Péssimas companhias

Contos de "Com a corda no pescoço", de André Nigri, abordam as consequências lamentáveis do machismo estrutural em relações amorosas
André Nigri, autor de “Com a corda no pescoço”
02/04/2021

“Por que fazemos escolhas que sabemos não ser as melhores? Por que parecemos aquilo que não somos?” Estas são as frases motoras do segundo livro de ficção de André Nigri, que chega depois de o autor ter publicado um romance e uma biografia de Adoniran Barbosa. A questão das escolhas é mais complexa do que pode parecer à primeira vista e está ligada à controversa dobradinha dos conceitos de livre-arbítrio e determinismo, investigados há séculos por filósofos, religiosos, psicanalistas e, mais recentemente, neurocientistas. Discuti-la aqui extrapolaria a minha competência e o âmbito de uma resenha literária, mas fato é que todos conhecemos situações em que agimos de forma incongruente com nosso estilo de vida, nosso status e nossas convicções, como se apenas reproduzíssemos padrões sociais internalizados desde a infância e que foram repassados de geração a geração. Não há racionalização.

É o que parece acontecer com os personagens envolvidos nas confusões amorosas — todas heteronormativas, diga-se de passagem — dos quatro contos de Com a corda no pescoço, relatados em sua maioria a partir do ponto de vista do personagem masculino envolvido no imbróglio sentimental em questão (uma exceção é o terceiro conto, onde temos um narrador onisciente). No entanto, este narrador-personagem revela-se, antes de mais nada, um ouvinte atento e estimulador das torrentes fabulatórias de suas companheiras, cujas insatisfações e contradições determinam as relações e configuram o cerne das histórias. São sobretudo elas que parecem estar tão presas às amarras dos padrões “herdados” como o pescoço de Tiradentes — coadjuvante no relato de abertura — à corda.

Pontos de vista
No primeiro conto, que dá nome ao livro, o caso amoroso entre Helena e o narrador, Antônio Vilela, é apresentado em retrospectiva por ele. Provando grande domínio descritivo e do vaivém temporal entre narração do passado e do presente, Nigri traz o personagem de volta à sua cidade natal, onde foi para o enterro da própria Helena. Sentado no bar do hotel, ele passa em revista sua história com ela enquanto observa a estátua do malogrado inconfidente: tiveram um relacionamento cheio de paixão, muitos anos atrás, enquanto Helena vivia num casamento fracassado. Ela, porém — como as outras personagens mulheres do livro —, não consegue se desvencilhar do marido, atada que está à ideia de se definir através de seu papel de companheira, e procura refúgio numa aventura amorosa. No entanto, quando Antônio lhe propõe partirem e recomeçarem uma vida juntos em outro lugar, ela reconhece que isso seria uma mera troca de prisões: “Você quer que eu deixe meu marido para me casar com você. Isso não é apenas mudar a corda de pescoço?”.

Em Na ponta dos pés, o narrador é o amante de Francesca, uma ex-bailarina que traz no corpo as chagas de um amor tão fracassado quanto sua carreira como integrante de um balé russo. Ela não consegue se desfazer de seu passado nem de suas decepções afetivas. Em Francesca, a incorporação da subserviência é tamanha que se confunde com seu desejo. Porém, ao mesmo tempo que reconhece a armadilha, ela não possui os instrumentos para se libertar e faz exatamente o contrário, enreda-se ainda mais.

Era a dor; a dor como o mais poderoso afrodisíaco. Mas não alguma forma de masoquismo. Pelo menos não era o que eu pensava. Minha suposição, com base em toda uma vida sacrificada à dança com excruciantes e longos períodos de dolorosa disciplina e raríssimos instantes de êxtase ao se apresentar como solista , era a de que Francesca possuía a inabalável certeza de que só alcançaria a felicidade após atravessar um penoso e demorado tormento. Aquilo estava embutido nela como a bonequinha encapsulada nas suas ocas irmãs maiores.

