Trios e duos. O norte-americano Cormac McCarthy parece gostar de combinações de números e uma nova edição do livro central da Trilogia da Fronteira acaba de ser lançada. Trata-se de A travessia, que junto com Todos os belos cavalos e Cidade das planícies (este, esgotado há tempos) fecha a conta. Mas se o Meio-Oeste norte-americano — misturado a alguns cenários áridos do México — dá forma a uma trilogia em que a errância rege e confere o tom, o duo composto por O passageiro e Stella Maris parece abrir uma nova frente de trabalho importante na obra do escritor, quase sempre apontado como um dos grandes nomes da prosa dos Estados Unidos, o que não deixa de carregar certo exagero. É uma obra toda cheia de articulações, isso sim, como essa preocupação com números parece transparecer.
Por exemplo, o que mais sobressai em A travessia é a atenção minuciosa a detalhes, uma prosa meticulosamente realista, que acompanha a trajetória de um garoto de dezesseis anos, Billy Parham, do Novo México, nos Estados Unidos, até o México propriamente, em ida e volta várias vezes, a pretexto de lhe contar a predisposição para a errância.
Billy mora numa fazendola da família com pai, mãe e o irmão mais novo, Boyd. Tudo bem, há um lobo à solta que ataca o gado e é preciso capturá-lo. Mãos à obra, pegam-se armadilhas emprestadas de um vizinho, mas o lobo é esperto demais e leva bastante tempo até cair numa das armadilhas. Ou melhor, loba, feminino, porque entre os rastros e pegadas do animal na neve é possível vislumbrar sinais das tetas, indicação de que está grávida. Leva-se um tempo razoável até a captura. E então, do nada, o garoto decide que vai levá-la de volta ao México, de onde ela deve ter vindo. Sem comunicar nada a ninguém, claro, é uma espécie de decisão súbita fruto de epifania, do tipo que muda a vida de alguém para sempre. A decisão, no caso, pela errância.
Ele se torna subitamente aqueles caubóis que você vê nos filmes de faroeste, dormindo à noite em torno de uma fogueira, com o cavalo por perto, enrolado em manta. E no dia seguinte cavalga. Homem e cavalo meio que se tornam a mesma entidade. Se a loba estava perdida muito além das fronteiras, agora é Billy quem parece mergulhar num mundo estranho. Embora ele fale espanhol muito bem, não é a língua o problema de fundo, veja bem. A avó era mexicana e ele cresceu falando espanhol, que aliás está salpicado o tempo todo pelo livro. Um velho que encontra pelo caminho lhe diz para interromper as perambulações, porque poderiam virar paixão “e por essa paixão se apartaria dos homens e por fim de si mesmo”. É uma espécie de profecia, porque é justamente o que vai acontecer com Billy. Quando ele volta para casa, os pais morreram e o irmão o aguarda. Eles agora voltam juntos ao México, à procura dos cavalos que foram levados com o assassinato dos pais. Mas é só pretexto para mais errância. A certa altura o que se percebe é que McCarthy está interessado no conteúdo das narrativas: “Todas as histórias são uma só”. As diferenças do mundo, ou das pessoas nele, se reduzem à mesma similaridade. Nas idas e vindas, Billy chega a tentar se engajar na Segunda Guerra, mas é recusado três vezes por três médicos distintos em três cidades diferentes, por ter um descompasso no coração que o inabilita para o recrutamento. A última vez que volta ao México é para trazer de lá os ossos do irmão mais novo, Boyd. É a primeira vez que encontra o que procurava: “Mas não tenho a menor dúvida de que não é o que eu queria”. Há uma tristeza comovente nesse personagem em constante deslocamento, que se reflete num deslocamento que sente em relação ao entorno, uma inquietação permanente e incômoda que transparece o tempo todo, embora nunca se saiba o que vai pelo interior das personagens, a não ser aquilo que se justifica pelos diálogos esparsos. O que se sabe é o que fazem, as ações, gestos.
