Péssimo precursor

“A bagaceira”, de José Américo de Almeida, não passa de um dramalhão destituído de fluidez
José Américo de Almeida, autor de “A bagaceira”
01/10/2014

A bagaceira, romance de José Américo de Almeida publicado em 1928, principia com algumas epígrafes do autor reunidas sob o título de Antes que me falem. Dentre elas, esta afirmação polêmica:

O regionalismo é o pé-do-fogo da literatura… Mas a dor é universal, porque é uma expressão de humanidade. E nossa ficção incipiente não pode competir com os temas cultivados por uma inteligência mais requintada: só interessará por suas revelações, pela originalidade de seus aspectos despercebidos.

Não deixa de ser irônico que o marco do romance social nordestino — título que o livro recebeu desde sempre — se coloque de forma tão submissa, aceitando, antecipadamente, um posto medíocre e pretendendo se afirmar apenas por seu caráter exótico. Tais aspirações acanhadas resultaram, veremos, numa obra em grande parte irrisória.

Narração esquemática
Tendo a seca como pano de fundo, o romancista reúne o típico senhor de engenho, Dagoberto Marçau, seu filho, Lúcio, e a jovem retirante Soledade num dramalhão destituído de fluidez, formado por cenas justapostas que raramente se interpenetram.

No capítulo Festa da ressurreição, por exemplo, o sertanejo Pirunga, irmão adotivo de Soledade, desafoga suas mágoas de amor entoando, ao anoitecer, um grunhido doloroso. Certa vez, encostado à porteira do curral, seu “garganteio convidativo” se transforma em “urro de desespero”. A irmã, objeto da sua paixão, já vivendo como mulher de Dagoberto, surge de forma abrupta, como se despencasse na cena, bastando ao narrador dizer: “Soledade correu e tapou-lhe a boca com ambas as mãos. E ele ficou gemendo, como um aboio em surdina”.

Trechos assim, em que os personagens permanecem ocultos nos bastidores do teatro, prontos a saltar para o palco quando o narrador estala os dedos, encontram-se espalhados pelo livro. E José Américo de Almeida não se mostra preocupado com as possíveis dúvidas do leitor, que, no caso acima, se pergunta qual acrobacia permitiu à jovem chegar tão rápido; por que, enquanto a noite avança, ela não está na casa-grande, mas ao lado do curral que cheira “a mijo de vaca”; e onde, diabo!, se enfiou o dominador Dagoberto: o narrador o fez sumir para favorecer o gesto imprudente da mulher?

No capítulo Uma história que se repete, Lúcio, Pirunga, Manuel Broca, o feitor, e Valentim, pai de Soledade, conversam. De repente, um estrondo: o teto da estrebaria veio abaixo. Sob ele, quase soterrado, um cavalo só consegue mover as patas dianteiras. Mas de que maneira os interlocutores se moveram até o local? Onde estavam? Que distância percorreram? Não temos nenhuma resposta. Salta-se uma linha e Pirunga já se dirige a Dagoberto, inserido subitamente na cena, levado até o local talvez pelo teletransporte da nave estelar USS Enterprise: “— Dá licença, major? E disparou um tiro na cabeça do animal”.

A seguir, no capítulo Moritur et ridet, o feitor reclama que há muito tempo não se faz um forró. Dagoberto, a princípio indeciso, concorda — e a festa começa repentinamente: “Lúcio escutava o maracatu: duas pancadas isócronas, como um coração batendo alto. O baticum de seu coração alvoroçado”. Detalhe nada desprezível, em meio à formidável seca, várias mulheres, enfeitadas, trazem “cravos vermelhos no seio”, certamente preservados em alguma estufa miraculosa…

Em O retrato, Soledade é jogada em nova cena:

Era um clamor assim como um trovão enfurnado.

Soledade correu ao engenho e pôs as mãos na cabeça:

— Mas que judiação!

A moagem parada.

Dagoberto não tivera dúvida: amontoara a palha seca debaixo da barriga do chamurro empacado e tocara fogo.

A narração esquemática só consegue mover os personagens de maneira brusca, aos solavancos.

