Pequena história da língua portuguesa

Não sei se há autor que já tenha escrito, em vez da história da evolução do amor e dos conflitos de duas personagens, a história — muito mais instigante — da evolução e dos conflitos de uma língua. Por que não imaginá-la dividida em dois volumes?
01/08/2002

Volume um: Álea jacta est
Nosso romance — histórico? filosófico? policial? — começa em Roma, pois, como é sabido, após um processo lento, progressivo e ininterrupto de maturação, o português nasceu quase inteiramente do latim. “Razão”, “rigor”, “equilíbrio” são as palavras chaves do primeiro capítulo, que deverão pairar, onipresentes, sobre deliciosos diálogos na língua de Virgílio. Anedota a ser desenvolvida neste capítulo: Os gregos põem abaixo as muralhas de Tróia; Enéias, no entanto, escapa ao massacre e foge para o Lácio; lá, contribui para a fundação de Roma, que mutatis mutandis termina por engolfar a Grécia e boa parte do mundo conhecido. Momento oportuno para a descrição pormenorizada do modus faciendi romano — a maneira como eram organizados os exércitos, as cidades e as artes. Mais uma vez: razão, rigor, equilíbrio. Nas páginas seguintes, a uma velocidade estonteante, Júlio César e seus generais, em nome do Império, conduzem milhares de legionários aos quatro cantos da terra. Enquanto isso a Península Ibérica, devido a sua posição geográfica, é invadida e colonizada por gente estranhíssima: lígures, tatéssios, fenícios, gregos, bascos, iberos e celtas. Duzentos e dezoito é o número. Por volta desse ano (218 a.C.) chegam os romanos. Batalhas de tirar o fôlego, à maneira das só encontradas nas histórias de Asterix, o gaulês., passam a ser lugar-comum. Após o combate, as cenas de sexo: o vencido deitando-se — culturalmente — sobre o vencedor, impondo parte de seus costumes, de suas crenças, de sua língua. Em que capítulo estamos? Difícil dizer, devido à velocidade com que os fatos vão se sobrepondo. Uma língua mais livre, disposta a aceitar mudanças e deixando-se influenciar pelas línguas locais dos territórios conquistados, nasce da promiscuidade e do terçar de armas: o latim vulgar. É o momento do canto, da poesia oral, não da tinta no papel — o termo vulgar refere-se ao latim falado, em oposição ao latim escrito ou clássico. São escassos os documentos redigidos em latim vulgar, pois qualquer pessoa ao escrever utilizava as normas gramaticais, ou seja, as normas do latim clássico. Esse latim se espalha como peste, pois, como qualquer fala, é bem mais expressivo e flexível do que o clássico e não respeita, pelo desconhecimento de seus usuários, nenhuma norma gramatical, mantendo os vícios das línguas orais e incorporando palavras das outras línguas com as quais está em contato. Porém, justiça seja feita: Se, por um lado, o latim vulgar não tem a expressão bem cuidada do latim clássico ou literário da sociedade culta, por outro também não é o dialeto tosco dos camponeses nem a gíria dos bairros periféricos. A língua portuguesa tem sua origem no latim vulgar — língua falada não pela minoria culta, mas, ao invés, pelos comerciantes, colonos e soldados que mantêm a ordem no Império. Onde estamos? Na Lusitânia, região situada a oeste da Península Ibérica, correspondente ao atual Portugal e à região espanhola da Galícia. Depois da queda do Império Romano, muitos povos bárbaros chegaram à península. Os suevos, vândalos e visigodos, que chegaram entre 568 e 586 d.C., fizeram da cidade de Toledo sua capital. Apesar de deterem o poder, adotaram a língua falada pelos derrotados, um latim vulgar muito evoluído. Do amálgama de falas começa a brotar o que hoje conhecemos como línguas neolatinas: o francês, o português, o italiano, o espanhol, o catalão, o romeno, o sardo, o provençal e o reto-românico. No ano 711 d.C. os árabes invadiram a península. Mais sangue, suor e sexo. Derrotaram os visigodos e praticamente dominaram todo o território em sete anos. As tropas cristãs reagruparam-se no norte da península e iniciaram a Reconquista, que culminou em 1492 com a tomada de Granada pelos Reis Católicos.