Tristeza infinita
Por isso, é curiosa a forma como a Trilogia da fronteira se articula com o díptico composto por O passageiro e Stella Maris. Porque o primeiro volume do duo parece guardar algo dos livros da trilogia, a errância como fundamento, o realismo descritivo como técnica. Embora ele tenha, no início de cada capítulo, um começo de estranhas conversas grafadas em itálico, e que o leitor demora a entender bem do que se trata. O passageiro conta a história de um mergulhador, Robert, ou melhor, Bobby Western, especializado em salvamento, isto é, qualquer carga que tenha se perdido no fundo do mar, ou de rio, vai contratar a empresa para a qual Bobby trabalha e ele entra em ação. É algo perigoso, mas um perigo controlado. Sabe-se que Bobby tem tendência a gostar de atividades arriscadas, correu de carro na Europa, acidentou-se, ficou em coma por um tempo. Sabe-se que Bobby é apaixonado pela irmã mais nova, Alicia, que é muito bonita e foi matemática, mas está envolvida demais com a própria loucura (o que explica as conversas estranhas no início dos capítulos, são as conversas da irmã com as alucinações). E agora sabe-se que Bobby se envolveu numa história estranha, depois de mergulhar para ver o que se salvava num avião que caiu no mar e percebe que falta um passageiro e talvez seja ele quem tenha provocado o acidente, porque falta também a caixa-preta do avião e os planos de voo. A partir daí, a vida de Bobby muda a ponto de parecer que nada mais dará certo e ele nem sabe exatamente quem está mexendo os cordames para assegurar isso, se FBI, CIA, ou talvez coisa pior, ou ainda pior do que pior: apenas a própria paranoia. O fato é que ele precisa sair do radar e também inicia uma trajetória de errância e tristeza infinita, outro ponto de articulação entre as obras, além do realismo empedernido e aparentemente superficial.
O que tira o risco de cena, no caso do autor, é o domínio em que ele quer se mostrar competente, o de escavar as profundezas humanas, mesmo revelando tão pouco, na aparência, ao fingir permanecer na superfície. Nesse sentido, O passageiro é livro bastante competente, também minucioso, está tudo certo, tudo na linha do que vinha acontecendo até agora em se tratando de um romance de Cormac McCarthy. Um pouco de estranheza com as passagens em itálico, vá lá, mas ainda assim um McCarthy clássico, dentro da cartilha, que discorre a respeito de personagem errante, tristonho, macambúzio, curtido pelas adversidades do caminho.
A coisa muda de figura, e muda radicalmente, com Stella Maris, de longe o melhor dos três livros e sozinho um dos melhores que McCarthy escreveu. Literatura de alto padrão e talvez um dos grandes livros que ele jamais escreveu ou conseguirá escrever de novo. Se alguém sinalizava que o escritor pertence a estirpe dos grandes romancistas norte-americanos, com esse livro sozinho pode cravar: está correto. Aqui acabou a errância, pelo menos no sentido mais trivial de mobilidade. Se O passageiro acompanha a versão de Bobby dos acontecimentos, Stella Maris é o ponto de vista de Alicia, e o impressionante é como as diferentes abordagens ajudam a iluminar certos pontos escuros de um e de outro dos livros. O título faz referência a uma instituição psiquiátrica em que Alicia, por livre e espontânea vontade, se faz internar pela terceira vez, aos vinte anos de idade, no estado de Winsconsin. Vinte, é isso mesmo, ou seja, muito jovem. Mas com uma história cabulosa de inteligência e tristeza.
O que o livro tem são as aparentes transcrições das fitas de sete sessões de Alicia com um psiquiatra, o doutor Michael Cohen, em que falam a respeito de tudo, tudo mesmo, o que importa. E se existe uma tradição romanesca de pacientes a conversar no divã (lembram-se do clássico de Philip Roth, O complexo de Portnoy, do fim dos anos 1960?), esse aqui chega com vontade de desbancar os demais. Trata-se de um longo diálogo de forças conflitantes, em que Alicia é claramente a mais inteligente dos dois, mas assolada por paranoia esquizofrênica, como diz o prontuário de internação. Ela tem alucinações visuais, seria algo a ser dito, do ponto de vista formal. Ou melhor, teve, no passado. Mas a definição que dá para o que vê ganha outros nomes. Por exemplo, o doutor Cohen fala em espíritos familiares, enquanto ela chama a trupe que lhe aparece de as hortes. Entre as personagens com as quais interage está um anão nomeado Kid Talidomida, por ser um anão (Alicia corrige o doutor todas as vezes, ao preferir o politicamente correto gente pequena) deformado, que em vez de braços tem barbatanas. Para gerações mais jovens, talvez seja necessária uma explicação lateral aqui, ou seja, dizer que talidomida foi medicamento para enjoo de grávidas que resultou em efeitos colaterais danosos: crianças que nasceram sem alguns membros do corpo, nos anos sessenta e setenta do século 20. E que demorou mais do que devia para ser banido do mercado.
Alicia estava no doutorado, sim, com parcos dezessete anos e antes de abandonar a instituição mais careta que é a academia para trocá-la pela clínica para lunáticos. Alicia estudava topologia, a teoria dos topos (faça um teste, leitor, digite essa expressão na Wikipedia e tenta entender o que está escrito ali, se faz favor). O criador dessa teoria, o matemático alemão naturalizado francês Alexander Grothendieck, teria sido um dos chapas e coleguinha de Alicia, antes de ele também se afastar da matemática. Ela, entre outros motivos, porque a tese que escreveu prova três problemas na teoria dos topos e depois passa a demolir o mecanismo das demonstrações, o que coloca em xeque inclusive o que fundamenta a teoria e os problemas que tenta provar. Não é brinquedo.
