Permanência de Gerd

A lucidez de Gerd Bornheim vai fazer muito falta num momento de primado do facilitarismo
01/10/2002

Poucos homens nascem dotados da capacidade de pensar em profundidade. Gerd Bornheim pertencia a essa estirpe rara.

Conheci-o ainda em Porto Alegre, no já remoto ano de 1967, quando o jovem contista, às vésperas da partida rumo ao eixo São Paulo-Rio, onde iria se aventurar pelo mundo do jornalismo, ofereceu ao intelectual já consagrado, dez anos mais velho, seu primeiro livro.

Gerd, que todos os sábados nos presenteava com densos artigos sobre Sartre, publicados no caderno cultural do Correio do Povo, acolheu-me com a generosidade habitual e retribuiu a oferta modesta com exemplares dos três ou quatro livros que já publicara à época, o que me levou a brincar que com aquela barganha ele saía perdendo em todos os sentidos. E ele no mesmo tom desejou o fracasso de minha viagem, dizendo que era uma lástima eu desertar Porto Alegre. Mal sabia ele que pouco tempo depois teria de fazer o mesmo.

Sua militância, ainda que essencialmente intelectual, incomodava o autoritarismo, inimigo natural da livre expressão e do debate das idéias: com o golpe militar de 1964, perdera a cátedra e a direção da Escola de Teatro da Universidade do Rio Grande do Sul, onde desenvolvia trabalho de alto nível. O acirramento da perseguição o levou a refugiar-se em Paris, onde, conforme confidência em carta a um amigo comum, o crítico literário Carlos Jorge Appel, chegou a passar fome. Recebeu posteriormente convite para lecionar filosofia na Alemanha, onde permaneceu alguns anos.

No regresso ao Brasil, fixou-se no Rio, onde nos tornamos vizinhos, durante os muitos anos em que ocupou um apartamento modesto, na rua Bulhões de Carvalho, na divisa de Copacabana com Ipanema. Às vezes o encontrava caminhando no calçadão, no fim da tarde, numa tentativa de proteger do sol forte a epiderme muito branca de sua ascendência germânica.

Quando me inscrevi como aluno em um curso seu de aproximação ao pensamento de Heidegger, pude testemunhar como seu espírito didático e generoso esforçava-se por simplificar e clarificar, tornando-os o mais acessível possível, conceitos extremamente complexos, sem nada abastardar. Era esse mesmo espírito que se fazia presente nas aulas como professor de graduação e pós-graduação da Universidade Estadual do Rio de Janeiro e nas freqüentes conferências que proferia, por todo o Brasil e no exterior, sobre seus temas prediletos: o teatro — onde era um dos grandes especialistas em Bertolt Brecht — e filosofia, sobretudo as de Sartre e Heidegger. Adorava essa atividade participativa, em que repartia sua vasta bagagem, incorporando a figura do intelectual engajado, embora sem jamais fazer proselitismos de qualquer tipo. Contudo, negava ser existencialista e nunca o vi tampouco se proclamar marxista. Mas sem dúvida essas duas grandes correntes filosóficas de nosso tempo foram fundamentais para ele e foi sobre elas que sempre operou. A sua terceira e sempre proclamada paixão era a música de Wagner, para ele uma das supremas realizações do espírito humano e que dizia sempre transportá-lo para uma dimensão de plenitude (ah sim, em tempo: consciente de que nem sempre o pão da arte e da filosofia é suficiente, confessava saber apreciar também os prazeres de uma mesa refinada).

A lucidez de Gerd Bornheim vai fazer muito falta, num momento de primado do facilitarismo e da superficialidade, em que campeiam a opressão e a inaudita ignorância das massas e em que a classe média busca na superstição e no pensamento mágico uma compensação para o vazio espiritual, decorrente do vil consumismo e do materialismo rasteiros impostos pela ideologia dos tempos chamados pós-modernos. Alcançado pela finitude aos 70 anos, sua voz se cala. Mas o legado de livros como O idiota e o espírito objetivo, O sentido e a máscara, Brecht — A estética do teatro e Sartre: metafísica e existencialismo, entre outros, além da memória de sua combatividade, permanecerão entre nós, como exemplo e fonte de inspiração.

Rubem Mauro Machado

É escritor, jornalista e tradutor. Autor de livros como A idade da paixãoO executante e Lobos.

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