Penso, logo hesito

Oswald de Andrade escreveu de forma voluptuosa, o que é um dos maiores méritos de sua literatura
Oswald de Andrade era um escritor lúcido que agia sob a influência de seus instintos
01/08/2003

“Como e por onde começar minhas memórias? Hesito”, escreve Oswald de Andrade em Um homem sem profissão. Essa singela declaração de incerteza explicita a capacidade do autor, que é louvável e que é de poucos, em relacionar-se honestamente com seu trabalho. A idéia de honestidade é muito relativa, claro. Como divagar sobre a idéia de honestidade? Mas, justamente por ser uma divagação, é possível afirmar que o autor — um dos nomes mais celebrados do modernismo brasileiro — foi honesto com sua literatura. Por isso, é capaz de hesitar diante de suas memórias, o que pouca gente é capaz de assumir na sua vida. As memórias de Oswald de Andrade são o primeiro título das obras completas do autor que a Editora Globo publica. Além deste, já saiu Os condenados e está sendo editado Pau Brasil.

Não parece haver a menor dúvida de que Oswald é um investimento certo por parte de uma editora. Seu nome, em primeiro lugar, está ligado a um dos movimentos mais badalados da literatura nacional, o do modernismo, que, por sua vez, está ligado a muito falada Semana de Arte Moderna de 1922. Pode-se dizer, sem qualquer exagero, que o modernismo no Brasil contribuiu para uma abertura autoral não só na área literária, mas também em outros campos culturais. Envolveu também artes plásticas, música, cinema e dança. O modernismo no Brasil foi um estilo, e toda forma de estilo inspira, para melhor ou para pior, a criação artística. Oswald, no caso específico da literatura, é um dos nomes mais importantes entre os escritores nacionais, vivos ou mortos. Nestes três primeiros livros da reedição da obra do autor de Memórias sentimentais de João Miramar já é possível familiarizar-se com alguns aspectos de sua criação literária.

O “familiarizar-se” significa apenas a percepção de alguns recursos do autor em um determinado trabalho, e não a repetição de fórmulas entre um livro e outro, pelo menos nesses três títulos que servem de “gancho” para este comentário. Voltemos à noção de hesitar, o que parece relevante diante de um mundo presente cujo paradigma não seja tanto, com a mesma insistência de um passado remoto, o de olhar para o futuro acreditando-se nele. Em outras circunstâncias, a confissão de Oswald talvez fosse tomada como atestado de incapacidade criativa. Mas, sob o foco do holofote modernista do modernismo (convém deixar as duas expressões em separado, mesmo parecendo — e sendo — redundante), Oswald não tinha razão para temer a crítica. Em primeiro lugar, porque ele, ao se dar o direito de criticar, também estaria sujeito ao mesmo tipo de resposta, e ela veio sob vaias, conforme relatos de estudiosos do modernismo brasileiro. Depois, porque o modernismo representava uma nova maneira de encarar a literatura, rompendo com tradições alicerçadas anteriormente.

Hesitar, portanto, significa mais para Oswald do que ele mesmo talvez imaginasse. Só não hesitou ao escrever de forma voluptuosa, o que é um dos maiores méritos de sua literatura. Assumir que hesita traz a nobreza de um escritor que carrega na veia — a mesma das injeções de Cardiovitol que o farmacêutico da vizinhança, seu Nenê, aplicava-lhe todas as noites, em 1952, por causa de uma asma cardíaca — o bom gosto. Muito se comenta a respeito de Oswald de Andrade, mas pouco se conhece dele. A reedição de sua obra pela Globo é uma oportunidade de recuperar para a atual geração de leitores — esperamos que sejam muitos — um autor dos mais qualificados da literatura nacional. Toda vez que se lança um trabalho dessa envergadura, o meio cultural encarrega-se de relembrar que temos, sim, um grande escritor, e dos bons. Não basta saber que ele foi um dos rebeldes da Semana de Arte Moderna. Oswald é bem mais do que o manifesto antropofágico.

