Com fortuna crítica que junta quase seis mil livros (sem contabilizar as outras inúmeras pesquisas não publicadas), Pessoa é objeto de apenas quatro biografias — sendo a mais recente destas Fernando Pessoa: uma quase autobiografia, escrita pelo advogado pernambucano José Paulo Cavalcanti Filho. As razões mais visitadas para explicar essa discrepância são os enigmas em torno da vida do poeta e a presumida insignificância do que se esconde sob as sombras. O próprio Robert Bréchon, autor da terceira (Etrange Etranger, cuja versão em espanhol está em catálogo no Brasil), logo na Advertência anuncia que contou “uma vida mais rica em obra do que em acontecimentos”, repetindo as palavras de Teresa Rita Lopes, outra especialista.
Terminada a busca do homem por trás do poeta, Cavalcanti Filho realmente não chegou a eminentes feitos ou revelação digna de escândalo. Em suas mais de 700 páginas, o leitor encontra a angústia de Pessoa com o tamanho de seu pênis, especulações sobre a homossexualidade “enrustida” do poeta, uma explicação diferente para a sua morte… Jô Soares e Carlos Nejar, no programa de entrevistas da Globo, comentaram que nenhum interesse pode haver em detalhes como o dote sexual de um escritor. Opinião decerto partilhada com muitos outros leitores. Mas registros desse tipo são mesmo sem valor, incapazes de enriquecer as interpretações sobre a obra pessoana, por exemplo?
A partir de rótulos como “pós-modernidade”, as muitas e díspares reflexões realizadas nas últimas décadas têm apontado para um homem ainda mais cindido, em crise de identidade, estrangeiro onde quer que esteja, carregando sobre os ombros a incomensurável soma de suas angústias cotidianas. Faz tempo que as grandes experiências e ações vêm sendo substituídas pelo solitário drama da consciência, pela reflexividade desse sujeito moderno, demasiado humano.
Dialogando com seu tempo, as narrativas literárias podem trazer personagens que fazem a barba e caminham pelas ruas de Dublin, ao invés de conquistarem terras e povos. Também os historiadores (apesar de mais reticentes) têm enfrentado os desafios de trabalhar sobre o cotidiano desse homem moderno, de fazer pontes entre as trajetórias individuais ou de pequenas comunidades e as análises macrossociais. Herdeiros de poetas que se dedicavam a façanhas de heróis mitológicos ou imperadores, agora eles precisam lidar com novos conceitos e técnicas, pois os objetos de análise podem muito bem ser os campeonatos de bola de gude de uma rua qualquer do Brasil, ou os transtornos de ansiedade de um cidadão lisboeta — seja este um operário ou um intelectual traduzido para dezenas de idiomas.
Jô Soares e outros leitores talvez se decidam por ignorar o fato, mas ter um pênis muito pequeno (a ponto de ser ridicularizado, chamado de “clitóris” por amigos e desafetos) pode sim atormentar um escritor e influenciar a sua obra, tanto quanto as dúvidas sobre sua sexualidade, os drinks de cada noite insone, a conjunção dos astros. Convicto disso é que José Paulo Cavalcanti Filho dedicou uma década ao seu livro, com várias horas de trabalho diárias, quatro viagens por ano a Portugal, entrevistas com familiares, consultas a especialistas de diversas áreas, compras de bilhetes, manuscritos, livros, gravuras e outras peças (como os famosos óculos de Pessoa). O biógrafo tem repetido que escreveu a obra que queria ter lido há tempos, onde a criação não apaga o criador, que não ignora sequer o jeito como o poeta pendia a cabeça ou sua mania de sentar sobre as mãos.
A motivação inicial, no entanto, não foi esse debate sobre a relevância da vida “real” de Fernando Pessoa. O advogado pernambucano explica logo no prefácio que pretendia saber quantos eram os heterônimos de Fernando Pessoa, confirmar suas suspeitas de que havia bem mais que os 72 até então comentados. “Foram pelo menos 127, conformando o doloroso mosaico de seu verdadeiro rosto — se é que tinha um, apenas.” O resultado dessa pesquisa já valeria toda a entrega, mas a garimpagem lhe deu a certeza de que era possível desvelar também o homem sob aquelas tantas máscaras, oferecer uma nova visão do poeta. “Ou talvez melhor, uma quase autobiografia.”
É que Pessoa escreveu, pela vida, perto de 30 mil papéis, tendo quase sempre, como tema, ele mesmo ou o que era próximo — a família, os amigos, admirações literárias, mitologia, ritos iniciáticos. Algo equivalente a quase 60 livros de 500 páginas. Tantas que, em um momento mágico, percebi poder contar sua vida com essas palavras.
