Perfis memoráveis

Em “Três russos e como me tornei um escritor”, Máximo Górki revela todo o seu afeto a Tolstói, Tchékhov e Andrêiev
Máximo Górki, autor de “Três russos e como me tornei um escritor”
01/01/2009

Máximo Górki (1868-1936), pseudônimo de Alexei Maximovitch Pechkov, um dos grandes autores russos, fundador da chamada literatura proletária, é mais lembrado no Brasil por suas peças e romances. Sua obra ensaística, no entanto, é pouco conhecida, daí a importância da publicação de um volume reunindo os perfis que fez de Liev Tolstói, Anton Tchékhov e Leonid Andrêiev, e o relato Como me tornei um escritor, espécie de auto-retrato artístico, como bem define Manuel da Costa Pinto, no prefácio.

Nesses perfis, Górki revela, desde as primeiras páginas, seu envolvimento afetivo com os autores retratados. Daí, talvez, a sensação de que o leitor tenha de compartilhar com ele a experiência do convívio com os três grandes escritores; de sentar na varanda da mansão rural de Tolstói, ouvindo-o discorrer vivamente sobre os seus temas preferidos: o povo russo, as mulheres e os escritores do seu tempo; de ouvir Tchékhov falar com entusiasmo sobre o seu sonho de construir um sanatório para professores pobres das escolas rurais, em sua casinha branca de dois pavimentos na aldeia de Kutchuk-Koi, na Criméia; de compartilhar os arroubos delirantes de Andrêiev, caminhando com Górki pela avenida Niévski, em Petersburgo, “como bagres pelo fundo lodoso de um rio”.

A visibilidade das imagens descritas, a vivacidade das cenas, a objetividade dos diálogos e a densidade das reflexões fazem da leitura desse volume um deleite de certa forma raro em nosso tempo, quando o distanciamento crítico se impôs como referência para esse gênero de escrita.

Complexidades do gênio
Desses relatos — publicados originalmente em volumes independentes, na Rússia — o perfil de Tolstói é o mais extenso e detalhado. Thomas Mann referiu-se a ele como “o escrito mais importante do autor de Pequenos burgueses”, retrato memorável de uma espécie de deus das letras russas, grande pai de todos os escritores. Nesse perfil, diferente de todos os demais relatos do volume, Górki revela os sentimentos ambivalentes de amor e ódio, quando não de profunda repulsa e da exacerbada veneração que tinha pelo autor de Guerra e paz.

Sei, não menos do que os outros, que não há ninguém mais digno de ser chamado de gênio, ninguém mais complexo, contraditório e belo em tudo, sim, sim, em tudo. Belo num sentido singular, amplo e que escapa das palavras. Há nele algo que sempre suscitava a vontade de gritar para todo mundo: olhem que homem surpreendente vive na Terra! Porque ele é universal e, antes de tudo, um homem, um homem da humanidade.

O que não o impede de acrescentar, duas páginas depois:

Em Liev Nikoláievitch há muito daquilo que, por vezes, provocava dentro de mim um sentimento próximo ao ódio, e que se entornava em cima da minha alma, como um peso opressor. Sua personalidade, excessivamente inflada, é um fenômeno monstruoso, quase deforme; há nele algo de Sviatogor-Bogatyr [herói popular épico da Rússia], o qual a Terra não agüentava. Sim, ele é grande!

A imagem do Tolstói que salta das páginas de Górki é exatamente a de um homem tremendamente contraditório, “pecador dos pés à cabeça”, mas também “próximo ao coração do mundo” e “próximo ao coração de cada um de nós, para sempre”. Arrogante, autoritário, mas buscador incansável da simplicidade e do despojamento, tanto na vida real como na literatura. Daí o seu interesse quase obsessivo pela linguagem do camponês. “Vejam como os mujiques sabem criar bem. Tudo é simples, poucas palavras, mas muito sentimento. A verdadeira sabedoria é lacônica, como ‘Deus nos acuda!’”