É preciso, também, usufruir de seu talento nas várias frentes em que atuou, principalmente na poesia e no romance. Sim, ele foi, acima de tudo, um homem talentoso, e, por isso, a Globo acerta, mais uma vez, ao reeditar sua obra, abrindo com Um homem sem profissão, escrito pouco antes de sua morte, em 1954, aos 64 anos de idade, a pedido de Antonio Candido. Nesse livro, Oswald conta que o plágio, outra confissão bombástica, foi o marco inicial de sua carreira literária. Mas o professor Gervásio de Araújo teria tido o mérito de ser citado por Oswald como seu inspirador intelectual e quem o teria incentivado a escrever profissionalmente. Porém, o lado profissional de Oswald jamais obscureceu sua criatividade. Escrevia por vontade, por alegria, por medo ou por paixão. Essas características transformaram sua literatura em um prolongamento de sua existência. Mais do que prolongamento, trata-se de uma literatura umbilical.

Autor e obra misturam-se se pensarmos em Oswald de Andrade. E não há mal nenhum nisso. Mais do que a postura arrogante e distante de um escritor profissionalizado e demais consciente de seu trabalho, Oswald parecia agir, ainda assim, como um homem comum. Comum dentro de sua classe, a de um burguês acostumado à boa mesa e ao bom vinho, sem falar nas várias vezes que foi à Europa, de navio. Tudo, porém, para reforçar seu ímpeto criativo e abastecer as energias que um legítimo artista necessita para produzir. Sua produção foi tão rica quanto sua vida. Suas várias companheiras inspiraram sua literatura, tanto quanto suas amizades e sua família. Esses aspectos de sua vida estão, de alguma forma, impressos nestes três primeiros títulos agora relançados. O livro de memórias porque, como ele mesmo assinalou, pode ser encarado como um “diário confessional”; Os condenados porque várias personagens de sua vida real, que também merecem crédito no livro de memórias, foram retratadas nesse trabalho, e, finalmente, Pau Brasil porque algumas poesias remetem claramente ao seu cotidiano.

Em Um homem sem profissão, Oswald comprova que só poderia ser mesmo um escritor. Mesmo tendo se formado em Direito, o escritor denunciara a hipocrisia da faculdade e da lógica legal pautada por matérias importadas da Europa. A mesma Europa, aliás, que ele idolatrava. Oswald não era um homem contraditório, mas sim paradoxal. Não se pode encará-lo com a mesma competência de um cirurgião, pois Oswald traz em si a regra do caos. Tudo se mistura, mas é essa mistura que mais lhe convém e que faz dele um autor autêntico. Junto a isso, o autor tem um texto qualificado. Poderia servir de inspiração para muitos escritores que têm dificuldades em usar adjetivos, o que, para alguns romancistas, até não é desejável. O adjetivo de Oswald é rico. Poucos escritores “adjetivam” com tanta maestria como Oswald. Ele cria, dessa forma, uma visualização cênica imediata e, de novo, de extremo bom gosto.

Ler determinados trechos de Os condenados é se deparar com o que há de melhor na literatura brasileira. O mesmo pode-se dizer de Pau Brasil e de suas memórias. São três títulos de um autor que não precisava amadurecer. O amadurecimento é uma idéia demasiado moderna, assim como cobrar coerência de um artista que faz da incoerência, ou melhor dizendo, da surpresa, seu aliado. O modelo de literatura para Oswald de Andrade era ele próprio. Era um escritor lúcido que agia — em casos extremos — sob a influência apenas de seus instintos. Seu ideal era viver, não importando muito as conseqüências disso. E viver para ele era a única liberdade que tinha. Suas memórias indicam que defendia, a todo custo, a liberdade de experimentar, fossem novos romances, fossem brigas pessoais, fossem autores com os quais simpatizasse, fossem seus planos de viagem. Viveu sua própria belle époque. Viveu bem. Viveu intensamente porque vivia com as tripas.

