O mais grato — e infelizmente raro — prazer do crítico literário é qualificar um livro de genial. Pouco importa que ele não seja o primeiro a reconhecer o valor da obra, admirada por todos os que amam e estudam a literatura do Ocidente, pois lhe basta a satisfação de afirmar a seus poucos leitores: leiam, é genial — O aventuroso Simplicissimus, de Hans Jacob Christoffel von Grimmelshausen, lhes concederá exatamente o que promete em sua epígrafe: “afastar-se da loucura e viver onde a paz mora”.
Guardadas as devidas proporções, Grimmelshausen representa, para o barroco alemão, o que Manuel Antônio de Almeida e seu Memórias de um sargento de milícias significam para o romantismo brasileiro: arejamento, limpeza dos entulhos retóricos, do exagero exótico, da adjetivação excessiva; e predileção pela ironia. Para um tempo rico em poetas — e que teve grandes nomes, como o jesuíta Friedrich Spee, Paul Gerhardt (cujos versos foram musicados por Bach), Angelus Silesius e Andreas Gryphius (que também foi dramaturgo) —, é notável a escolha de Grimmelshausen pela prosa. Anônimo, esse empobrecido descendente de aristocratas tinha perfeita consciência de que seu trabalho ia na contramão da época. Movido por uma inesgotável sofreguidão de narrar, ele desprezou os falsos eruditos, os pretensiosos que produziam versos fúteis, ocos, e pôde, vivendo longe da influência deles, entregar-se ao romance, gênero que consolidou.
Primeiro grande romancista da literatura alemã, Grimmelshausen viveu num dos períodos mais conturbados da história, o da Guerra dos Trinta Anos (1618-1648), conflito iniciado pelo choque, no centro do Sacro Império Romano Germânico, entre os partidários da Reforma e da Contra-Reforma. A intervenção gradativa de vários países no combate transformou um problema localizado em uma guerra na qual as potências já não se preocupavam com a defesa de questões religiosas, mas, sim, com a luta pela hegemonia na Europa Central. Para se ter uma idéia da grandiosidade do conflito, quando a guerra terminou a população masculina da Alemanha estava reduzida à metade. O exército sueco, por exemplo, um dos mais sanguinários da história, destruiu, só na Alemanha, quase 20 mil povoados.
Maurício Mendonça Cardozo, no elucidativo posfácio de O aventuroso Simplicissimus, conta que a cidade de Grimmelshausen, Gelnhause, foi invadida pelos espanhóis em 1634, por ocasião da Batalha de Nördlingen, quando as tropas forçaram a população a se esconder nas florestas próximas. O escritor tinha 13 anos. Meses depois, foi preso e tornou-se ajudante de regimento, a seguir soldado e, salvo por saber ler e escrever, escrivão de regimento; mais tarde, secretário de chancelaria. Terminada a guerra, instalou-se na cidadezinha de Gaisbach, onde viveu da administração dos bens de algumas famílias e do comércio de vinhos. Lutando para conseguir uma situação estável, acabou nomeado prefeito de Renchen, na região da Floresta Negra, cargo que ocupou até morrer, aos 55 anos.
A lei do viver
Desconhecido, assinando seus livros com vários pseudônimos — todos anagramas de seu verdadeiro nome —, Grimmelshausen escreveu uma obra que não é apenas exemplo da conhecida dualidade barroca, das tensões antitéticas nas quais o homem se vê dividido entre suas paixões e Deus, entre o pecado e a virtude, a fugacidade do presente e a ânsia pela salvação. Sim, tais antíteses fazem parte do drama de Simplicissimus — e sua luta interior, as divisões de sua personalidade, as alternâncias de humor e de objetivo, bem como a insegurança e as mudanças abruptas provocadas pela guerra, conformam o quadro tipicamente barroco, em que a realidade parece se contorcer sobre si mesma, transformando a vida do protagonista numa infindável sucessão de alterações de curso. Mas não só. Há um brilho especial na inconstância, no verdadeiro caos, nas volutas de equívoco que engolfam o protagonista. Ele pode oscilar entre a alegria e a tristeza, a compenetração e o arroubo guerreiro, a luxúria e o isolamento, a liberdade e a prisão, o amor e a misoginia, a busca da santidade e a pilhagem, mas está sempre imbuído de sinceridade, de certa leveza e de propósitos que, bons ou maus, nos seduzem. Ao mesmo tempo grave e sutil, Simplicissimus é um pícaro perspicaz, de finíssimo humor, dissimulado, encantador, que jamais se nega à auto-análise, à introspecção. Ele nos fascina a cada página, pois seus dramas não o derrotam, mas servem para impulsioná-lo a novas aventuras, agarrado à vida, sem jamais conceder às dúvidas e aos temores aquela propriedade da angústia quase absoluta que domina os heróis da literatura moderna. Trata-se de um homem que alcança a mais refinada forma de sabedoria: consegue rir dos acontecimentos e, principalmente, de si mesmo.