A literatura, para ele, tinha que se despojar de qualquer forma de artificialismo para poder representar a realidade fielmente, sem adornos. Isto é mostrado no trecho em que, após ouvir de Górki a leitura de cenas da peça Albergue noturno, fala:

Em suas obras notam-se ataques de um galo de briga. E outra: você sempre quer cobrir todas as ranhuras e rachaduras com sua tinta. Lembre-se do que disse Andersen: “A douradura gastar-se-á e o couro de porco permanecerá”; mas os nossos mujiques dizem: “Tudo passará, só a verdade permanecerá”. É melhor não cobrir, porque mais tarde é você quem vai se dar mal. Além disso, a linguagem é ágil demais, com truques, isto não é o certo. É preciso escrever de forma mais simples, o povo fala de maneira simples, até parece não ter nexo, mas fala bem. O mujique não perguntaria: “Por que um terço é maior do que um quarto, se quatro é sempre maior do que três?”, como pergunta uma moça estudada. Não precisa de truques.

Exigente com as verdades
Em outra passagem marcante, Tolstói traduz a necessidade de se representar, na literatura e nas artes, também o aspecto infame e asqueroso da vida.

Após relatar a cena repugnante de uma mulher bêbada, caída na lama, ao lado do filho, “um menino loirinho, de olhos cinzas”, cujas “lágrimas corriam pelas faces”, diz ele para Górki: “Sim, sim, é horrível! Você viu mulheres bêbadas muitas vezes? Muitas, ah, meu Deus. Não escreva sobre isso, não é preciso (…), é vergonhoso escrever sobre coisas nojentas. Aliás, escrever por quê?”.

Mas, após meditar sobre as suas palavras, acrescenta que “é preciso escrever de tudo, sobre tudo, senão o menino loirinho ficará ofendido e dirá com censura: não há verdade, não há toda a verdade”.

O menino, diz Tolstói, “é exigente com as verdades. Nós devemos ser exigentes com as verdades”.

As opiniões daquele que, segundo Górki, semelhava-se a um deus bem russo, “sentado num trono de bordo, sob uma tília dourada”, eram sempre lapidares e primavam por fugir ao senso comum, muitas vezes sem qualquer preocupação com a coerência. Para ele, a tragédia mais torturante da humanidade — que “sofre de terremotos, epidemias, horrores de doenças e todo tipo de tormentos da alma” — “foi, é e será a tragédia da cama”. Declarava-se um grande conhecedor da alma feminina sobre a qual preferia, no entanto, calar.

Súler, Tchékhov, Serguei Lvóvitch e mais alguém, sentados no parque, estavam conversando sobre mulheres; ele ficou ouvindo muito tempo em silêncio e, de repente, disse:

Eu vou dizer a verdade sobre o mulherio, mas só quando estiver com o pé na cova direi, pularei para dentro do caixão, cobrir-me-ei com a tampa tentem me pegar depois!

Era implacável na análise dos escritores. Estranhava que Dostoiévski, autor, segundo ele, “cheio de cismas, de amor próprio, de caráter difícil e infeliz”, fosse tão lido. “Não entendo por quê! É pesado e inútil, porque todos esses Idiotas, Adolescentes, Raskólnikov e tudo mais não foi assim, foi mais simples e compreensível”. Reconhecia, entretanto, a “força de sua sinceridade”. Admirava Tchékhov, de forma paternal, a quem achava que a medicina atrapalhava sua obra, “se não fosse médico, a escreveria melhor ainda”.

Górki conviveu de perto com Tolstói nos últimos anos de sua vida, justamente quando este se isolara em sua propriedade rural, preocupando-se com a educação dos filhos dos camponeses, negando o “progresso” e a ciência, pregando a doutrina de Cristo e Buda, tendo à sua volta um grande número de discípulos, os “tolstoístas”, referidos por aquele como medíocres, interesseiros e maledicentes. O ambiente familiar envenenado por intrigas levaria, inclusive, o grande escritor a uma fuga insólita que resultaria em sua morte e numa campanha de difamação contra a mulher do escritor, Sófia Andrêievna Tolstáia, tema da enfática defesa de Gorki, também incluída nesse volume.