Quando o doutor Cohen pergunta a ela se está decepcionada com a matemática, ela responde que esse seria um modo de dizer. O que aconteceu?, o médico quer saber.
“Fui influenciada por um grupo de equações diferenciais parciais malignas aberrantes e totalmente maliciosas que conspiraram para usurpar sua própria realidade dos circuitos questionáveis do cérebro de seu criador de um modo não muito diferente da rebelião descrita por Milton e para hastear as cores de sua bandeira como uma nação independente que não presta contas nem a Deus nem ao homem”, ela responde. “Algo nessa linha.”
Perceba, o que acontece é que se está diante de uma inteligência superior, muito superior, capaz de ser genial e enlouquecida (uma coisa não exclui a outra, bem entendido, e loucura é um dos riscos colaterais de ser gênio, todo mundo sabe) e ainda humorada, um tipo de humor muito refinado, porque é capaz de rir da própria desgraça. Quando o psiquiatra lhe pergunta que outra coisa ela gostaria de ter feito, se não fosse a matemática, ela dá resposta sucinta: “Morrido”. Agora, para se criar uma personagem com esse nível de inteligência e refinamento, é preciso ser ainda mais inteligente e refinado, o que leva de volta à questão a respeito do passo além que esse livro pode representar na trajetória literária de McCarthy.
Questões importantes
Entre outras façanhas, o livro passa em revista testes psiquiátricos (o Stanford-Binet, por exemplo), as teorias matemáticas em andamento (teoria dos jogos, topologia, o modo como Wittgenstein atrapalhou os projetos de muita gente, a teoria do maço de fibras), engloba filosofia, ideações suicidas, música (o violino Amati em que ela investiu grande parte da herança recebida e os desdobramentos decorrentes disso e de outros fatores), enfim, uma série de questões importantes, discutidas de maneira competente e densa, mas não menos dramática e sensível. Por exemplo, as implicações de o pai dela ter sido um dos físicos que trabalharam com Oppenheimer no Projeto Manhattan. “Quem não percebe que o Projeto Manhattan é um dos eventos mais significativos da história humana não está prestando atenção”, arrisca a paciente. Ao lado do fogo e da linguagem, acrescenta.
Acontece que, não bastasse, Alicia nutre um amor não só fraterno pelo irmão, o que é mencionado e discutido no primeiro livro, mas tratado por Bobby de maneira meio rasteira, ou assim me pareceu. Talvez porque Bobby faça parte da obra descritiva, realista e fingidamente superficial de McCarthy. Mas agora que o leitor está aqui no divã junto com Alicia, não tem mais sentido qualquer tratamento superficial. Ela discorre, sem papas na língua, a respeito dos sentimentos e também dos impedimentos, o tabu do incesto, limitações sociais, convenções que afinal contiveram o irmão (ela não estava disposta a seguir os protocolos da civilização, ao contrário dele, e para certo desconforto do psiquiatra, que parece desolado e algo perdido em meio a tantas confissões, embora siga mantendo a pose).
No entanto, o peso maior é mesmo o de uma existência miserável e dramática e não só em decorrência das convenções. A inteligência em algumas pessoas, mais do que bênção, lembra fardo insuportável. Alicia tem ideações suicidas? Sim, e conversa também a respeito delas. No primeiro dos livros, sabe-se que Alicia acabou por se suicidar. Então o que se lê agora é a antessala do fato, o que é forma de uma obra anterior iluminar a outra (cronologicamente, a leitura deveria começar por Stella Maris). Quando o assunto aparece, ela diz a certa altura, como crítica ou como queixa, difícil definir, para o psiquiatra: “Seu mundo se sustenta numa coletividade de concordâncias”. E aí espicaça o que resta. Em prol do doutor Cohen é possível dizer que ele pelo menos está atento, preocupado, interessado na escuta (o que não se pode dizer de muitos de seus colegas). Até a respeito do momento em que raiva vira tristeza, na infância, é tema para eles. Alicia pensou a respeito do assunto e acha que sabe o motivo que faz essa conversão em crianças:
A injustiça que motiva o desespero é irremediável. E a raiva está reservada apenas ao que acreditamos que pode ser consertado. Todo o resto é tristeza. Chega uma hora em que elas percebem isso.
Por último, o fecho do livro é um dos mais pungentes que já li, embora o leitor saiba desde o anterior o que acontece (talvez por isso mesmo). Está num nível de desolação que poucos autores conseguem alcançar. Enfim, não há outra expressão para definir o resultado: obra-prima.