A visão que ele tem de si mesmo, em Um homem sem profissão, demonstra que Oswald se aproxima mais do caos, como já foi lembrado, do que da ordem. E o caos tem um aspecto de fertilidade, diferentemente da ordem. Com seu trabalho, Oswald quebrou algumas regras preestabelecidas na literatura nacional, sobretudo de origem parnasiana, apostando na brasilidade de Pau Brasil: “Vi a saída da lua/ Tive um gosto singulá/ Em frente da casa tua/ São vortas que o mundo dá”. Toda vez que Oswald de Andrade se prostituiu com a Europa, voltou renovado. O fato de ter convivido com artistas europeus inspirou sua criação. Ele não se afastou de suas origens ao se expor em solo europeu, e, principalmente, nos diversos retornos ao Brasil. Pelo contrário: inspirado na nossa maior riqueza do tipo exportação, hoje já inexistente, que é o pau-brasil, fincou raízes. As várias partes temáticas em que se pode dividir Pau Brasil, de um Brasil que remonta à época do descobrimento a outro da belle époque, apresentam sempre um trabalho inspirado e inesperado. Tanto quanto em Os condenados. Este livro é um momento de brilhantismo da literatura brasileira.

Oswald não temia ser autêntico. Mais de uma passagem pode ser destacada como um momento de única inspiração. Sua característica principal é escrever conforme a fluidez de seus pensamentos, como um jorro. No entanto, há quem sustente a idéia de que a elaboração literária de Oswald fosse dolorosa e difícil. É pouco provável que ele fosse perfeccionista até o absurdo de reescrever várias vezes um texto, mas devia, não parece haver dúvida, revisar para uma melhor adequação dos termos. Em Os condenados, existe a dúvida se a referência a uma determinada palavra — “canalha” —, usada diversas vezes para indicar situações diferentes, não teria sido uma redundância. No entanto, Oswald não parecia se incomodar com minúcias desse tipo. Se uma literatura autoral como a dele resultasse em um texto pobre, o que não é o caso, talvez redundâncias como as de “canalha” fossem gritantemente ruins. Porém, a riqueza vocabular, junto a uma sensibilidade aguda na descrição dos estados de alma das personagens, o que parece ser o seu principal trunfo, serve como espécie de disfarce para alguns supostos deslizes.

Outra característica interessante no trabalho de Oswald de Andrade, pelo menos nos livros aqui analisados, é a idéia de valorização do homem comum que apresenta. Esse é o tipo de coerência que não prejudica o trabalho autoral, cuja face mais evidente em tempos pós-modernos de criação, tão libertária quanto a que o próprio Oswald propunha, valoriza mais a perda da identidade do que a unidade artística. A partir de um mergulho interior em profundidade na sua própria existência, o autor alcança um nível de originalidade dificilmente obtida por outro que se mantém na superfície de uma narrativa, seja em que área for: literatura ou cinema, dança ou pintura. Os condenados é o romance da dor-de-cotovelo, como um samba de Lupicínio Rodrigues. A trilogia começa com Alma, e se trata de um bom início: “Chegou-se à janela num confuso palavrório mental, onde havia muito destino, muita pesquisa do eterno coração das mulheres”. Sempre as mulheres. Oswald de Andrade vivia obcecado por seus conturbados relacionamentos.

