O banal instaura o mundo circular. É o vício do círculo que promove, concomitantemente, a opressão e a ânsia de fuga. O banal em Lúcio Cardoso germina na circularidade da família provinciana. O banal em lugar da peripécia exuberante se apresenta como principal viés deste Dias perdidos (1943). Frustração, presença do mal, sonhos desfeitos, tédio, expectativas de grandes transformações, espírito debatendo-se entre modorra e busca de uma liberdade que não se sabe definir ou se desconhece existir, estas são algumas das questões opressoras do livro. O mal, indefinido mal, que não é causado pelo caráter intrínseco do homem nem pelas pressões sociais, que surge virulento e perturbador já aqui está, o mal, como no dizer de Antonio Arnoni Prado, no seu papel de “verdadeiro topos da elocução narrativa de Lúcio Cardoso”.
A história de Dias perdidos gira em volta do derrotado Jaques, sua mulher Clara, o devaneio tuberculoso da pequena Madame Bovary de Vila Velha: Diana, casada com o personagem principal Sílvio. A pena de Lúcio Cardoso, quando não cai, raras vezes, na frase de mau gosto, sabe escavar e adensar o personagem que, provincianamente, teria pouca psique a oferecer. Mesmo que Crônica da casa assassinada (1959) se utilize de vários recursos — alguns nem tanto avançados —, a longa recorrência da memória e o perquirir contínuo dos personagens talvez possam encantar mais os leitores de hoje que o romance considerado maior do escritor mineiro.
Os críticos geralmente esquematizam a obra de Lúcio Cardoso em duas fases. Apontam os romances que não preparam para o clímax que será Crônica da casa assassinada e aqueles outros que são treinamento, preâmbulo e exercício estilístico e temático que desembocará no livro maior da obra do escritor mineiro. Lançando-se com Maleita (1934), romance de feitura da geração de 30, Lúcio Cardoso integrará o grupo dos romancistas intimistas como Octavio de Faria, Cornélio Pena e Clarice Lispector (amiga e confidente, a ponto de o título do primeiro livro de Clarice ser escolhido por ela e por Lúcio).
Mesmo que Lúcio Cardoso, mais tarde enverede pelo estigma do mal e da consciência e atmosfera asfixiantes que perseguem seus personagens, já nesta obra também se observam comportamentos típicos do escritor mineiro. Em Dias perdidos, existe a atmosfera carregada e interior. O narrado não está no mundo de fora, mas passa pelo filtro delicado do pensamento do personagem. Não chega a ser monólogo interior como também não chega a ser fluxo de consciência. O narrador em terceira pessoa mantém o pulso da narrativa. Apenas coloca o mundo de fora visto, observado e sentido pela razão e emoção dos personagens.
Dias perdidos também é romance de formação. Foge à caracterização pura do romance de formação, criado por Goethe, mas acompanha ao melhor estilo de formação ao crescimento físico e existencial, principalmente psicológico, de Sílvio e sua atmosfera pesada e sombria, comum a quase toda a obra de Lúcio Cardoso. Vários críticos ainda apontaram, baseados no depoimento da irmã do autor, Maria Helena Cardoso, fortes traços biográficos. O que é apenas curioso, mas nada acrescenta à leitura da obra.
Não se pode negar em Lúcio Cardoso o poder de sedução de sua prosa. Narrador vigoroso, Lúcio é irregular em Dias perdidos. A segunda parte, renegada por Sérgio Millet como “apressada e confusa”, beira o lugar-comum e o mau gosto. Embora, o autor não perca o ritmo nem o encadeamento da trama. Francamente alongada e repetitiva na segunda parte, o autor, contudo, demonstra que deseja aprofundar-se no confronto entre os personagens Clara, Sílvio e Diana na derradeira parte.
Por fim, lembremos-nos, que o banal também está no romance que irá aparecer um ano mais tarde: o de Clarice Lispector, com seu Perto do coração selvagem (1944). Nesta obra, o banal toma ares de renovação. Há o desconcerto de um fluxo de consciência original e transformador, que desloca a questão psicológica para segundo plano e investe no desencadear de crise ontológica e metafísica. Em Dias perdidos, o banal é reduzido a sua atividade de produção menor da representação existencial. Em Perto do coração selvagem, o banal se insurge e torna-se fonte geradora de apreensão distorcida e questionadora da realidade exterior.