Essa densa obra, parcialmente autobiográfica, na qual a sátira está embebida de lirismo, inspira-se nos romances picarescos espanhóis — Grimmelshausen deve ter lido o Lazarilho de Tormes, traduzido para o alemão em 1617 — e funda o Bildungsroman. Pastor de cabras e ovelhas, filho adotivo de camponeses, Simplicissimus lentamente evolui: toma consciência de sua própria ignorância; aprende a arte da malícia; torna-se hábil esgrimista, soldado invejado pela coragem e astúcia; especializa-se na artilharia e na construção de fortalezas; inventa aparelhos curiosos e fantásticos; domina a técnica da composição musical e aprende a tocar vários instrumentos; alcança a fama como ladrão e ator; desvenda segredos da alquimia; estuda astrologia, matemática, astronomia, cabala, teologia; viaja pelo mundo; e é disputado como amante. Narrando suas aventuras e desventuras, Simplicissimus muitas vezes olha a própria história em retrospecto, e pode avaliar seu passado com os olhos de um homem sábio, culto. E se demonstra desilusão, ela é passageira, pois viver exige presteza, diligência. Matreiro e, ao mesmo tempo, justo, há uma ética subjacente a todos os seus atos. Espirituoso, sempre com respostas e perguntas na ponta da língua — o tradutor, Mario Luiz Frungillo, teve o cuidado de elaborar notas que explicam os divertidíssimos trocadilhos —, ele tem a virtude de conceder à pregação moral um papel menor em seu discurso, pois seu principal desejo é o de que conheçamos um tipo humano peculiar, ele próprio, síntese de todos os homens, que pretende nos ensinar a lei que, em sua opinião, rege o viver:
Oh singular agir! Oh estar tão inconstante!
Quem pensa em se firmar, logo é impelido adiante.
Oh condição fugaz, cuja queda segura
Vem antes da suposta paz, certeira e dura
Como a morte. Do que esta instável existência
Fez comigo se pode aqui tomar ciência,
E comprovar por fim que a inconstância apenas
É constante, ela só, na alegria e nas penas.
Engenhosidade
Otto Maria Carpeaux diz, com acerto, em sua História da literatura ocidental, que Grimmelshausen “aspirava a um cristianismo além das confissões dogmáticas”, mas discordo dele quando afirma, no Literatura alemã, que o fim de Simplicissimus é a conversão. Primeiro, porque no final do Livro V (a tradução brasileira engloba os seis livros que formam o corpo principal das aventuras simplicianas), quando o protagonista se despede do mundo, ele apenas retorna à vida de eremita (que já experimentara no início da obra) e consuma o despojamento que, gradativamente, vinha realizando, sem adotar qualquer religião em especial. E, segundo, porque ainda que o Livro VI termine com o herói recusando-se a voltar à civilização, depois de viver anos numa ilha deserta à qual fora lançado durante um naufrágio, sabemos que Grimmelshausen deu seqüência às aventuras de seu personagem com mais quatro livros, publicados entre 1670 e 1675. Neles, segundo Walter Muschg, em História trágica da literatura, “Simplicissimus volta à Alemanha transformado em um curandeiro milagroso, invocador de espíritos e descobridor de tesouros; ganha a vida escrevendo trovas (…) e como vendedor ambulante de um médico com quem percorre novamente metade da Europa. Agora ele é ‘uma raposa velha, que viu, ouviu, aprendeu, leu e experimentou muito durante a vida’”. Reafirmando o lado finório da personalidade de seu protagonista, Grimmelshausen, ainda segundo Muschg, transforma a charlatanice em parábola poética: “Simplicissimus está construído totalmente sobre o tema do ilusório, e a maneira como seu autor segue reelaborando-o só pode ser explicada pelo prazer do jogo hermético, que ele leva no coração como todos os gênios do cômico”.
Mas Grimmelshausen também faz uma radiografia da severa estratificação social daquele período e da desordem criminosa provocada pela guerra, analisa a organização dos estados, coloca na boca de um louco duras críticas aos governantes, escreve literatura de viagem, cria sonhos que são parábolas e apólogos, e produz acontecimentos de pura fantasia, nos quais Simplicissimus é transportado a um sabá, visita certo mundo subaquático, no qual vivem estranhas e geniais criaturas, domina as artes da magia e chega a dialogar com a folha de um caderno in-oitavo: antes de lhe servir como papel higiênico, ela reclama da fugacidade de sua vida e solicita, em nome dos inúmeros serviços prestados, que não seja utilizada para um fim tão desonroso; o que, evidente, lhe é negado.
Dono de fantástica engenhosidade, Grimmelshausen jamais teme mostrar os vícios, os defeitos de seus personagens. Sem idealizar a humanidade, lutando para sobreviver num tempo hostil e precário, o escritor consegue arrancar da imaginação a síntese buscada não só pela literatura barroca: à única regra invariável da existência, a inconstância, o homem não deve responder com lamentos, mas, sim, tomando distância dos fatos; não sem antes dar uma sonora gargalhada.