As personagens dão movimento à narrativa. Seguimos uma personagem para sermos testemunhas dos seus feitos, destinos e decisões. Pensar sobre essas questões todas sobre a criação de uma personagem e a respeito dos elementos que a compõem fazem-nos pensar também nas personagens que lemos e as quais nos deixam curiosos sobre como foram elaborados por seus autores. É o que acontece com Acácio Nobre, personagem protagonista de A coleção privada de Acácio Nobre, de Patrícia Portela.
O livro é, antes de qualquer outra definição, um jogo. Precisamos montar o esquema pensado por Patrícia Portela para conseguirmos “talvez” chegar a uma conclusão sobre a enigmática figura de Acácio. O livro é formado por um conjunto de informações e recortes da vida do artista. A história tem como ponto inicial a abertura de um baú encontrado pela autora na casa dos avós. Dentro, encontravam-se objetos, cartas e documentos que pertenciam a personagem. Acácio teria nascido em 1868 e vivido até 1969 e foi uma figura que realmente existiu, mas que da qual não encontramos nenhum sinal ou vestígio (nem mesmo no Google). No entanto, foi contemporâneo de figuras singulares da sua época, inventor de coisas e ideias interessantes e sobretudo um visionário.
“Construtor de puzzles geométricos e conhecedor dos movimentos mais obscuros e alternativos das ciências (naturais, ocultas e outras) e as artes da sua época” — essa é a definição inicial que dá start ao jogo proposto por Patrícia. O “cisne negro” ou “sensato e sem tempestades” foi um homem que viveu o século 20 como um fardo e que estabeleceu curiosas relações pessoais, deixando uma marca “indelével” nos séculos que seguiram a sua existência (embora uma das singulares características de Acácio seja a invisibilidade). Participou do movimento futurista português, do círculo de surrealistas franceses e defendeu a república. E contava, inclusive, com um Clube de Amigos de Acácio Nobre.
Quebra-cabeça literário
Começamos a jogar com Patrícia. Nosso primeiro movimento é angariar todas essas informações que são distribuídas ao longo do livro-romance-jogo. Acácio não gostava de ser fotografado, embora tenha sido registrado pela lente de Man Ray, não se encontram imagens do artista. Além disso sofria de afasia, que é um problema de ordenação da fala, ou seja, a pessoa não consegue falar de modo compreensível. No entanto, Acácio escrevia longas cartas, manifestos, e desenhava seus puzzles e outras obras de arte. Chegou a desenhar para a Richter & Co. puzzles geométricos. Foi um dos seus mais assíduos colaboradores por mais de 25 anos. Uma de suas principais criações foi o Ovo de Colombo, que se desfazia em muitas peças e com as quais era possível montar um número vasto de imagens de aves. Havia em seu modo de pensar uma obsessão pela imagem, que para Acácio, estava em todo o lado. Também por suas ideias, foi investigado pela PIDE, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado, responsável por obter informações e cercear os indivíduos durante a ditadura portuguesa. No relatório que aparece no livro, é definido como um “louco, desenhador, alpinista e monge tibetano”. Não havia registros de sua identidade ou nascimento. E por todas essas qualidades era, de fato, subversivo e altamente perigoso, mesmo que se desconheçam quaisquer movimentos de Acácio neste sentido.
Escreveu para muitos políticos e importantes personalidades para solicitar auxílio na implementação de uma unidade do Instituto Fröbel em Portugal. A ideia do instituto era justamente o desenvolvimento do raciocínio lógico e da capacidade de desenhar, qualidades que Acácio considerava imprescindíveis para todos os indivíduos.
Figura curiosa e intrigante, Acácio, por mais dificuldades de expressão que pudesse ter, estabeleceu relações e diálogos com os homens do seu tempo, e através do seu pensamento, com os homens do passado e também do futuro. Dos seus contemporâneos, Patrícia traz um possível encontro com Fernando Pessoa (1888-1935) não por acaso, no café A Brazileira, ponto de encontro dos modernistas portugueses. Uma conversa filosófica e um tanto enigmática. O curioso no encontro é que ambos eram sujeitos múltiplos, que se desdobravam em diferentes modos de pensar e transcrever o mundo e a arte. Pessoa foi escritor, tradutor, editor, criador de jogos e slogans, entre tantas outras atividades. O livro de Patrícia recorda-nos uma obra sobre Fernando Pessoa, elaborada por Jerónimo Pizarro e Carlos Pittella: Como Fernando Pessoa pode mudar a sua vida, em que diversas e inusitadas facetas da vida do poeta são mostradas pelos pesquisadores, a partir de documentos coletados no espólio pessoano e em coleções particulares.
Patrícia também nos mostra Alva, a mulher misteriosa que havia lhe presenteado o artista com o brinquedo (uma bela obra de arte: um pronunciador de prazeres femininos) que Acácio trazia preso numa corrente em substituição ao relógio. Segundo a própria Alva, o objeto “serve para passar bem as horas em vez de verificar que horas são”. Joia que Acácio carregou por mais de 50 anos e que devolveu um dia.
Também Acácio Nobre escreveu um manifesto. Dele, emergem trechos que marcam sua perspectiva da vida, do movimento e do tempo, de ideologias, da destruição de barreiras geográficas, políticas e sexuais. Era um futurista, portanto, escrever um manifesto era necessário.
Distribuídas as partes do jogo, começamos a montar Acácio Nobre. Patrícia Portela não reconstrói Acácio, ela o constrói de uma outra maneira (lembra-nos Borges e seu Pierre Menard). Recupera os elementos nos objetos que lhe pertenceram, elabora uma voz para o artista que conseguimos entender ao longo de todo o livro. Há uma singularidade importante nesta obra da escritora portuguesa. Em romance anterior Para cima e não para norte, Patrícia oferece ao leitor uma personagem bidimensional, como aliás a maioria das personagens é: existem ali, chapadas nas palavras dos livros, compostas de ideias e tinta. Neste livro, do mesmo modo, há uma série de imagens, de colagens, de recortes que montam a ideia toda do romance.
Agora, temos a mais importante ação no jogo acaciano: a tridimensionalidade. É uma personagem com movimentos no mundo real. Acácio viveu, desenhou, escreveu diários, cartas e manifestos. Teve relações amorosas e de amizade, familiares e de ideias. Viveu o seu tempo de uma maneira ampla, mesmo com as dificuldades de expressão e tantas vezes o esquecimento de suas ideias.
Conseguimos quase tocar no braço de Acácio enquanto ele está desenhando, escrevendo em seu diário, tomando café no Chiado ou fugindo de uma foto. A biografia dessa personagem é no final do livro, complementada por uma linha temporal em que a autora mostra tudo que cercou Acácio em sua vida: a arte, a música, a história — o mundo a que ele pertenceu e ajudou a construir.