Podres poderes

Em seu mais recente romance, "Nada digo de ti, que em ti não veja", Eliana Alves Cruz inova ao narrar a vida de uma mulher trans em plena Inquisição
Eliana Alves Cruz, autora de “Nada digo de ti, que em ti não veja”
23/02/2021

Um dos primeiros romances históricos brasileiros que trouxe uma prostituta como protagonista é A vida em flor de Dona Beja (1986), de Agripa Vasconcelos, no qual a autora relembra a história de Ana Jacinta de São José. Nascida em 1800, em Minas Gerais, ela foi amante do ouvidor do rei Dom João VI. Há também o livro de Heloísa Maranhão, Rosa Maria Egipcíaca da Vera Cruz, a incrível história de uma escrava, prostituta e santa (1997), cuja heroína real nasceu em 1719 e chegou a escrever o livro que a tornou a primeira escritora negra do Brasil, segundo o antropólogo e historiador Luis Mott.

Recentemente, Eliana Alves Cruz parece ter retomado essas histórias para imaginar uma prostituta negra no século 18, mas inova quando traz para sua narrativa a personagem que é também uma mulher trans. Em Nada digo de ti, que em ti não veja, conhecemos Vitória, cuja alcunha é o quinto nome que a personagem recebe em vida. Ela nasceu no Congo e a princípio era conhecida pelo nome masculino de Kiluanji Ngonga. Depois, “quando entenderam sua verdadeira natureza”, passou a ser Nzinga Ngonga, então “virou sacerdotisa e era chamada de Nganga Marinda”, porém “desembarcou na América sequestrada dos seus e a batizaram como o homem Manuel Dias”.

A alforria de Vitória foi conquistada por meio de suas adivinhações. Juntando isto à prostituição, ela encontrou um meio de garantir a própria sobrevivência. Mas o livro mostra que, embora não seja aceita pela sociedade, Vitória consegue ser tolerada devido à escassez de médicos da época. “Era a ela que recorriam por seus poderes de curar espinhela caída, bicheira e quebrantos; dor de dentes, obstruções e carnes quebradas (…).”

No entanto, a jovem apaixona-se por Felipe Gama, filho de seu antigo senhor, Antônio, cuja família era de mercadores e judeus convertidos, os chamados cristãos-novos. Os enamorados encontram-se recorrentemente, nutrindo uma paixão às vezes turbulenta pelo fato de Felipe estar prometido a Sianinha Muniz — também de uma família de novos cristãos, com parentesco com os Gama — e achar que seus desejos por Vitória eram parte de um “pecado profundo”.

Simultaneamente a esses acontecimentos, chega ao Rio de Janeiro, em 1732, o frei Alexandre Saldanha Sardinha, escolhido pelo tribunal do Santo Ofício para “verificar os fiéis deste lado do oceano”. O frei logo deverá ir também à Vila Rica, em Minas Gerais, a fim de fiscalizar os gastos com as construções no local da febre do ouro.

A Inquisição
Com a chegada do frei, a obra de Eliana Alves Cruz entra em uma temática pouco comentada da história brasileira: a Inquisição e, aliada a ela, a perseguição aos judeus no Brasil. Na narrativa, as famílias Gama e Muniz representam bem esses aspectos, pois apesar de seus ancestrais terem chegado no Novo Mundo há quase 200 anos e, desde então, atuado como bons cristãos, seus herdeiros ainda conservam as tradições e práticas judaicas secretamente, no interior das casas.

O ocultamento da fé era comum. As capitanias do nordeste e a do Rio de Janeiro continham uma população considerável de cristãos-novos vindos de Portugal. Isso porque a colônia representava uma forma de escapar do Santo Ofício, visto que o Brasil era longe e não possuía tribunal próprio. Porém, não demorou para que os esforços da igreja se concentrassem no Rio de Janeiro. Conforme a autora explica em seu livro: “Onde havia muito dinheiro, aí estava a Inquisição”.

Na dissertação Inquisição e cristãos-novos no Rio de Janeiro: o caso da família Azeredo, de Monique Silva de Oliveira, mestre em história, fica claro o quanto a Inquisição focava nos judeus. Ela conta que a partir dos dados coletados “foi possível constatar que do total de processados do Rio de Janeiro ao longo de três séculos (16 a 18), cerca de 88% incorreram no crime de judaísmo”.

Paralelamente à perseguição, Eliana Alves Cruz nos chama a atenção para o quanto a prática da “delação premiada” era recorrente na igreja. Com o chamado “pagamento de pecúnia”, tornou-se comum que os delatores que estivessem associados aos crimes fossem perdoados caso os denunciassem. Eles ainda recebiam “recompensas em dinheiro”. Já se o acusador não estivesse envolvido, poderia ficar com metade dos bens do acusado dependendo da denúncia.