Volume dois: Minha pátria é minha língua
O primeiro capítulo deste volume começa com a exumação do espólio romano. Do século 9 ao 12 vigora o que os estudiosos de hoje chamam de protoportuguês, cuja documentação, muito rara, mostra-nos textos redigidos em latim bárbaro, nos quais se encontram algumas palavras portuguesas. Grandes evoluções lingüísticas acontecem na Península Ibérica, resultando no aparecimento dos dialetos romances: o galaico-português, o astur-leonês, o castelhano, o navarro-aragonês e o catalão, além do moçárabe, língua falada pelos cristãos habitantes da Espanha árabe. Fim do período protoportuguês e início do histórico. Nessa fase do período histórico, dita “fase arcaica”, há inicialmente uma língua comum no noroeste da península — na Galiza e no norte de Portugal. Essa língua é o galego-português, ou galaico-português, fartamente documentado em textos que incluem uma literatura de elevado grau de elaboração (a lírica galego-portuguesa). Capítulo maravilhoso, cheio de sátira, de sol e de erotismo — os cancioneiros medievais entram em cena, e com eles, as cantigas d’escárnio e de maldizer. Nos séculos 12 e 13, com a chegada da arte provençal, muitas palavras provençais são incorporadas ao português: alegre, jogral, rouxinol, trovar. Por que não trazer momentaneamente, das catacumbas do Averno, a sombra de Erza Pound? Fala Ez: “Qualquer estudo da poesia ocidental será incompleto se não começar por um estudo da arte de Provença — a arte de combinar palavras e música numa seqüência em que as rimas caem com precisão e os sons ou se fundem ou se alongam”. Saem os Joan Airas de Santiagos e os Pero Garcia Burgalêses e entram os Fernão de Magalhães e os Pedro Álvares Cabrais. Com a expansão ultramarina a língua portuguesa entra em contato direto com outras línguas, que acrescentam ao nosso idioma inúmeras palavras da África, Ásia e América: cáfila (do árabe falado no norte da África); nanquim (do chinês); gueixa, samurai (do japonês); gengibre, sândalo (do sânscrito); beringela, caravana, laranja, turbante (do persa); capim, cipó, abacaxi (do tupi). Durante o período em que Portugal é governado pela Espanha (1590-1640) o castelhano também cai no caldeirão, influenciando a língua portuguesa, com palavras como: bobo, galhofa, lagartixa, pirueta, realejo. Fim da fase arcaica, início da moderna. A partir do século 16, quando surgem as primeiras gramáticas, a língua portuguesa, então mais definida, passa a sofrer influências menores. Mesmo assim, ao longo dos anos vai incorporando vocábulos de diversos idiomas: tricô, abajur (do francês); cantina, macarrão, salame (do italiano); vodca, estepe (do russo); lanche, pudim, sanduíche (do inglês). Atualmente poucas línguas no mundo ocupam área tão extensa quanto o português, reflexo da expansão territorial de Portugal nos séculos 15 e 16. Além de ser falado em Portugal, está presente em todos os outros continentes: na América (Brasil), na África (Guiné-Bissau, Cabo Verde, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe), na Ásia (Macau, Goa, Damão, Diu) e na Oceania (Timor), além de em ilhas próximas da costa africana (Açores e Madeira). Fernando Pessoa estava atento a isso, quando, combatendo a reforma ortográfica levada a cabo por burocratas lusitanos em 1911, escreveu que o português é “a mais rica e a mais complexa das línguas românicas; uma das cinco línguas imperiais, é falado, se não por muita gente, pelo menos do Oriente ao Ocidente, ao contrário de todas as línguas menos o inglês, e, até certo ponto, o francês; é de fácil aprendizado para quem já saiba espanhol (castelhano) e, de certo modo, italiano, além do que não é uma língua isolada, pois é a língua falada num grande país crescente, o Brasil (podia ser falada de Oriente a Ocidente e mesmo assim não ser falada por uma grande nação)”. Nesse “grande país crescente”, todavia, apesar de sua força e de seu prestígio, o português não consegue se impor de imediato à língua geral dos índios, o tupi — a verdadeira “língua brasileira”. Até o fim do século 17, apenas uma em cada três pessoas fala português no Brasil. Isso se dá primeiramente porque os portugueses que aqui chegam casavam-se com índias e, interessados em feitos mais nobres, deixam a elas a tarefa de ensinar o idioma aos filhos. Além disso, empenhados em catequizar os nativos, os jesuítas procuram comunicar-se com eles em tupi, chegando não só a aprender sua língua, como a escrever sua gramática. Outro importante fator para a propagação do tupi são as bandeiras paulistas, das quais sempre fazem parte intérpretes índios, que tenham na língua geral, o abanheém (língua de gente), seu instrumento de comunicação. Por essa razão, mesmo as áreas não ocupadas pelos tupis ganham nomes nessa língua. Epílogo: Depois de sucessivas ordens da metrópole para que se ensine a língua portuguesa aos índios, e após a expulsão dos jesuítas do Brasil, o português vai se fortalecendo até tornar-se nosso idioma oficial.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho