“O coração era o livro de leitura adorado na minha classe. Para mim, porém, não era um livro de estudo. Era a porta de um mundo, não de evasão, como o da ‘Viagem à roda do mundo numa casquinha de nozes’, mas de um sentimento misturado, com a intuição terrificante das tristezas e maldades da vida”. São essas as palavras do célebre poeta brasileiro Manuel Bandeira que estão na contracapa da nova tradução do romance Coração (Cuore: libro per ragazzi) de Edmondo De Amicis, publicado em 2011 pela Cosac Naify, com um posfácio de Antonio Faeti. Testemunho que confirma a circulação e a leitura da obra de De Amicis em terras brasileiras.
Publicado em 1886, numa Itália pós-unitária, visando um público de jovens, Coração tem desde a primeira edição sucesso e passa a ser divulgado e conhecido tanto nos países europeus quanto nas Américas. A estrutura de diário é a escolhida pelo autor para tratar do cotidiano do menino Enrico, num período que compreende todo um ano escolar. Todavia, além do diário, podem ser identificadas também a presença da narrativa breve e das cartas. Três gêneros que se entrecruzam.
A divisão é feita a partir dos dias, organizados dentro do calendário escolar, iniciando em outubro e terminando em julho, seguindo aquele do hemisfério norte. A frase inicial é paradigmática desse ambiente: “Hoje é o primeiro dia de aula. Passaram como um sonho aqueles três meses de férias no interior! Minha mãe me trouxe de manhã à Escola Baretti para me matricular na terceira série: eu pensava no campo e vim de má vontade”. Todas as dúvidas, incertezas, inseguranças, curiosidades e outros sentimentos que rodeiam o ambiente escolar e a relação das crianças com ele estão nas páginas desse romance.
É um livro, sem dúvida, de formação, como muitos de sua época, com ensinamentos de valores morais e cívicos. É importante lembrar que a sua publicação em terras italianas está relacionada com a atmosfera pós-unitária que se respirava na península. A convivência com os outros colegas, os professores, os deveres de casa, a família, as atividades do cotidiano e as festividades são temas que fazem parte desse diário de Enrico, que tem uma função pedagógica muito clara em sintonia com o seu tempo.
Paternalismo burguês
A busca e a harmonia de uma “identidade nacional”, no momento pós-unificação, é um dos temas centrais, que pode ser identificado nas seguintes partes: O pequeno vigia lombardo e O pequeno escritor florentino. Desse momento histórico italiano e da relação entre o norte e sul (sempre problemática nessa cultura), um outro episódio pode ser lembrado: O garoto calabrês, logo no início de Coração. Diz o professor à sua turma: “Vocês podem ficar contentes. Hoje, entra nesta escolar um italianinho nascido em Reggio Calabria, a mais de oitocentos quilômetros daqui. Recebam bem este irmão vindo de longe. Ele nasceu numa terra gloriosa, que deu à Itália homens ilustres, e lhe dá trabalhadores fortes e soldados corajosos; ele chega de uma das mais lindas regiões de nossa pátria […] Aprendam a gostar dele, de modo que não se sinta longe da cidade onde nasceu; mostrem a ele que um jovem italiano, em qualquer escolar italiana onde entra, encontra irmãos”. Fragmento que confirma o tom e o perfil desse romance de De Amicis, que está em sintonia com a frase do político Massimo D’Azeglio: “Feita a Itália, é preciso fazer os italianos”. Ainda em O garoto calabrês: “Para que isso pudesse acontecer, que um jovem calabrês se sentisse em casa aqui em Turim e que um jovem de Turim se sentisse em casa lá em Reggio di Calabria, nosso país lutou durante cinqüenta anos e trinta mil italianos morreram. Vocês têm de se respeitar, devem amar uns aos outros […]”. As palavras do professor, logo, desencadeiam sentimentos generosos, gestos de solidariedade entre os colegas de sala de aula, forças que podem mover a humanidade e comunhão.
Dessa forma, são os clichês morais, nacionalistas e patrióticos, além do foco no ambiente infantil, que nesse momento fazem com que Coração possa ter um sucesso internacional.