Assim, logo diversas pessoas denunciam as famílias Gama e Muniz. A exemplo da perseguição que sofriam, os personagens de origem judia chegam a encontrar na entrada das casas porcos mortos com uma placa pendurada no pescoço com a palavra “marranos”, que, segundo o livro, “era como chamavam maldosamente os judeus”. Em conjunto, Felipe Gama é ameaçado por uma carta anônima que o acusa de sodomia e pederastia, ou seja, homossexualidade. A prática era considerada tão grave que na época podia ser punida com as galés, o degredo ou a morte, conforme mandavam as chamadas Ordenações Filipinas — compilação jurídica de códigos que constituíram a base do direito português e que estiveram vigentes no Brasil até a promulgação do primeiro Código Civil brasileiro, em 1916.

Além de esmiuçar as leis da época, em Nada digo de ti, que em ti não veja, a autora também se preocupa em denunciar as incongruências dentro da própria igreja, pois frei Sardinha desenvolve um caso amoroso e, intimamente, justifica o pecado para si como uma forma de obter informações sobre os rituais judaicos praticados pelas pessoas a sua volta. Dessa forma, a escritora cria um personagem complexo emocionalmente, que age como se suas infrações fossem feitas em nome da lei ou, no caso, de Deus.

O ouro
Diante das investigações do Santo Ofício, os Gama decidem mandar Felipe para acompanhar o frei em uma excursão de 600 homens até Vila Rica, com o objetivo de conquistar a simpatia da igreja. Já os Muniz enviam o escravo Zé Savalú com o mesmo propósito e também para que ele seja afastado de Sianinha, a sinhá com quem Savalú cresceu e que tem profunda inveja de seu amor pela também escrava Quitéria. Sianinha havia começado a arquitetar formas de “castigá-los por excluí-la do grupo, pela ousadia de tentarem ser mais livres que ela”. A vida da moça se resumia a ver o mundo apenas durante compromissos religiosos ou pelas chamadas janelas com treliças, que permitiam às mulheres “verem o que se passava fora, sem que os de fora pudessem identificar o que ocorria dentro”.

A esse momento da narrativa, o leitor é afastado do Rio de Janeiro para acompanhar Felipe, Savalú e frei Sardinha no perigoso caminho até as Gerais. Nos capítulos seguintes, o romance focará no personagem Savalú, que concorda em partir diante da secreta perspectiva de conseguir a alforria para si e os seus, mas no caminho lembra-se das previsões de Vitória e descobre que os planos pessoais de enriquecer com as minas de ouro jamais se concretizarão.

A autora revela ao leitor e ao personagem a dura realidade dos escravos em Vila Rica: “Nas cavernas, apenas pretos baixos. Eles trabalham nas lavras e alguns são separados só para emprenhar as pretas baixas que vão parir outros pretos baixos, entende? Os altos, os como tu… os como eu… eles vendem pra lavoura em algum sertão paulista ou castram. Castram feito boi — disse Gabriel… Gabriel Boi”. Como se não bastasse isso, o uso de tochas com óleo de baleia soltava uma fumaça tóxica que matava de doenças pulmonares, e o barulho alto das escavações ensurdecia, enquanto o pó e os estilhaços cegavam os escravos, a maioria crianças que não sobreviviam até a fase adulta.

Com tantos detalhes históricos e subtramas, uma das poucas falhas da narrativa de Nada digo de ti, que em ti não veja é não ter mais páginas para contar seu enredo. Em parte, pois em certos momentos o livro é um pouco corrido e, em parte, porque o leitor facilmente despenderia mais tempo acompanhando essa trama.

Nada digo de ti, que em ti não veja
Eliana Alves Cruz
Pallas
200 págs.
Eliana Alves Cruz
Escritora e jornalista, nasceu no Rio de Janeiro (RJ) e já teve contos publicados em edições dos Cadernos Negros. Seu primeiro romance, Água de barrela (2016), venceu o Prêmio Oliveira Silveira, promovido pela Fundação Cultural Palmares; além da Menção Honrosa do Prêmio Thomas Skidmore, organizado pelo Arquivo Nacional e a Brazilian Studies Association. Já seu segundo romance, O crime do cais do Valongo (2018), foi semifinalista do Prêmio Oceanos 2019.
Bruna Meneguetti

É escritora e jornalista. Publicou os romances históricos O céu de Clarice (2017) e O último tiro da Guanabara (2019) e é coautora do livro-reportagem Corações de asfalto (2018). Faz parte da Plataforma Vida de Escritor. Mantém o site https://www.brunameneguetti.com.

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