Neste conto, a sobreposição de estratos temporais é especialmente dinâmica, pois acrescida de uma terceira camada: alternamos constantemente entre o momento atual do casal numa casinha no campo, a lembrança de quando se conheceram, assim como imagens do segundo encontro numa casa de chá.

Já em Se não fosse a lua, Maria e Paulo, duas pessoas praticamente desconhecidas, marcam de passar uma semana de férias num lugarejo distante do cotidiano de ambos. Aqui, o conflito feminino é aumentado pelo confronto com a maternidade — Santiago, companheiro de Maria, anseia por um filho, mas ela reconhece nesse desejo apenas uma tentativa de prendê-la e podar sua liberdade, sentindo-se desrespeitada em seu direito de escolha. Ela parece entender que o seu amor cedera às imposições do tempo, transformando-se “num mecanismo de relógio de corda”, ao qual também ela será obrigada a aderir se quiser manter a relação:

Todo dia é preciso fazer como no dia anterior para que os ponteiros não se atrasem. E mais esmero em dar corda no relógio do amor deles fora dado após Santiago anunciar querer um filho e perceber a reação causada à namorada. (…) A cada manhã, Maria se esforçava para repetir “já vou, meu amor”, e se o continuava fazendo era porque se via presa à máquina daquele relógio. E quanto mais Santiago a mima, mais ela sente raiva de si mesma, mas também dele, pois ela intui que por trás do mimo ele só disfarçava a vontade de domesticá-la.

No quarto e último conto, temos novamente o paradigma de dependência emocional e incapacidade de libertação. Mariana, amor antigo que o narrador reencontra, também parece uma mulher que interiorizou o machismo a tal ponto que só sabe reproduzi-lo. Ela vai de uma relação abusiva à outra, sempre se prometendo que não incorrerá mais nos mesmos erros. Tudo se repete e cada vez é a última.

Padrões
Nestes dias em que escrevo esta resenha, o escândalo envolvendo o cantor Marilyn Manson volta às manchetes dos jornais. Sua ex-namorada, uma atriz de grande sucesso, ativista pelos direitos LGBTQIA+ e conhecida por falar abertamente sobre temas tabu, como os problemas de saúde mental, denunciou o artista por abusos sexuais e emocionais ao longo da relação que tiveram, que durou três anos. Penso em Tina Turner, Nina Simone, Anne Sinclair, Whitney Houston, Rihanna… A lista poderia seguir ad infinitum. O que leva essas mulheres bem-sucedidas, ricas, bonitas e independentes se submeterem a uma relação assim por tanto tempo? Seria por incapacidade de partir, medo da solidão, hábito ou por desejo de serem amadas? Ou mesmo por nem reconhecerem o abuso? Ou será que não estão simplesmente repetindo padrões como outras tantas mulheres nem tão independentes assim? Pois se, por um lado, já avançamos um bom pedaço no caminho de nossa emancipação profissional e financeira, adquirindo direitos firmados por lei, por outro, não devemos esquecer que fomos educadas e influenciadas sobretudo por mães e avós e bisavós, e são os seus modelos que espelhamos, ainda que inconscientemente. E isso vale igualmente para os homens. Não estariam eles também reprisando modelos sociais? A cineasta britânica Leslee Udwin, autora do premiado documentário sobre um estupro coletivo em Nova Déli, conversou com vítimas, mas também entrevistou os estupradores, e chegou à conclusão: “Não são monstros, estão programados”.

Estes questionamentos certamente vão bastante além do contexto do livro de Nigri, mas estão no cerne de suas histórias e são uma possível resposta à questão das más escolhas.

Com a corda no pescoço
André Nigri
Reformatório
95 págs.
André Nigri
É escritor e jornalista. Publicou uma biografia de Adoniran Barbosa, Se o senhor não tá lembrado (2002), e o romance Paralisia (2018).
Carla Bessa

É tradutora e escritora. Autora de Aí eu fiquei sem esse filho (2017).

Rascunho