Perdido em território estranho

Em “Terrorista”, John Updike abusa do lugar-comum e faz de Ahmad, o protagonista do romance, um amontoado de clichês
John Updike: bom na caracterização do americano comum.
01/05/2007

Ao longo de uma produtiva carreira, que se aproxima dos 50 anos de duração, John Updike sempre manteve os olhos bem abertos em relação ao que acontecia em seu país. São poucos os movimentos, desequilíbrios, comportamentos e idéias norte-americanos que não passaram, ao menos en passant, pelo crivo de sua prosa minuciosa e detalhada. Um bom exemplo é a sua obra mais famosa, a chamada tetralogia Coelho, em que o autor acompanha, por quatro décadas, a trajetória do vendedor de carros Harry Angstrom, utilizando como pano de fundo os eventos que marcaram os Estados Unidos no período: o puritanismo e a falsa tranqüilidade do governo Eisenhower em Coelho corre; a contra-cultura, a corrida espacial e o advento dos movimentos negros em Coelho em crise; a falta de petróleo e os yuppies em Coelho cresce; a transição entre Reagan e Bush e o início dos conflitos no Oriente Médio em Coelho cai.

Natural, portanto, que ele agora se voltasse para a questão do terrorismo, tema-chave para compreender a América pós-11 de Setembro. A diferença é que Updike, ao invés de fazer a escolha mais óbvia e característica — um evento contemporâneo afetando a vida de um cidadão WASP e de classe média da Nova Inglaterra —, preferiu arriscar e escolher como herói de seu último romance, Terrorista, alguém do outro lado. Um adolescente islâmico, detrator radical dos Estados Unidos, de seus habitantes e do como eles se comportam. E claro, candidato a terrorista. Uma decisão arriscada, a do autor. Não que ele não tenha pisado em terreno escorregadio antes. O golpe, de 1978, tem lugar em um imaginário país africano dominado por uma ditadura. E Brazil, de 1994, como o título não deixa esconder, se passa por aqui, em terra brasilis. Os resultados não agradaram. O golpe é, no mínimo, estranho. E Brazil, bem, é uma das coisas mais medonhas que já cometeram sobre nosso berço esplêndido…

Não foi desta vez que Updike acertou em território desconhecido. Ahmad, o protagonista de Terrorista, é uma decepção. E o defeito é o mesmo de Brazil: abuso na utilização do lugar-comum na hora de caracterizar as figuras. Ahmad é tão clichê que constrange. Filho de uma descendente de irlandeses e de um egípcio imigrante, no início da adolescência ele, afetado pela ausência do pai que o abandonou, escolhe seguir o islamismo, sob o olhar consciencioso da mãe atéia. Sofre na mesquita a influência do xeque Rashid, seu imã, com quem estuda as lições do Alcorão e de árabe. “A verdadeira orientação”, aprende, “é a orientação de Alá”.

Agora com 18 anos, Ahmad está terminando o segundo grau. Precisa resolver o que fazer a partir de agora. O judeu Jack Levy, orientador educacional do colégio, acredita em seu potencial e acha que as boas notas podem credenciar uma candidatura à universidade. O xeque Rashid, contudo, tenta convencer Ahmad a se tornar motorista de caminhão para uma empresa de móveis, o que ele acaba aceitando. O garoto se encontra numa situação particular, visto que, pela primeira vez, começa a se perturbar com os efeitos que o universo que o cerca pode provocar em sua fé, até então inabalável. “Demônios”, ele pensa, “Esses demônios querem tomar de mim meu Deus”. A escola e, por conseqüência, a América (o playground do Diabo, já escreveu alguém) são terrenos de profanação diária dos ensinamentos de Alá. Local onde o sexo abunda, onde pululam os “ventres nus, enfeitados com vistosos piercings no umbigo e tatuagens lascivas em roxo”. Terra onde pobres e ingênuas garotas precisam vender o corpo para sobreviver (e vejam só, até encontram algum prazer nisso!).