Um mês após o lançamento, a quarta biografia (as anteriores foram de João Gaspar Simões, Ángel Crespo e o já citado Bréchon) tem não só oferecido um novo olhar sobre Fernando Pessoa, mas também contribuído com debates como este, do crescimento da produção de ficções e pesquisas históricas sobre atos menos extraordinários — os próprios estatutos do real e do ficcional são motivos de muitos estudos recentes. Nada que se compare, todavia, à polêmica em torno de uma afirmação insistente de José Paulo Cavalcanti Filho…
Sem imaginação
“Claro que é uma frase de efeito, que estou apenas chamando atenção para o fato de Pessoa ter criado sempre a partir de coisas que estavam em seu redor, muito perto”, explicou por telefone o biógrafo, que nitidamente se diverte com a celeuma decorrente da assertiva, que “Fernando Pessoa era um poeta sem imaginação”.
Bachelard percebeu na poesia “uma metafísica instantânea”, diferente de todas as outras, por dispensar prólogos, métodos, provas. Que tem necessidade, no máximo, de um prelúdio de silêncio. Esse silêncio que Octavio Paz (em O arco e a lira) chamou de “margem da linguagem”, lago da página em branco onde as palavras aguardam, submersas: “Eis o poeta diante do papel. É indiferente que tenha plano ou não, que tenha meditado longamente sobre o que vai escrever ou que sua consciência esteja tão vazia e em branco como o papel imaculado que ora atrai ora o repele. O ato de escrever encerra, como primeiro movimento, um desligar-se do mundo, algo como lançar-se no vazio”, escreveu o poeta-crítico mexicano.
Cavalcanti Filho decerto não ignora essa interdição necessária ao fazer poético, mas tem como meta provar que a fonte aonde bebe Fernando Pessoa antes desse movimento primordial são pedaços de seu cotidiano, amigos e lugares, nomes e números, porções de ocorridos mais ou menos banais. Mapeando a obra poética, portanto, procurou os correspondentes “reais” da biografia de Pessoa. Apanhou os cacos do mosaico, referências existentes fora, antes e além daquele lago, daquela margem da linguagem.
É até espantoso o alvoroço que a frase causou. Como julgar que um leitor tão apaixonado pelo seu personagem (um poeta) fosse tão ingênuo a ponto de negar a imaginação sempre requerida em qualquer processo criativo, independentemente da argamassa utilizada para edificar a obra. Um levantamento do material publicado na imprensa e veiculado na mídia eletrônica, contudo, demonstra que muitos dos jornalistas e demais comentadores preferiram levar a afirmação ao pé da letra.
Resumindo, os poemas são tecidos com uma impressionante quantidade de dados verdadeiros, do cotidiano de Pessoa. Mas não bastava propor a tese, o autor necessitava e foi à caça dos documentos e testemunhos que a comprovassem, numa empreitada monumental, sem dúvida. Tanto assim que ele admitiu: o volume de páginas poderia ser bem maior. Até porque um dos quatro “atos” é quase um livro à parte (mais aparentado com o tom ensaístico de Bréchon), onde os temas são a escrita pessoana e as biografias dos seus tantos heterônimos.
Essa convivência com milhares de textos de Pessoa levou a uma opção que pode desagradar parte dos leitores: uso abusivo de citações entre aspas. O próprio Cavalcanti Filho explica no prefácio qual a sua intenção: “[de dizer] o que eu queria dizer, como se fosse ele escrevendo — posto serem mesmo dele, ditas palavras. (…) Este livro, pois, não é o que Pessoa disse, ao tempo em que disse; é o que quero dizer, por palavras dele. Com aspas é ele, sem aspas sou eu”.
São tantos os excertos que resultou noutro agravante, além do possível comprometimento da fruição do texto, as citações ficaram “sem indicação das fontes, por serem numerosíssimas — salvo em poemas, por títulos (ou datas) e heterônimos que o assinam”. Os pesquisadores decerto terão problemas para utilizar esta biografia, porque a presença maciça de citações sem créditos inviabiliza o emprego científico. Mas são decisões autorais legítimas e que findam destacando a obra, garantindo-lhe, no mínimo, um lugar original nesse seleto grupo de biógrafos de Pessoa.
Após uma década de sonhar com o livro e outra de realizá-lo, muitos amigos de José Paulo Cavalcante Filho já nem acreditavam que saísse a biografia — ou pior, desconfiavam que a expectativa gerada não pudesse ser correspondida. Pois saiu, e com um atributo que diminui bastante os riscos de decepção: coragem de vestir o trabalho com uma visão personalíssima. Tanto assim que, provavelmente, jamais possa ser reconhecida como a melhor ou a pior das biografias sobre Fernando Pessoa. E a diversidade de olhares diz mais sobre o poeta português do que qualquer frase de efeito ou relato que se queira definitivo.