Perdas e ganhos

"Contos céticos", de Adriana Lunardi, se desenvolve por múltiplas temáticas de medos, alegrias, apreensões, falências
Adriana Lunardi, autora de “Contos céticos” Foto: Elisa Mendes
01/10/2024

Sentada no veludo marinho e branco, com grades invisíveis à volta, eu procurava distinguir o sinal que separa um perigo real de uma catástrofe imaginária. A linha do horizonte servia de régua. O céu era excluído, assim como a faixa fincada de bandeiras, ombrelones e castelos farelentos. Ia-se embora também o que lhes correspondia em ruídos. Dali por diante, o vento seria o único a falar comigo.

A imagem, como se vê pelo parágrafo acima, é sempre o ponto de partida, o de apoio, de Adriana Lunardi. São imagens reais ou imaginárias que conduzem os leitores às sensações que os textos ditam. E aí a prosa se desenvolve por suas múltiplas temáticas de medos, alegrias, apreensões, falências, enfim, todos os elementos possíveis de serem encaixados em uma vida.

Lunardi passou alguns anos sem publicar uma nova coletânea de contos, dedicando-se à escrita de roteiros para o cinema e a televisão, e quando, enfim, voltou ao seu ofício de origem, o livro, veio com a força e o lirismo de sempre. Contos céticos é a reunião de nove contos e uma nota do destino que encanta por mostrar com poesia as tantas verdades que precisamos conhecer.

Outra grande escritora, outra Adriana, essa Lisboa, curva-se à magia narrativa da catarinense:

Nestes contos, Adriana Lunardi — distante de modismos e dona de um teto todo seu na literatura brasileira — faz da dúvida e da ironia instrumentos para vasculhar uma realidade que glossários, fármacos ou truques diversos já não parecem mais capazes de manejar. Afiada, ela nos confronta com o nosso ridículo, mas também revela o que temos de belo quando as luzes diminuem e a afetação se cansa: salve-se, então, “um quê de ternura, um arrepio de poema”.

A mesma magia que domina para falar das perdas, mas também dos ganhos, que permeiam os peculiares personagens destas narrativas. E todos, parece, estão à beira de um abismo. E caminham por veredas que não dizem sentidos. Mesmo um escritor, prenhe de vaidade, não ganha a glória que sonha. Frente ao mar, um estrangeiro está perdido por um amor errático. A sobrevivente da pandemia que vê tudo se perder, mas, ao cabo, salva a vida. O casal que, desfeito o casamento, contabiliza as perdas que passa pelo desamor da filha.

Rodamoinho infindo
Nos textos, o que menos importa é o grau de experiência dos personagens. Todos estão envolvidos num rodamoinho infindo. Se os mais velhos perdem a audição, os mais jovens perdem a esperança. Enquanto os provectos acumulam maturidades, os infantis armazenam energia e ousadia para se jogar ao improvável, mesmo que ao final todos padeçam de solidão.

Tenho de me acostumar a viver outro tipo de exílio. Sem esse olhar, serei só o resultado de uma primeira impressão, da avaliação, rápida que se faz de uma mulher sentada sozinha em uma cafeteria por onde circulam gerações cada vez mais jovens.

Percebe-se que os contos trazem em si uma unidade, o que aponta para um trabalho minucioso em cada um dos textos. Isso faz de Lunardi uma artesã literária, habilidade de onde, com certeza eclode sua poesia. Inserida no contexto da prosa poética, seus textos derramam lirismo, mesmo quando falam de tragédias, ou mesmo de improváveis sociedades distópicas.

Aliás, essa dualidade também se apresenta em seus cenários. Falando de praias paradisíacas, bares, cafeterias, ambientes futuristas, ruas desertas, todos os lugares são pintados com cores realistas, mas pontuados de um lirismo doce, como se quisesse apontar para uma questão natural: pouco importa onde se dá o fato. Importa mesmo é o sentimento que eles deixam marcado nas pessoas que os vive.

O livro fecha com a Nota do destino, um texto que, a rigor, não chega a ser um conto, mas uma nota de despedida, em que a mulher, em Paris, vê o homem equilibrar-se numa das colunas de Buren, e o mundo perder suas cores. Ela tem uma certeza: está diante de uma despedida profunda, perene, infinda. É, enfim, o destino a armar suas teias improváveis e intransponíveis.

Adriana Lunardi trabalha temas tensos, pois trabalha com a contemporaneidade. No entanto tudo suaviza sua linguagem poética e irônica. “Bem colocado, um lance de irreverência é tão eficiente quanto o charme. Ambos são capazes de desmontar um tratado de lógica num peteleco.” E é impossível não retomar a metáfora da artesania, do trabalho meticuloso com as palavras que a fez uma escritora requintada.

Interessante destacar que um bom número dos contos dessa reunião fala de ambientes literários. Lunardi nos ensina que há vida também nestas pessoas que vivem cercada por livros.

Um homem de rosto seco e pomo de adão imponente vaga por entre as estantes com um ar de vampiro empanturrado. Nas poucas vezes que se detém, atraído por um título, não leva o tempo de duas piscadas para descobrir tratar-se de um truque da imaginação, uma peça jocosa para testar o rigor de bibliófilo a que nenhum segredo editorial escapa.

E com isso faz uma literatura de excelência.

Contos céticos
Adriana Lunardi
Record
157 págs.
Adriana Lunardi
É autora de Vésperas (2002), Corpo estranho (2006) e A vendedora de fósforos (2011). Fui publicada em Portugal, França e Argentina, entre outros países, e recebeu os prêmios Açorianos, Biblioteca Nacional para Obras em Andamento, Fumproarte e Icatu de Artes. É coautora do seriado de TV Ilha de Ferro (Globo, 2019). Nasceu em Santa Catarina e vive no Rio de Janeiro.
Maurício Melo Junior

É jornalista e escritor.

Rascunho