Perdido entre coisas e linguagem

Nos poemas de "O enigma das ondas", Rodrigo Garcia Lopes apresenta uma proposital indecisão entre a realidade como ela é e sua possível representação
Rodrigo Garcia Lopes, autor de “O enigma das ondas”. Foto: Elisabete Ghisleni
02/04/2021

Não se contam poemas, mas eu vou contar este mesmo assim: uma lâmpada Philips à beira-mar é recolhida por uma turista e depois é atirada novamente na areia. Sabemos que provavelmente é noite, pois está escuro quando a mulher vai embora e a lâmpada sobre a areia, como que num passe de mágica, “se acende/ rebrilha// água-viva”. O poema, de Rodrigo Garcia Lopes, chama-se Verão.

Num primeiro momento, com uma leitura mais apressada, poderíamos dizer que ele se apoia na forma do haikai (embora não a sua fôrma: não se apresenta em três versos justamente metrificados, mas em vinte e três). Claro, somos apresentados a uma imagem (a lâmpada queimada), que é submetida a um desenvolvimento lógico da cena (a chegada da turista, que a toma nos dedos e a atira na areia) do que se segue uma transformação mágica (a metamorfose em água-viva). O título, referindo-se a uma estação, sustenta a interpretação de uma espécie de modernização da forma japonesa.

E, no entanto, Verão é um texto que nos apresenta uma “arte poética”, e de certa maneira nos dá uma leitura de O enigma das ondas, livro do qual faz parte. Ele designa o estado ambíguo em que se encontra a voz desses poemas: entre o ceticismo de uma existência em absoluta inconformidade com o mundo e o testemunho dos eventos mágicos da “vida, este mal-entendido”, nas palavras do poeta. Isto não é apenas um “estado de espírito”, mas efetivamente um projeto poético: uma proposital indecisão entre dois âmbitos da realidade, o do canto (que se faz na “aceitação das coisas”) e o do papel (onde não existem janelas senão “as janelas das palavras”).

Perdido entre coisas e linguagem, sem se decidir se a realidade de onde extrai poesia é ela mesma substância ou letra, o poeta dá à luz textos suspensos entre as duas coisas, tais como:

O mundo passa
pela janela da palavra
para tocar a realidade

mas a realidade
de repente se fecha
na imagem de uma concha:

uma concha
é um mundo onde
coube uma palavra

Isto nos basta:
fechamos as palavras das janelas
e abrimos as janelas das palavras.

Podemos chamar isso de indecisão ontológica. Ou estadia no inferno — para citar um título do poeta francês Arthur Rimbaud, para quem essa estadia significou não apenas a alquimia do verbo (modificando o tempo do “metal” das palavras), como também uma posição de indecisão sobre o ser das coisas. Em Rimbaud, isso o preparava para uma grande saída da literatura para a vida, o que permitiu bagunçar um pouco as coisas depois disso — quer dizer, a vida deixou de ser vida e a literatura deixou de ser literatura.

E por falar em Rimbaud, é verdade que, enquanto Rodrigo Garcia Lopes comenta a realidade brasileira (tanto a literária — para a qual o poeta dirige palavras bastante duras — quanto a política — que se lhe assemelha ao Império Romano, com suas catástrofes e tragédias), traça diálogos explícitos com a tríade francesa que esgarçou o verso na modernidade — Rimbaud, Baudelaire e Mallarmé.

Este último comparece como sombra do poema que abre o livro, Aéreo reverso (o título se refere a uma manobra em que o surfista salta, chuta a rabeta da prancha, começa a girar no ar e termina na água — ou, dito de outra forma, começa o giro numa realidade e precisa terminar em outra), que identifica na palavra “surfista”, e no seu uso no poema, uma realidade estritamente literária (forma cética da comunicação; “a palavra surfista desce a onda verso”) capaz de realizar, não obstante, uma “manobra clássica” que faz com que ela, a palavra, atinja “o lábio da onda” e “voe” (forma mágica da comunicação). E no poema Canto único, que fecha a primeira seção do livro, o poeta, que começa “no alto e à esquerda da página oceânica”, termina designando “o poema como uma zona de arrebentação”.

