Ilusão e mentira, de Godofredo de Oliveira Neto, é um livro composto por duas novelas; a primeira, O galo Adamastor; a segunda, Val e Lalinha. Ambas, inseridas na tradição da novelística brasileira, bebem em fontes machadianas. O galo baseia-se em Ideias de canário, Val e Lalinha em Dom Casmurro. A estrutura também não foge ao estilo de Machado de Assis, com capítulos curtos, diálogos e muita ironia. O que Godofredo acrescenta é uma inovação do ponto de vista do narrador.
A primeira novela começa com um narrador em primeira pessoa descrevendo o personagem Miguel Santos, que seria web designer na vida profissional, mas nos alerta: “O designer, se não caiu inteiro na loucura, se aproxima perigosamente desse estado psíquico. Não há reunião ou encontro casual nas ruas em que ele não conte a mesma história do galo Adamastor”. A partir do segundo capítulo é da voz do delirante personagem que virão todos os acontecimentos. O narrador inicial retorna apenas no último capítulo, o décimo quarto, para fazer uma espécie de conclusão da narrativa.
Em Ideias de canário, de Machado de Assis, há um pássaro falante, que discute com um homem sobre o que seria a liberdade: “O mundo, redarguiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja de Belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é o senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira”. Este tema será retomado pelo galo de briga Adamastor, um imponente galo inglês fujão, que também discute o mesmo tema com o seu novo dono, Miguel Santos.
Além de abordar a liberdade, temática que norteia as organizações sociais humanas e que sabemos nunca ser total, Godofredo também coloca em questão a reescrita de narrativas, mostrando que sempre é possível “alargar”, ou tornar mais extensa a discussão. Na história de rua, narrada pelo impressionante personagem, há referências às novas tecnologias, como celulares e tablets, à internet e às redes sociais. É interessante que, entre os ouvintes deste contador de histórias oriundo da cultura popular, estão excluídas (outra questão boa para se discutir na contemporaneidade) as crianças e os adolescentes que “zombam e riem do ‘lunático de circo’, como tive a oportunidade de ouvir uma vez de um grupo de adolescente com o fio do iPod grudado às orelhas e trajando uniforme de uma escola das cercanias”. Estaria o escritor nos alertando sobre o futuro da literatura ou seria mais uma das ironias bem ao estilo machadiano?
O que se pode criticar, nesta novela, é certo prosaísmo nas palavras do narrador circense. Ele utiliza poucas palavras do vocabulário popular e envereda pela norma culta da língua portuguesa. Em alguns momentos, utiliza o verbo no mais-que-perfeito. Seria esta opção também uma sátira aos artistas de rua contemporâneos?
Artifício narrativo
Já na segunda novela, Val e Lalinha, a marca mais forte também é o artifício narrativo. Trata-se de um idoso, aposentado, que trabalhou a vida inteira como amanuense “numa instituição penal reservada a mulheres”. Ele gravava o depoimento das presas num velho aparelho Grundig e guardava as fitas. No final da vida tem as gravações, mas devido ao clima úmido da cidade do Rio de Janeiro e das “peraltices” dos netos já não consegue ouvi-las. Ao completar noventa anos, ganha de uma sobrinha solteirona uma gravação recente obtida numa dessas instituições. “Transcrevo-a com a certeza de que os leitores farão dela bom uso.” O preâmbulo da narrativa, na voz do ex-amanuense, ocupa um parágrafo de quatorze linhas. O restante é a transcrição do diálogo entre uma presidiária e uma psicóloga judicial.
O clima machadiano é ressaltado por uma citação retirada de Dom Casmurro e apresentada no início da novela: “Releva-me estas metáforas; cheiram ao mar e à maré que deram morte ao meu amigo e comborço Escobar. Cheiram também aos olhos de ressaca de Capitu”. A epígrafe indicia o rumo da narrativa. Laudelina Santos Pacheco da Costa Souza, mais conhecida como Lalinha, praticara um homicídio; sua vítima, outra mulher, Valéria, chamada pelos vizinhos de Val. As duas disputavam o mesmo homem. Lalinha, mais velha; Val, uma adolescente que de repente tomou corpo de mulherão e caiu nas graças de Jonas, o amante de Lalinha.
Durante todo o diálogo, Lalinha conta seu passado e o modifica de acordo com o andar da carruagem. Isso acontece quando descobre pela voz da psicóloga que tanto Jonas quanto Edu, que também vivera com ela, receberam ordem de prisão. É preciso ressaltar que as duas mulheres moravam numa favela e que o crime aconteceu num beco. Outro ponto importante é que tanto Edu como Jonas são traficantes de drogas.
Godofredo encontra boas soluções em relação à linguagem de Lalinha, que não se mostra caricatural. Ela diz que estudou até o segundo ano do ensino médio, e que era ótima aluna. Por isso suas palavras são um pouco diferentes daquelas que sairiam da boca de uma autêntica favelada. Como se trata de literatura, acabamos aceitando a solução. Outro ponto introduzido pelo autor no decorrer dessa conversa judiciária é a presença de um diário escrito pela mulher acusada de assassinato. Ele se torna mais um artifício narrativo. Sua presença mostra que, enquanto escreve, Lalinha não comete crimes ou delitos. Godofredo acaba por nos dizer que o escritor realiza na literatura aquilo que não lhe seria permitido na vida real.
Além da temática machadiana, há também ares rodriguianos: “[…] o amor parece que traz mais infelicidade do que alegria. É bom por um lado mas machuca por outro, aperta o peito da gente, meio assim, uma coisa assim”, diz Lalinha. Nelson sempre afirmou que não se pode amar e ser feliz ao mesmo tempo.
Dois aspectos discutidos por Godofredo em seu livro acabam proporcionando ao leitor bons motivos para refletir sobre o momento em que vivemos. O primeiro deles é a sobrevivência da narrativa popular. Até que ponto, em meio a inúmeros meios a servirem de canal para se contar uma história, o narrador, sobretudo o baseado na oralidade, pode sobreviver enquanto contador de histórias? O outro ponto é a interferência da tecnologia tanto na transmissão das histórias quanto como artifício narrativo. Na primeira novela, o personagem Miguel nos fala sobre celulares, tablets, iPods e computadores; na segunda, há menção a um gravador Grundig e suas fitas correspondentes, vem de acréscimo outra gravação, esta mais recente, que tem como objetivo preencher o tempo que resta de vida a um nonagenário.
Portanto, além de demonstrar o quanto os clássicos podem influenciar na literatura da contemporaneidade, Godofredo de Oliveira Neto nos dá de acréscimo toda uma discussão a respeito da sobrevivência ou não da literatura em meio ao incremento — maior a cada dia — do aparato tecnológico. No final, compreendemos o tanto que a voz melódica do galo Adamastor, a locução circense de Miguel Santos e a dicção ardilosa e dolorida de Lalinha se complementam e nos encantam, afirmando a supremacia da palavra no ato de contar histórias.