Apesar de seu sucesso, Benedetto Croce, na linha da filosofia idealista, não poderá ter uma crítica positiva desse romance. Nos primeiros anos do século 20, num ensaio dedicado à obra de De Amicis, coloca a autor na categoria dos “escritores moralistas”, negando-lhe assim a qualidade do “artista puro”. Já Umberto Eco, mais recentemente, no ensaio Elogio dei Franti, define o livro como um “manual de devoção umbertiana”, no qual De Amicis, a partir de uma ótica hipócrita e conformista, apresenta seu paternalismo burguês.
À distância dos anos
Se a primeira tradução brasileira data de 1891, feita por João Ribeiro e publicada pela Livraria Francisco Alves, de Rio de Janeiro/São Paulo, tem todo um ambiente favorável para a sua circulação, levando em consideração a inserção nas escolas da disciplina moral e cívica, e o perfil patriótico desejado, como pensar nos dias de hoje essa tradução que sai com uma tiragem de 4 mil exemplares? Como ler Coração nos dias de hoje? Questões não fáceis de serem respondidas, mas uma coisa é certa: esse é um livro que marcou gerações.
Marcas e vestígios de uma relação cultural entre Brasil e Itália que deixam rastros, como podem ser lidas as palavras Manuel Bandeira ou, ainda, o livro América, publicado pouco anos depois, em 1897, por Coelho Neto, que segue o modelo oferecido pelo escritor italiano. Sobre a relação entre De Amicis e Coelho Neto é interessante o artigo América: A republican utopia for brazilian children, de Patricia Santos Hansen.
Segundo outra estudiosa, Roberta Belletti, colaboradora do Dicionário bibliográfico da literatura italiana no Brasil (www.dlit.ufsc.br), essa mesma tradução de João Ribeiro foi reeditada várias vezes ao longo da primeira metade do século (1905, 1925, 1936, 1949…). O tom nacionalista que circunda a recepção da obra fica muito claro na Advertência, assinada pelo tradutor na reedição de 1925. Diz João Ribeiro: “Revendo a nova tradução que apelidamos de brasileira em cotejo com outra portuguesa […] Para os estudiosos e amadores de comparações entre a linguagem portuguesa da Europa e a da América, o texto pôde talvez apresentar alguma curiosidade. Feita para o Brasil, exclusivamente, como é em verdade a destinação de todos os livros brasileiros, a tradução agora revista oferece algumas correções úteis e necessárias”. É interessante notar nessa passagem a forte carga nacionalista.
Um livro que passa a ser adotado em muitas escolas e tem um papel importante na formação de alguns autores e na produção relativa à literatura infanto-juvenil, como já foi indicado. Além de Manuel Bandeira, facilmente poderiam ser lembrados Monteiro Lobato e Raul Pompéia. Outro exemplo do seu sucesso no Brasil é quinto número da Revista Excelsior (15/11/1913): na última página há o anúncio de um Concurso Literário com as seguintes indicações: “’Concurso Literário’ com o tema: ‘[…]a produção de um conto infantil feito à imitação de Edmondo De Amicis no Coração’”.
Contudo, Coração não foi o único livro de Edmondo De Amicis a ter uma boa circulação no país no início do século passado. Ainda segundo o Dicionário, outras duas obras, reportages de viagens, colaboraram para a presença desse escritor: A Holanda (Olanda), pela Livraria Francisco Alves, a mesma de Cuore, tem uma publicação datada de 1925, com tradução de Ferreira Martins; e o Clube do Livro, em 1927, lança Marrocos (Marocco), com tradução de Manuel Pinheiro Chagas. Esses dados só legitimam as palavras iniciais de Bandeira “o livro de leitura adotado na minha classe”.
Essa nova tradução de Nilson Moulin é apresentada pela Cosac Naify como um clássico esquecido tão importante num dado momento, que agora retorna ao mercado editorial nacional. Resta saber se à distância de tantos anos o romance ainda mantém seu appeal junto ao público.