Perspectivas de significação

Resposta de Rui Mourão à resenha "Fantasmas no raso", de Márcia Lígia Guidin, publicada na edição 196
Rui Mourão, autor de “Fantasmas no raso”
29/01/2017

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Há, no romance Mergulho na região do espanto, três perspectivas de significação. Num primeiro plano oferecido logo de saída, o personagem que centraliza a ação se apresenta como num descerrar de cortina. Um escritor, falando na primeira pessoa, será o narrador de todo o conjunto. Ao mesmo tempo em que faz a amarração da estória, vive um drama pessoal. Começando a desenvolver sua vocação literária, quando muito jovem integrou uma nova geração principalmente de poetas e ficcionistas que lutava por se firmar. Chegou a publicar contos e artigos de crítica para publicação em revistas e na imprensa de Belo Horizonte rivalizando em qualidade com os companheiros, mas acabou ficando para trás, por dificuldade de subsistência pessoal, que o levou a mudar-se para o interior e perder contato com a turma. Vítima de irrecuperável frustração, sentindo-se irrealizado, culpava por isso em parte sua mãe, devido ao fato de ter sido obrigado, depois da morte do pai, a responsabilizar-se pela manutenção da casa.

A segunda linha de significação do texto está relacionada com a cidade de Ouro Preto, que, apresentada como cenário principal, surge em plano dilatado. Começa a ser mostrada no período do desbravamento do território, com a descoberta do ouro, e vai atravessando o tempo, de etapa em etapa, até o completo estabelecimento do povoado que se tornará a primeira capital de Minas Gerais. Em seguida, na vila convertida num centro civilizado de existência complexa, mantendo já ligações até com o exterior, sendo procurada pelos maiores cientistas da época — os chamados viajantes estrangeiros —, vamos tomar conhecimento do que foi a Inconfidência Mineira.

A terceira linha de entendimento da narrativa, que nos conduz para a percepção da sua total complexidade, está relacionada com a epígrafe apresentada no pórtico do livro, despejando significação para o conjunto do texto. É ali que se encontra a chave mestra para a elucidação do segredo maior, a significação do corpo inteiro da narrativa: “Que somos, de onde viemos, para onde vamos?”.

O todo da fabulação tem início com o escritor recebendo a visita de fantasmas que se revelam como evocações dele próprio, em momentos distintos do passado. Dá-se como se o personagem estivesse tomando consciência das suas várias encarnações, no empenho de querer entender o que em essência o constituía. Naquela fase, encontrava-se obcecado pelo desejo de elucidar a primeira colocação do enigma: “Que somos?”. Na etapa que se segue, a consciência narrativa, em busca de figuras de máxima representatividade social, procura fazer contato com fantasmas de participantes do movimento político da Inconfidência Mineira — heróis exponenciais da história brasileira — na esperança de encontrar resposta para aquela indagação fundamental. Frustrado igualmente nessa nova tentativa, inclusive porque, ao tentar uma segunda oportunidade de entendimento com o fantasma do cônego Luiz Vieira da Silva que o deixou no ar no exato momento em que parecia, ia pôr fim a um estado subjacente de inquietação que desde o princípio o martirizava, não encontrando resposta para uma pergunta que permanentemente fazia — como explicar “por que entre todas as riquezas materiais presentes no mundo o ouro, desde quando passou a ser conhecido, jamais teve competidor no que diz respeito a valor monetário, prestígio social e operacionalidade econômica” —, termina encontrando sozinho uma explicação para a sua angustia maior, que na verdade solução não era — não chegava a ser —, mas o levava a compreender a condição do homem na terra.

Emergindo na realidade cá fora, pisando o chão concreto da sua contemporaneidade, começa a ver tudo a sua volta em condições fantasmagóricas. Caminhando numa subida que o conduz ao centro da cidade, depara com a empregada de certa loja solta no ar, pisando no espaço, para consertar o luminoso de uma propaganda fixada no alto da fachada do sobrado. Na rua próxima, ao dobrar a esquina, surpreende-se com carros rodando em fila, suspensos a metros do chão. No restaurante em que busca se refugiar, os garçons pisam em inexistente assoalho acima do verdadeiro. Os començais exibem bocas de feras. As bebidas levantam voo de taças e garrafas, estacionam acima das mesas dentro do salão. É quando, aí sim, o escritor chega à compreensão do “Que somos”. Nesse mundo, sem saber de onde viemos e para onde vamos, não passamos de fantasmas.

A pergunta que vinha desde o princípio tentando elucidar — qual a explicação para a excepcionalidade do ouro —, acaba permanecendo sem resposta. Simbolicamente ela está apenas corporificando a angustiosa busca de explicação para o enigma a envolver cada um de nós que, neste mundo, pisamos num chão que está permanentemente a nos escapar debaixo dos pés.

A criação literária precisa circular para que se beneficie com contribuições chegadas de fora. Uma crítica que sobre ela se aventure, por mais incompreensiva, rasa e vulgar que seja, pode representar ajuda para resolver problema, por exemplo, de comunicabilidade. Com Mergulho na região do espanto isso aconteceu. Numa segunda edição, pretendo contemplá-la com algumas modificações. Na página destinada a epígrafes, eliminarei a relativa ao ouro, assinada por Cecília Meireles, para permitir que a acima citada reine sozinha no espaço, talvez com letras mais incisivas. Na ultima página da narrativa o final passará a ser o seguinte:

Na pousada, o recepcionista ao entregar-me a chave do apartamento, sorria com a mesma boca de fera que havia observado no restaurante. Subi a escada de um lance para ganhar o primeiro andar pisando acima dos degraus, caminhei pelo corredor andando no espaço a pelo menos dois palmos acima do assoalho. No quarto, desinteressado de usar o telefone para pedir qualquer coisa da copa e mesmo abrir a geladeira e tentar forrar o estômago com biscoitos ou uma barra de chocolate, olhei no espelho e vi que também estava com boca de fera. Caí na cama, vestido como estava. Despenquei num sono nirvânico, pesado, que chegou sem dúvida para passar uma borracha naquele dia repleto de experiências tão díspares. Ao acordar, a janela que ficava escancarada, enchia o quarto de raios de sol. A cidade estava a conviver com uma manhã bastante fria. Tinha comigo a lembrança de um sonho que me impressionara como se tratasse de clara cena da realidade. Minha mãe, aparecendo ao pé da cama, com o semblante tranquilo de sempre, abriu a boca para me dizer: “Meu filho querido!”.

Leia resenha Fantasmas no raso, de Márcia Lígia Guidin.

Rui Mourão
Rascunho