Perfis distintos
Manuel da Costa Pinto define muito bem, no prefácio, a passagem do relato sobre Tolstói para os de Tchékhov e Andrêiev.

Os dois outros retratos feitos por Górki parecem pertencer a outro mundo. Sai de cena a figura olímpica do escritor que dominou seu tempo, pintando-o em grandes afrescos; entra no palco a persona do escritor moderno, que encarna a má-consciência de uma época, impotente diante de uma realidade que apreende através de esboços sempre parciais.

Embora mais modestos, os perfis de Tchékhov e de Andrêiev guardam, entretanto, as qualidades básicas do anterior. Em ambos, Górki imprime o vigor do seu estilo, fazendo surgir, na mente do leitor, imagens admiráveis e vívidas — não apenas dos escritores, mas de homens vivendo intensamente o seu tempo — no que elas têm de essencial: no caso de Tchékhov a profunda generosidade com o povo russo, tão bem retratados nos seus contos e peças, a delicadeza, fina psicologia e arguta inteligência; no de Andrêiev a exuberância, os excessos, o descuido com o próprio talento, a excentricidade, o desgosto e o tédio de quem “(…) enveredava pela beira do abismo sobre um tremedal de demência, sobre um precipício, que, ao ser olhado, extingue a vista da razão”.

Era por demais evidente sua afinidade espiritual de Andrêiev com Edgar Allan Poe, um dos autores que mais admirava — inclusive na tendência mórbida e trágica dos seus próprios escritos, como se pode ver no conto Os sete enforcados.

Resisto à tentação de transcrever outros trechos desses perfis admiráveis. Na verdade, o de Tchékhov é, para mim, o mais tocante, a exemplo da descrição do enterro melancólico do autor de As três irmãs, à página 94. Limito-me, para finalizar esta resenha, a destacar, na última parte do livro, Como me tornei um escritor, a vivência pessoal de Górki, que, desde a infância, conheceu a privação, a fome, a miséria, tornando-as a matéria-prima dos seus contos, peças e romances. O que, aliás, justifica uma das duas respostas que dá à pergunta “Por que surge a vontade de escrever?”: “Embelezar com sua capacidade inventiva uma vida penosamente pobre”.

É essa vivência, mais do que muitas concepções estéticas do autor, então por demais apegadas à causa soviética, que preserva, talvez, o interesse do texto — e que nos permite lê-lo, ainda hoje, com grande prazer.

Três russos e como me tornei um escritor
Máximo Górki
Trad.: Klara Gourianova
Martins Fontes
208 págs.
Trilogia autobiográfica
(Infância, Ganhando meu pão e Minhas universidades)
Máximo Górki
Trad.: Rubens Figueiredo e Boris Schnaiderman
CosacNaify
Máximo Górki
Pseudônimo de Alexei Maximovitch Pechkov, nasceu em 1868, na cidade de Nizhini Novgorod, onde teve uma infância pobre, de órfão, marcada pela miséria e por privações que o levariam aos 19 anos, a tentar o suicídio. Experimentou vários ofícios, engajando-se, já na idade adulta, em atividades políticas com o objetivo de preparar a consciência revolucionária do povo russo, razão pela qual foi preso várias vezes. Dedicou-se intensamente à literatura e alcançou posteriormente um grande sucesso literário com seus romances, contos, peças e ensaios, dentre os quais destacam-se Minha infância, A mãe, Os degenerados e Pequenos burgueses. Eleito para a Academia Russa, teve sua eleição anulada sob o pretexto de que “não tinha seus papéis em ordem”, o que provocaria o afastamento de Tchékhov e Korolenko daquela instituição. Criador do realismo proletário, tornou-se escritor modelo da Revolução soviética, mantendo-se, entretanto, num nível muito superior ao que seria designado, na arte e na literatura, como realismo socialista. Morreu em 1936.
Carlos Ribeiro

É escritor e jornalista, autor de Já vai Longe o Tempo das Baleias e O Chamado da Noite, entre outros.

Rascunho