do paraíso/ e não notei diferença./ A mesma garagem para dois carros/ e uma bicicleta”. Tudo isso acaba como pertinente para o homem. Afinal, “Marcado para nascer no sábado,/ a mãe voltou frustrada do hospital./ Passei o final de semana/ no litoral do ventre./ Comecei minha vida/ numa segunda-feira,/ como quem inicia um trabalho”.
O segundo livro, Livro de visitas — com numeração de páginas decrescente ou iniciado de trás para frente, como se queira —, sai desse relacionamento do casal para a rua, que seria “tão-somente/ uma casa destelhada”. Nele se repassa a memória da infância, entrelaçada com o convívio narrado anteriormente, como se, com isso, se buscasse uma aeração das impressões daquela intensidade vivida; como se o personagem perseguisse outro espelho para se ver e, mesmo assim, se encontrasse engolido pelas minúcias do cotidiano, exigindo ar para respirar (“Eu sofro de asma” e “De vez em quando, procuro o litoral/ para o oceano devolver nosso tamanho”).
Constata-se, no entanto, que nesse outro espelho também falta ar mediante o fato de que “Sou muito dividido/ para me reunir no domingo/ em família”, família que “é como câncer”, disseminado por separações e brigas por heranças. Esse personagem cindido acaba por se salvar quando encontra algumas raras levezas em fugazes lances de olhar, expressos em versos como “As borboletas são flores com abelhas dentro”.