Perdido em elogios

Alaor Barbosa tentou escrever uma biografia de Guimarães Rosa, mas tudo não passou de uma tentativa
Ilustração: Ramon Muniz
01/03/2008

Desde a proibição da venda e publicação do livro Roberto Carlos em detalhes, de Paulo Cesar Araújo, o debate acerca do gênero biografia tem gerado discussões bastante acaloradas. De um lado, há quem diga que proibir a publicação de livros desse tipo fere o princípio de liberdade de expressão, remontando ao obscurantismo e ao cerceamento dos direitos em plena “Era da Informação”. Por outro lado, há quem considere que, com efeito, a memória dos biografados merece, sim, ser revelada, porém só por alguns poucos eleitos ou escolhidos. A propósito dessa última, digamos, concepção o jornalista e biógrafo Ruy Castro já chegou a ressaltar que, muitas vezes, é melhor optar por um personagem morto, para que não existam problemas para o autor — como o que teve Araújo com Roberto Carlos e Ruy Castro com a família de Garrincha, sobre quem escreveu A estrela solitária. Em uma espécie de síntese indireta dessas considerações, o escritor Alaor Barbosa apresenta a composição de Sinfonia de Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa. À primeira vista, o autor se mostra credenciado para a empreitada. A leitura do texto nos lembra, entretanto, que, às vezes, credenciais não são o bastante para determinadas obras.

Decerto, Guimarães Rosa é um dos autores mais celebrados pela fortuna crítica da história da literatura brasileira. Dessa maneira, assim como Sagarana e Grande sertão: veredas ainda deixam estupefatos leitores e críticos, a personagem do próprio Guimarães Rosa também gera interesse quer pela sua formação intelectual (um erudito oriundo do interior de Minas Gerais, poliglota, que, como outros grandes escritores de sua geração, chegou ao badalado Itamaraty), quer pela sua personalidade e seu relacionamento com o Brasil de seu tempo, um País, àquela época, não tão ciente de seus contrastes e certamente mais crente em seu futuro. A proposta de Alaor Barbosa, como biógrafo, é revelar o homem que está por detrás do escritor que morreu poucos dias depois de tomar posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967. Imortal na literatura, Guimarães Rosa, infelizmente, não tem seu gênio descortinado nessa biografia. Muito ao contrário. O texto final está longe desse objetivo.

Entende-se, pela leitura, que Alaor Barbosa teve interessante contato com Guimarães Rosa. Logo nas primeiras páginas, o autor faz questão de ressaltar alguns detalhes desse convívio com o escritor mineiro, partindo, principalmente, de certa afinidade intelectual — até a cópia de uma carta de Guimarães Rosa para Alaor Barbosa está presente no livro. Nada disso, no entanto, é capaz de esconder o tom quase oficial, chapa-branca, de louvor e honras à personagem de João Guimarães Rosa. Chama a atenção a quantidade de elogios que o biógrafo despeja em pouco mais de 350 páginas de texto — sendo que o restante das páginas traz um bom índice onomástico, além da bibliografia (consistente, diga-se) de apoio utilizada. É o texto, porém, que corrompe as boas intenções de Alaor Barbosa. Que fique claro, contudo: não se pretende aqui desmerecer a qualidade da prosa do autor. Antes, trata-se de observar de que forma a inegável afeição do biógrafo pelo biografado impossibilitou a Alaor Barbosa o distanciamento minimamente necessário para que o texto não tivesse uma carga demasiadamente pesada de menções elogiosas ao escritor e ao homem Guimarães Rosa. Em síntese, o autor optou por uma obra carente de aspectos contraditórios acerca do biografado — como se efetivamente tais contradições sequer existissem.

Compilação mal-ajambrada
Outro elemento que se destaca em relação ao texto é a quantidade de citações diretas utilizadas a partir de outras obras sobre Guimarães Rosa, como ocorre com as memórias do escritor mineiro, e bissexto, Pedro Nava. E é o caso, talvez mais freqüente, da obra Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, de Vilma Guimarães Rosa. Tantas referências e citações ao longo do texto original tornam o livro de Alaor Barbosa uma compilação mal-ajambrada de outros textos desatualizados ou fora do catálogo. A biografia teria ficado muito mais agradável ao leitor se, em vez disso, o autor tivesse utilizado mais os relatos colhidos em suas viagens pelo sertão mineiro a fim de conhecer o espaço geográfico da literatura rosiana. É certo que existem inúmeros entraves no que se refere à seleção desses “depoimentos”, mas um texto biográfico também se caracteriza pelas escolhas feitas na sua composição. No caso desta Sinfonia, o conjunto está fora do tom. Já no tocante à sua estrutura, a organização frustra até mesmo as expectativas do mais conservador dos leitores, uma vez que o texto é excessivamente linear. Em determinado momento, além de reproduzir as ações do diplomata Guimarães Rosa, o autor sintetiza os itens de um memorando oficial do Itamaraty em um texto desprovido de estilo e muito comportado para um autor com as credenciais de Alaor Barbosa. E no trecho que mereceria um mergulho profundo por parte do autor, a quase desconhecida atuação de Guimarães Rosa na evasão de judeus na Alemanha nazista, existe apenas menção marginal em poucas linhas.

Para uma obra que promete ser definitiva (no que se refere à sua abrangência), Sinfonia de Minas Gerais: a vida e a literatura de Guimarães Rosa decepciona. Mostra pesquisa, mas não traz interpretação; investe em uma rica trajetória, mas não aposta nas contradições; é ousada pelo tema abordado, mas é um texto tímido na sua versão final. Não há dúvidas de que a vida de um escritor tão importante para a literatura brasileira como Guimarães Rosa merece ser tema de várias biografias e o esforço de autores como Alaor Barbosa é fundamental. Ocorre que o talento, muitas vezes, pode ser a credencial mais importante para esse tipo de empreitada.

Sinfonia Minas Gerais: a vida e a literatura de João Guimarães Rosa
Alaor Barbosa
LGE
388 págs.
Alaor Barbosa
Nasceu em Goiás, mas está radicado em Brasília há 23 anos. É autor, entre outros, de A morte de Cornélio Tabajara; Uma lenda; O romance regionalista brasileiro. A biografia de Guimarães Rosa será seguida de outro livro, cujo objetivo é analisar toda a obra do escritor mineiro.
Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

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