Há dois elementos essenciais à prosa do chileno Roberto Bolaño: a poesia e a violência. Nos relatos d’A literatura nazista na América — publicado originalmente em 1996 e agora traduzido no Brasil — não falta nenhum dos dois. O primeiro livro do autor a cair nas graças da crítica, que o saudou por sua “originalidade e imaginação brilhante”, traz 31 biografias fictícias de romancistas, contistas, ensaístas e principalmente poetas que, de alguma maneira, flertaram com o nazismo e a barbárie.
É o caso da alemã radicada na Argentina Luz Mendiluce Thompson (1928-1976). O relato dá a entender que ela foi a criança de poucos meses que estava nos braços de um sorridente Adolf Hitler em uma famosa foto. Em homenagem a essa relação impossível, e coincidindo com seu fracasso matrimonial, Luz publica o poema Com Hitler fui feliz. Depois de passagens por sanatórios, relacionamentos doentios e diversas viagens, a poeta dá uma folga para a mente — “não sofre mais”, “bebe em excesso e às vezes abusa da cocaína, mas seu equilíbrio espiritual se mantém incólume”. De volta ao jogo, nutre um amor platônico e acaba rejeitada por Claudia, que, além de não ser lésbica, tinha uma visão política radicalmente oposta à sua. A solução encontrada por Luz, para coroar sua condição de “alcoólatra e infeliz”, é enfiar seu Alfa Romeo contra uma bomba de gasolina. “A explosão é considerável.”
Outra biografia notável é a do plagiador profissional Max Mirebalais (“nunca se saberá com absoluta certeza seu nome verdadeiro”), que chegou a ser conhecido como o bizarro “Pessoa do Caribe” e se deslumbrou com as festas e saraus das melhores residências de Porto Príncipe, no Haiti. Para entrar nesse mundo de ilusões, Max descobriu rapidamente que a literatura poderia servir como gatilho, afinal, essa arte é “uma forma de violência dissimulada, confere respeitabilidade e, em certos países jovens e sensíveis, é um dos disfarces de ascensão social”. Ele alcança alguma fama com a produção de seus heterônimos — sempre frutos de plágios — e morre instalado na solidão.
Os brasileiros também não escapam à imaginação doentia do autor chileno. O mineiro Amado Couto (1948-1989), depois de escrever um livro de contos que nenhuma editora aceitou, dedicou-se à obsessão. Apesar de entusiasta da vanguarda, considerava os irmãos Campos “uns chatos” e Osman Lins “francamente ilegível”. Com o objetivo de seguir a tradição policialesca cristalizada por Rubem Fonseca no Brasil, Couto pensou primeiro em sequestrar o criador do personagem Mandrake, depois desistiu e escreveu Nada a declarar, A última palavra e A mudinha. Nenhum dos três romances chamou a atenção de Fonseca, tampouco dos leitores em geral. Couto se enforcou num quarto de hotel em Paris.
Já na jornada dos irmãos Schiaffino, o que se destaca é a relação do futebol com a violência e literatura. Italo e Argentino se tornaram líderes da torcida do Boca Juniors, cada qual numa época diferente, e dedicaram-se aos versos. O irmão mais velho, Italo, após guiar com maestria os meninos perdidos da torcida do Boca, torna-se um gordo diabético e morre de ataque cardíaco, em 1982. O irmão mais novo, Argentino, perde-se em delírios de poder. Além de publicar pela controversa Editora El Cuarto Reich Argentino, o que por si só pode ser um indicativo de que a sanidade não vai muito bem, envolveu-se em embates violentíssimos com os rivais da torcida do River Plate e sumiu e reapareceu diversas vezes do mapa. Acabou assassinado, em 2015, na saída de um cassino clandestino em Detroit.
Agora, talvez a história de maior relevância dessa coletânea seja a do chileno Carlos Ramírez Hoffman (1950-1998), o “Infame”. Na narrativa que fecha A literatura nazista na América, quem faz o relato é um Bolaño transformado em personagem do próprio livro e inúmeros elementos recorrentes em sua produção futura são explorados, sobretudo aqueles que dariam corpo ao romance Os detetives selvagens (1998) e seguiriam sendo explorados em 2666, que foi publicado postumamente em 2004 e levou o prêmio norte-americano National Book Critics Circle — a busca por um poeta desaparecido, as pistas falsas que turvam a narrativa, a literatura como tema central e homicídios brutais.
Linguagem do caos
Roberto Bolaño foi essencialmente um poeta e a violência foi uma constante em sua escrita. Antes de ganhar notoriedade pela publicação d’A literatura nazista na América, dedicou-se aos versos e encabeçou o movimento poético de vanguarda Infrarrealismo. Na Cidade do México, onde morou por um tempo e publicou o manifesto que deu início ao grupo, subverteu o cotidiano ao lado de nomes como Mario Santiago Papasquiaro, Juan Esteban Harrington, Rubén Medina e Bruno Montané — todos recriados como personagens em Os detetives selvagens.
Dentre as máximas do grupo estava “fazer surgir novas sensações”, já que “sonhávamos com utopia e acordamos gritando”. Quando a realidade não corresponde às expectativas, o jeito é se rebelar. Mas, apesar desse arroubo fresco de juventude, somente décadas depois Bolaño começaria a inscrever “oficialmente” seu nome na história da literatura.
Em todos os curtos relatos dessa “antologia vagamente enciclopédica da literatura nazista produzida na América entre 1930 e 2010”, que foi como Bolaño definiu a obra que lhe deu notoriedade, um tom apocalíptico predomina. Além de finais secos e brutais, com recorrentes suicídios e assassinatos, prepondera desde o início das histórias uma áurea aterrorizante. É como se nada pudesse dar certo — e isso fosse óbvio.
Se “de vez em quando, a vida real lembra muito um pesadelo”, como o narrador sugere durante a história da mexicana Imra Carrasco (1910-1966), a literatura do autor chileno transpõe para o plano ficcional tudo o que há — e poderia haver somente na imaginação de um sádico desesperado — de mais detestável na existência. Na América de Roberto Bolaño, o caos é regra.