Literatura e pescaria têm alguma similaridade. Encostar-se num barranco à beira de um rio, sob a sombra de uma árvore, uma bebida ao lado, deixar o tempo correr, é um prazer solitário que pode ser feito com um livro ou com a linha e o anzol na mão. Nos dois casos, pouco importa o livro, o autor, o peixe, o que vale mesmo são as boas histórias. Em Para pegar bagre de dia é preciso sujar a água, de Wander Piroli, literatura e pescaria ora se encontram, ora se afastam, mas no fim restam algumas boas histórias.
Piroli demonstra pelas letras a mesma afeição que tem pela pesca. O prazer de preparar a pesca no dia anterior, colocar o material na maleta, escolher a isca, encontrar o melhor ponto do rio, acomodar a minhoca no anzol, são pequenos rituais que se assemelham à construção das frases, à escolha dos verbos, à acomodação dos adjetivos. Piroli faz as duas coisas com o mesmo cuidado, com carinho, até com certa ingenuidade, mas sempre de olho na melhor história de cada peixe fisgado.
A ingenuidade dos relatos, na maioria das vezes, tem um efeito positivo, dando às histórias leveza, humildade e, principalmente, veracidade. Por incrível que pareça, são histórias de pescador que remetem à mais profunda verdade.
E a verdade é que Piroli é um grande contador de histórias, mas que parece não ter a mínima pretensão de figurar no panteão da alta literatura, até porque suas histórias são de pescadores simples, amadores, como ele, mais preocupados em trazer o samburá cheio de causos que de grandes dourados.
Piroli é um pescador habilidoso, consciente de que a veracidade sobre o tamanho do peixe está na forma como a fisgada é relatada. O título do livro, por si, mostra isso, até poderia ter sido inscrito naquele concurso do menor conto do mundo.
Além do título criativo e simpático, Para pegar bagre… traz 20 narrativas curtas, em que são constantes a alegria e o prazer de encostar-se num barranco à beira de um rio, sob a sombra de uma árvore, uma bebida ao lado, deixando o tempo correr.
Em Jogar as coisas fora, o pescador retorna a um rio onde pescara havia vinte anos, mas que agora tinha uma casa ao lado. O empregado da casa, reconhecendo nele um pescador de verdade, convida-o para umas fisgadas e o bate-papo acontece como se fosse entre velhos amigos. “O homem pegou o alicate na capanga e sossegou o peixe com um golpe certeiro na cabeça. O piau deviar ter mais de um quilo e suas escamas molhadas brilhavam ao sol.”
Em O Chevrolé preto com três músicos, um grupo de pescaria não se deixa abater com a quebra do carro na estrada. Empolgam-se tanto com os instrumentos musicais, a cachaça, a cerveja e o tira-gosto que, mesmo depois do carro consertado, continuam com a pequena festa à beira da estrada, deixando a pescaria para o dia seguinte. “O pandeirista, que agora tinha nome — Nenego —, acendeu o liquinho amarrado no galho da mangueira com uma tira de couro. Umas trinta garrafas de cerveja vazias jaziam no mato e, entre elas, dois cascos de Cristalina do Picão.”
O conto Uma noite de frio mostra que a falta de prevenção pode fazer uma pescaria inesquecível, para o mal, como experimentou o dr. Leitão, que não levou blusa para atravessar a noite no barco e foi surpreendido pelo frio. “Ainda faltava um pouco para o amanhecer e o frio aumentava. Olhei para a cara do dr. Leitão com a certeza de que, por nenhum dinheiro do mundo, ele nunca mais sairia da sua Manhuaçu para pescar no São Francisco.”
A pescaria também pode ser arriscada, como em Me dá o pé, em que três dias de chuva alagam o vilarejo e transformam os pescadores em bombeiros de resgate. “Encontraram a velha Miquelina em cima da cama, muda, abraçada com o cachorro. O papagaio, inquieto no seu ombro ossudo, não parava de gritar: — Eta vida fedaputa.”
O mineiro Wander Piroli era formado em direito, trabalhou em jornais e na Câmara Municipal de Belo Horizonte. Escrevia certinho, com alegria, puxando cada frase como se fosse um piau de mais de um quilo. Pescava peixe, mas fisgava histórias.