Mas há outras incongruências. Pirunga passa páginas vigiando Soledade e Lúcio, quando a jovem, ainda não conquistada por Dagoberto, tentava seduzir de todas as maneiras o estudante. Não há um único lugar em que, estando o casal, também não se faça presente a sombra ciumenta do sertanejo. Pois bem… a eficientíssima vigilância desaparece, num passe de mágica, quando se trata de impedir que Soledade seja abocanhada pelo senhor de engenho. Subitamente, Pirunga torna-se despreocupado, cego — ou, quem sabe, preferiu trocar ideias com algum ator coadjuvante nas coxias do teatro.

Autômatos
O autor mostra-se negligente em relação à psicologia dos personagens. Lúcio, por exemplo, só conhece extremos. No início do romance, é o pessimista que vive numa introspecção doentia, descrito assim pela retórica do narrador:

Flutuavam-lhe sentimentos incompletos no tropel da alma desarmônica.

Afundava-se na análise íntima, como alguém que procurasse reconhecer-se na própria sombra. Mal sabia ele que o espelho nos familiariza com a imagem física, mas nenhum homem se identificaria, se se encontrasse em pessoa.

Tapava os ouvidos para escutar a voz recôndita.

Esse abuso de introspeção exaltava-se nas tendências discordantes. E discreteava consigo mesmo com o entendimento das duas faces opostas do mesmo eu. Conversava com o silêncio; tinha a audição do invisível.

Recolher-se é voltar-se contra si próprio. E sobrevinha-lhe o remorso que é o narcisismo dos pessimistas.

Depois, assediado pela incansável Soledade — a jovem muitas vezes lembra Emma Bovary, sempre pronta a desatar o cordão do corpete —, Lúcio permanece estranhamente assexuado, experimentando um raro tipo de amor, que o faz vibrar apenas da cintura para cima. A paisagem que se renova com a chuva torna-se afrodisíaca, mas ele vive “um amor sem carnalidades”.

Mais tarde, quando descobre que, agora, Soledade pertence a Dagoberto, obedece às regras do dramalhão e corre, armado de um punhal, para matar a jovem. Eterno fraco, o gesto termina em nova covardia. Fraqueza que ele voltará a demonstrar quando, após a morte do pai, renova o engenho e se decepciona com a ingratidão dos empregados.

Dagoberto sofre do mesmo mal. No princípio, um déspota que humilha, menospreza e tortura filho e empregados. Depois, ao confessar que seduziu Soledade — na verdade, então descobrimos, sua sobrinha —, assemelha-se a uma criança indefesa; e desse ponto em diante apaga-se, torna-se, sem nenhuma explicação, um boneco desprovido de vontade nas mãos de Pirunga.

Não há meio-termo para esses pobres autômatos.

Tautologia
A linguagem de José Américo de Almeida é nitidamente devedora de Euclides da Cunha, mas não possui a eufonia euclidiana, a assonância que emerge dos grandes períodos e embala o leitor a ponto deste não se preocupar com o real sentido das palavras. Não chega a produzir os horrores de um Alberto Rangel — o “percevejo do lombo euclidiano” —, mas seu texto oferece poucas escolhas felizes.

Logo no primeiro capítulo, ao descrever os retirantes, o narrador compõe um de seus melhores trechos:

Era o êxodo da seca de 1898. Uma ressurreição de cemitérios antigos — esqueletos redivivos, com o aspecto terroso e o fedor das covas podres.

Os fantasmas estropiados como que iam dançando, de tão trôpegos e trêmulos, num passo arrastado de quem leva as pernas, em vez de ser levado por elas.

Andavam devagar, olhando para trás, como quem quer voltar. Não tinham pressa em chegar, porque não sabiam aonde iam. Expulsos do seu paraíso por espadas de fogo, iam, ao acaso, em descaminhos, no arrastão dos maus fados.

Fugiam do sol e o sol guiava-os nesse forçado nomadismo.

Adelgaçados na magreira cômica, cresciam, como se o vento os levantasse. E os braços afinados desciam-lhes aos joelhos, de mãos abanando.

As escolhas desta sequência, na qual ele amplia a tragédia e o tom onírico por meio de elementos grotescos — a dança capenga, a magreza deformante —, raramente se repetirão.

Mas salvam-se, ainda, frases isoladas: “Era uma inquietação serôdia, como brasa remanescente que procura acender o cinzeiro”, diz ele, tentando definir o amor que Dagoberto experimenta.