Também em Alma, ele escreve: “(…) desgraçada festa dos sem amor (…)” ou “(…) a orquestra que chorava no fundo da fumaça (…)”. De uma certa forma, o tema central de Oswald de Andrade é o amor. O amor dos desgraçados, o amor dos amantes, o amor da família, o amor dos cafetões, o amor das prostitutas, o amor dos viajantes, o amor dos amigos, o amor à política, o amor do amor. A politização de Oswald não serviu de empecilho para sua criação. A criação vem antes. O homem vem antes da obra. O imaginário vem antes do fato. O fato é resultado do imaginário, que fundamenta nossa existência. Uma imaginação fecunda como a de Oswald não permitia pudor em relação ao que escrevesse. Ele só podia, dessa forma, ser representante do modernismo. Um modernismo triunfante e diferente da literatura, para muitos, burocrática anterior à Semana de Arte Moderna. O modernismo, da mesma forma que vários movimentos de estilo na cultura, é conseqüência natural da pulsão por novas formas de expressões.

Oswald de Andrade pode ser lido de diversas formas. Pode ser um escritor paulistano, um escritor regional, um escritor brasileiro ou um escritor internacional. É dessa miscelânea que se formam os grandes artistas, aqueles que se machucam, sofrem e se redimem. Não há termos de comparação na literatura nacional com a obra de Oswald de Andrade. Ele é reconhecível tanto quanto um filme de Godard. A personalidade de um artista é que faz dele um bom artista. No momento em que Oswald se entrega à literatura, passa a ser um bom autor, independentemente até do que escreve. A controvérsia autoral passa pela questão da personalidade. Se não nos colocarmos no que fazemos, talvez estejamos apenas reproduzindo uma maneira demasiado comum de pensar ou de escrever. No entanto, a originalidade criadora não deveria ser buscada à força. A criação é um estado de espírito que mexe com a emoção, em primeiro lugar do autor, para depois atingir um leitor mais ou menos qualificado.

Não dá para dizer que a obra de Oswald de Andrade seja fácil. É preciso um certo investimento na leitura de seus romances e de suas poesias para o exercício de elevação espiritual que a sua literatura traz. Conforme Roman Jakobson, “o campo, depois de uma rica colheita, tem necessidade de repouso”. Ele referia-se à transição dos centros de cultura cinematográfica, que passaram do cinema mudo ao sonoro, coincidentemente ou não na mesma década da introdução do modernismo no Brasil. Aquele fato ocorreu no final dos anos 20. Este, no início da década de 20. Ainda segundo Jakobson, “é muito provável que a liberdade em relação à tradição facilite as pesquisas experimentais”. Oswald de Andrade, valendo-se do gancho de Jakobson, aproveitou-se da confluência na passagem de uma literatura dos primeiros decênios do século passado, que Antonio Candido chamou de “patriotismo ornamental”, para, com ares de novidade, só que já atrasado em relação à Europa, promover uma antropofagia nacional.

O resultado é comovente. Oswald buscou a liberdade com que todos sonhamos. Se ainda permaneceu escravo de si mesmo, só ele poderia julgar. A obra de Oswald de Andrade merece ser revisitada. Ele é melhor escritor do que muito autor (lato sensu) contemporâneo. Nem sempre é pacífico trazer à luz da contemporaneidade o trabalho de um escritor que nasceu no século 19 e viveu apenas até os 64 anos de idade. Os contextos históricos se fundem, apesar de a história querer enquadrá-los em momentos datados. Talvez seja mais fácil introduzir conceitos e julgar os outros com base em idéias supostamente firmes e pré-concebidas. Difícil é aceitar o outro ou admirar um homem que, como Oswald de Andrade, correu o risco da autenticidade e, por isso, recebeu tanto vaias quanto aplausos. Nada mais natural. Lidamos com vários pólos na nossa existência. Ela é um mistério que nem a melhor filosofia pode esclarecer. Só não podemos cair no risco de conceituar a emoção ou escrever uma bula do artista. Toda vez que agirmos apenas com a razão, o potencial artístico estará sendo sufocado. A arte é resultado, quem sabe, de uma ignorância primordial de que somos herdeiros do nascimento à morte.

Um homem sem profissão
Oswald de Andrade
236 págs.
Editora Globo
Os condenados
Oswald de Andrade
374 págs.
Editora Globo
Eduardo Portanova
Rascunho