Esse estado de espírito, de suspensão entre ceticismo e crença em algum poder mágico, se afirma, em Lopes, como resposta à sensação de que a vida é (e aqui há também uma paráfrase francófona, embora, nesse caso, de alguma filosofia contemporânea) repetição e diferença:

E o que é a vida senão essa sequência,
repetição e diferença,
          suel iridescente, nadador anônimo que alcança
o espaço que o separa de uma linha que já retorna,
imprevisível cesura (…) 

Só peço que olhem para nós alguns segundos
escombros sobras assombros sombras restolhos
    ouçam e escutem sintam percebam respondam estes brancos
estrondos 

o verde-água que veste e desveste esta muralha de afetos

A embriaguez das formas
Como ler este que é o sétimo livro de Lopes na cena da poesia contemporânea? As comparações a que procedemos não são a título de valoração, senão meramente que de estabelecimento de critérios para designar semelhanças e dessemelhanças entre o poeta e seus pares. Certamente, trata-se de um livro atípico. A começar pelo volume, numa época em que os livros tendem a ser cada vez mais breves.

Tematicamente, O enigma das ondas se assemelha a Mais cotidiano que o cotidiano, de Alberto Pucheu, que realizou alguns experimentos com a imagem do surfe e dos surfistas, enquanto também comentava a vida política do país; mas nos procedimentos “ontológicos” (ou seja, de manipulação dos níveis de realidade entre linguagem e coisas), Lopes se aproxima de livros como Escala Richter, de Leonardo Gandolfi, ou Ano novo, de Leila Danziger. À parte este procedimento, em muito pouco se aproximam as poéticas destes dois últimos à do autor de O enigma das ondas — são, em realidade, projetos quase opostos.

Por fim, e não mais a título de comparação, podemos ainda destacar a elasticidade plástica de seus poemas: indo do soneto ao verso espalhado na página, seu livro se configura como uma espécie de “laboratório das formas”, ao mesmo tempo em que sustenta um discurso direto e não hermético, o que causa certo choque, ao fazer comparecerem, ao mesmo tempo, uma postura formalista e uma vontade de comunicação. Como no poema homônimo de seu livro, em que Lopes destaca certa embriaguez das formas dentro da aparente repetição das ondas:

Porque se repetem, sempre se repetem
bêbadas de formas, ideias, de lucidez.
Porque estão em toda parte, como da primeira vez,
pedindo a nossos olhos que infinitem.

É tentador terminar uma resenha com uma resposta para um livro que propõe um enigma. Não o farei. O enigma das ondas não é um ponto de chegada da leitura, mas um ponto de partida, de onde o “barco bêbado” parte, e para o qual não há retorno. Mas ainda é preciso dizer que essas ondas que o balançam são uma estratégia de contrastes. Para todos os efeitos, basta o leitor se atentar para o fato de que, dos ceticismos que ajudam os poetas a separar palavras de coisas e a esmerarem o que chamam de técnica (o apuro da palavra autônoma, livre de suas ditas amarras com o suposto real — as correntes que a prendem ao referente, numa palavra), Lopes bebeu provavelmente de quase todos. E se o poeta designa a “luz de outono como emblema do real”, é em outro poema que nos apresentará esse retorno mágico das coisas na forma de uma fábula:

Uma tarde um tigre
          caçou o sol de outono;

Ele coube em sua pata
          mas o deixou fugir.

O sol raiou bem cedo
          pelo bosque de cedros.

Deixou o tigre
          raiado também.

O enigma das ondas
Rodrigo Garcia Lopes
Iluminuras
152 págs.
Rodrigo Garcia Lopes
Nasceu em 1965, em Londrina (PR). É poeta, romancista e compositor. Também é tradutor, tendo vertido para o português obras de escritores como Sylvia Plath e Arthur Rimbaud. O enigma das ondas é seu sétimo livro.
Rafael Zacca

Poeta e crítico literário. É doutor em Filosofia pela PUC-Rio. Professor de Estética do departamento de Filosofia da PUC-Rio. Ministra oficinas de criação literária. Autor de O menor amor do mundo (7Letras, 2020, poemas) e Formas nômades (Urutau, 2021, crítica).

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