Os efeitos do sol implacável contaminam o próprio narrador, que os descreve assim: “Um incêndio estranho que ardia de cima para baixo. Nuvens vermelhas como chamas que voassem. Uma ironia de ouro sobre azul”. Ou concedendo ao clima uma força quase maligna:

Um derrame de luz exaltada que parecia o sol fulminante derretido nos seus ardores.

Ventava. Não era o vento pontual da boca da noite todo sujo de pó como uma criança traquina.

Era um sopro do inferno que, alteando-se, parecia querer rasgar as nuvens para acender a fogueira.

A antropomorfização potencializa o horror da paisagem destruída, fantasmagórica: “A capoeira esquelética levantava os garranchos, como dedos crispados. E dançava, à força, nessa tragédia, com o bochorno fogoso”. A opressão do silêncio pode transbordar do texto graças à comparação precisa, eloquente: “Um silêncio inquietador, como o sono prolongado de um doente grave […]”.

Inúmeras vezes, contudo, no afã de singularizar a narrativa, as escolhas vocabulares são carregadas de preciosismo. Ele também repete certa estrutura frasal, o que banaliza seu estilo: “Agônica concentração de vitalidade faiscante”, diz, compondo a sentença em que a um substantivo deve, necessariamente, corresponder um adjetivo. Ou: “Flutuavam-lhe sentimentos incompletos no tropel da alma desarmônica”; “Calores modorrais nas charnecas esmoitadas”. E aqui, ampliando o esquematismo da fórmula: “Reflorescia o deserto arrelvado nesse surto miraculoso da seiva explosiva”.

Em vários trechos, o autor quer ressaltar seus sentimentos nacionalistas ou não consegue descobrir o qualificativo adequado; então utiliza o recurso mais fácil: “Minudenciou, em seguida, na sua linguagem brasileira […]”; “Pirunga tomou o verbo no sentido brasileiro […]”; “Vinha da mata vizinha um rumor de crepúsculo brasileiro”; “[…] o Brasil brasileiro com mulheres nuas no mato…”. Solução fácil — mas principalmente tautológica.

Naturalismo
Olívio Montenegro, no ensaio que dedicou a José Américo de Almeida, afirma que “é o escritor que nele vinga muitas vezes as decepções do político”. Não só do político, mas também do sociólogo — e do sociólogo adepto do naturalismo, pronto a mostrar os pobres como escravos da hereditariedade e do meio em que vivem. Além de “vítimas de uma emperrada organização do trabalho” — ideia que se repete cansativamente ao longo do livro —, demonstram, curvados no plantio, “a atitude natural do servilismo hereditário”. Até mesmo preconceitos e desconfianças entre os sertanejos são provocados pela “fisiografia”. E esta cena, apesar da camuflagem euclidiana, traz, em seu substrato, o pior Aluísio Azevedo:

Passavam as lavadeiras vistas de longe como monstros macrocéfalos – com uma trouxa na cabeça e outra trouxa na barriga. Enchiam as panças, já que não podiam encher os estômagos.

Mulheres extraordinárias! Filhavam uma e, não raro, duas vezes por ano.

Engendravam-se em prazeres fugazes eternidades de sofrimentos. Os apetites com que a natureza capciosa encadeava as gerações deserdadas eram uma série de sacrifícios irresistíveis. Amplexos de corpos moídos. Procriações desastradas. Fábrica de anjos. A fecundidade frustrada pela miséria e pela morbidez geral.

Não posso deixar de, neste final, referir-me à praga da retórica. Bastam dois exemplos: “Nessa manhã luminosa a mata resplandecia com uma orgia de desabrocho em sua pompa auriverde” – ou, igualmente enjoativo, “[…] os dois viviam, mais e mais, na intimidade desta natureza alcoviteira que era toda uma exaltação comunicativa nos seus solertes amavios e nos seus frêmitos de vitalidade”. Como podem ver, o discurso fastuoso comanda, transformando a leitura num exercício maçante, interminável.

NOTA
Desde a edição 122 do Rascunho (junho de 2010), o crítico Rodrigo Gurgel escreve a respeito dos principais prosadores da literatura brasileira. Na próxima edição, Paulo Prado e Retrato do Brasil.

Rodrigo Gurgel

É escritor, editor e crítico literário.

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