Condescendência
Muito já se criticou a tendência de Updike de simpatizar com suas criações, de impregná-las com seu otimismo incorrigível e, com isso, acabar desperdiçando o elemento trágico em favor da tranqüilidade. Uma besteira, visto que mesmo um mestre como Tchekhov simpatizava com seus personagens. A falha principal de Terrorista não é a simpatia, e sim a condescendência com que o escritor trata Ahmad. Como se tivesse pena dele. Como se aceitasse aturá-lo mesmo com essa besteira de islamismo, fé em Alá e Terra Prometida. Se dá para pensar que Updike beberia uma cerveja com o Coelho, é bem possível que ele esperasse Ahmad se embebedar para consolá-lo no porre. Um narrador moralista, cheio de falsa compaixão.

Ahmad é tremendamente inverossímil. Como ele passou quase duas décadas incólume e alheio à interferência social e, de um dia para o outro, começa a ter dúvidas e a ser incomodado por essa América tão poderosa? E todos os seus pequenos atos são irritantemente batidos. Updike não aprendeu, com Brazil, que não basta conhecer teoricamente o universo a ser retratado. Se aquele livro parecia ter informações tiradas de uma enciclopédia sobre nosso país, as frases recitadas por Ahmad e seu xeque soam forçadas. O escritor estudou bem o Alcorão e suas suras; só esqueceu de descobrir como elas são colocadas em prática. Certamente não é de forma tão literal e solene.

E agora a revelação. Apesar dos vários problemas, Terrorista não é um mau livro. Longe disso. Se Updike patinou ao retratar um árabe, aqui ele prova que continua imbatível em duas áreas: na condução de narrativas e na caracterização do americano comum. A história flui bem, e, após um começo lento e um pouco cansativo, pega embalo na metade do livro e prende até o fim — é admirável que ele tenha adaptado a sua escrita meticulosa a um thriller de alta tensão. Ahmad é escalado para dirigir um caminhão até o Lincoln Tunnel, em direção a Manhattan, para explodir o veículo e a si próprio pela causa de Alá. Não vale a pena contar o final, mas adianto que não foge do tom conciliatório e sempre humanista do escritor.

O destaque do romance são os próprios americanos. Para quem pensava que Updike vivia apenas do passado e de relembrar, com nostalgia, os tempos que ficaram para trás (como o sucesso de quando ele era capa da Time…), é surpreendente o quanto ele ainda está atento aos anseios e frustrações contemporâneos. O professor Jack Levy, cansado e desiludido, chafurda na sua completa ausência de ideais. Muito updikeanamente, refugia-se no adultério. Sua esposa Beth, excelente criação, passa seus dias assistindo (e se confundindo com) aos seriados de televisão enquanto vê a sua cintura aumentar e o seu peso atingir níveis grotescos. O que fica em Terrorista é a noção de que os Estados Unidos são muito mais nocivos aos seus próprios cidadãos do que a um “estrangeiro” como Ahmad.

O que nos faz pensar no potencial que teria um romance em que John Updike fosse mais a fundo em questões internas atuais (como em Na beleza dos lírios, talvez a sua melhor obra). Sim, o terror é um tópico que não pode ser ignorado. Por que, então, não explorar, por exemplo, os recentes massacres provocados por jovens em universidades? Sem querer cobrar do autor algo que ele não pretendia fazer, e reconhecendo os riscos enormes que ele tomou em Terrorista, ao eleger um ambiente diferente e complicado. Mas que seria explosivo, seria.

Terrorista
John Updike
Trad.: Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras
330 págs.
John Updike
Nasceu em 1932, na Pensilvânia. Formou-se em Harvard e estudou belas artes na Inglaterra. De 1955 a 1957, fez parte da revista New Yorker. Já recebeu inúmeros prêmios, entre eles o Pulitzer e o National Book Award. É autor de, entre outros, Busca o meu rosto, Na beleza dos lírios, Memórias em branco, Bech no beco e da tetralogia Coelho.
Jonas Lopes
Rascunho