Michel Foucault aponta em Microfísica do poder três razões pelas quais entende como dificilmente utilizável a noção de ideologia. A primeira é que ela está sempre em oposição virtual a algo que seria a verdade. Segundo obstáculo: o fato de referir-se a alguma coisa como o sujeito. Para concluir, diz que a ideologia está em posição secundária com relação a alguma coisa que deve funcionar para ela como infra-estrutura ou determinação econômica, material, etc. Recomenda precaução no uso da noção.
A noção de ideologia que o leitor encontrará em A ideologia alemã, considerada por muitos a obra filosófica mais importante de Karl Marx e Friedrich Engels, remete ao aviso de Foucault: deve-se prestar redobrada atenção aos matizes do materialismo, do psicologismo e da religião, entre outros. No entanto, estes três são os mais evidentes ou mais questionáveis. O alvo dessa ideologia é a dialética hegeliana, e não seria a primeira vez que Marx e Engels se ocupariam dos hegelianos — em A sagrada família (1844) isso já se dava, bem como na Critica da filosofia do direito de Hegel (1843-1844). Neste A ideologia alemã Marx e Engels continuam fazendo críticas aos jovens hegelianos, os “hegelianos de esquerda”, os filósofos Ludwig Feuerbach, Bruno Bauer, um dos integrantes da “sagrada família” e Max Stirner. Estes se entendiam como revolucionários, mas Marx e Engels os viam como representantes de uma ideologia conservadora. Criticavam os jovens hegelianos por entenderem que as transformações defendidas por esse grupo só acontecia no âmbito do pensamento, conseqüentemente jamais atingiriam o plano da realidade. Combatem uma filosofia que eles mesmos professaram. O que espanta é entender como até certo ponto concordavam com ela.
Procure, curioso leitor, ler L’esprit du christianisme et son destin do aqui quase que ridicularizado Georg Wilhelm Friedrich Hegel. São cenas do Evangelho comentadas pelo então jovem filósofo. Se depois você conseguir entender as intenções de Marx e Engels, que não as de eleger um antagonista, me informe. Antes, porém, utilizaram e muito os preceitos de Hegel. Ludwig Feuerbahc, um hegeliano adaptado, foi eleito o alvo preferido, sem esquecer que este exerceu forte influência sobre Marx.
É indiscutível a quantidade de livros e textos à disposição sobre Marx e Engels, mas antes de se posicionar contra os jovens hegelianos, tendencioso leitor, procure ler algo de ou sobre o trio que Marx e Engels condenam. De preferência comece por Max Stirner, veja como ele trata o público e o privado. Enquanto isso você pensa, ó marxista leitor, sobre a pouca habilidade de Marx em tratar do privado.
O materialismo dialético histórico de Marx se opunha ao materialismo feuerbachiano em que a realidade material se encarregaria de proporcionar as condições de vida, deixando-o à mercê de suas circunstâncias. Brota nesse terreno sua percepção de mundo, em outra palavra, a ideologia. O pensamento e a realidade — a dialética se estabelece.
Duas correntes de pensamento vigoram na Alemanha: racionalismo e romantismo. Marx, por sua vez, preferia a prática de um materialismo dialético no qual objeto e pensamento dialogam, e o materialismo é preponderante, embora distante dos absolutismos. A práxis como razão/finalidade do pensamento de Marx. Entende Marx que a questão não se resume a interpretar o mundo a partir deste ou daquele ângulo, mas transformá-lo. O que importa é a prática, o homem como motor da história.
Divisão do trabalho
Impossível falarmos de A ideologia alemã — despudoradamente sarcástica e irônica em sua crítica aos jovens hegelianos — sem uma breve comparação com O manifesto comunista. Se no Manifesto a propriedade ou os tipos de propriedade eram características marcantes, A ideologia alemã, por sua vez se ocupa da divisão do trabalho. No Manifesto o tom é de opressão, classe dominando classe, podemos ver que em A ideologia alemã o que temos são indivíduos subordinados à divisão do trabalho. Desse modo, o mais significativo não é o fato de um indivíduo ser subordinado a outro, mas todos subordinados a uma instância superior. Ocorre aí a divisão do trabalho, trabalho material e espiritual. O homem é refém da divisão do trabalho, refém material e espiritual. Marx e Engels, no entanto, acreditam que com o comunismo se alcançará o fim da divisão natural do trabalho, produto da sociedade de classes. A sociedade sem classes talvez seja das idéias de Marx a mais utópica. E o fim da divisão do trabalho não quer dizer o mesmo que a extinção do trabalho? Impossível não passar por isso sem sentir o aroma da ingenuidade.
E o trabalho, disse Engels, é a fonte de toda riqueza. Parêntese para lembrar que a introdução do conceito de trabalho no âmbito filosófico deve-se a Hegel. Mas o trabalho é muito mais que isso. É a condição básica e fundamental de toda existência humana. Ainda Engels sobre o trabalho, é tão fundamental que devemos dizer que o trabalho criou o próprio homem. Desconfio disso e você também, caro leitor, é bom que duvide. Pela filosofia de Hegel, o mundo é produto do trabalho humano, uma realidade histórica fruto dos anseios coletivos. Nesse momento chega-se à conclusão filosófica, devido a sua capacidade de trabalho, que o homem é um ser histórico.
Junto com o conceito de trabalho, convém não esquecer, vem o de alienação, está lá no prefácio de O capital.
A trajetória ou a quase obsessão de Marx e Engels em combater Hegel parece encontrar seu sentido em Manuscritos econômico-filosóficos, de Marx, onde conclui que a alternativa à dialética hegeliana seria a teoria materialista da história.
Importante destacar o trecho de A ideologia alemã onde está enfatizada a necessidade da revolução justificada pelo fato de as classes dominantes resistirem às transformações e também como única via de o proletariado se livrar do pesado fardo do passado.
E ainda não falamos da questão religiosa. Para Feuerbach capacidade de abstração e alienação religiosa têm muitos pontos em comum. Nega a afirmação que garante ser o homem filho de Deus; no seu entender, o homem é o criador de Deus. “O homem é o Deus do homem.” Ao deixar de lado o trabalho, Feuerbach cai no simplismo da superioridade da consciência sobre a realidade. Marx, por sua vez priorizará o trabalho, o trabalho produzindo bens e o homem ao mesmo tempo transformado em bem, em máquina. A alienação assumindo seu papel. “Eles fazem, mas não sabem.”
Fiquemos por aqui.
Tenho minhas restrições à obra em questão, mas ainda não endoidei ao ponto de negar sua importância, e talvez por essas restrições existirem é que me dou o direito de dizer que essa edição veio melhorada, bem melhorada para ser justo.
O que faz a diferença? O trabalho de Marcelo Backes. Além de tradutor, talvez mais dois ou três entre os tupiniquins traduzam do alemão com essa mesma excelência, talvez um ou dois tragam erudição semelhante à de Backes, talvez um tenha o conhecimento da temática que ele tem. Traduzir não é apenas encontrar a palavra correspondente no idioma final, mas interpretar e esclarecer como faz Backes no seu magnífico prefácio e nas notas plenas de ensinamentos e estímulo à leitura.
Resumo ligeiro da ópera: uma crítica, quase em tom de deboche onde Marx e Engels desfazem do idealismo alemão e apresentam as divisões da dialética marxista — trabalho, forças produtivas, consciência, alienação, elegendo aí um novo corpus teórico.
Entre Marx e Engels, prefiro Hegel.