Pensamentos em cascata

Elvira Vigna escreve romance cheios de idas e vindas, e na confusão quase se perde
Elvira desnorteia o leitor
01/11/2002

A impressão que se tem ao ler Coisas que os homens não entendem, de Elvira Vigna, é de que o livro foi escrito aos borbotões — gosto dessa palavra, ‘borbotões’, muito mais bonita do que ‘golfadas’. De que todas as situações que aconteciam ali tomavam conta da escritora de tal forma que era impossível fazer com que ela parasse de escrever. Pode não ser nada disso, é claro. Mas é interessante imaginar uma pessoa escrevendo vertiginosamente sobre um assassinato. E esse assassinato nem ser tão importante.

Não sei quanto tempo Elvira levou para escrever o romance. Mas a leitura dele é rápida. Porque se paramos assim, no meio do borbotão, estamos perdidos. É um vai e volta de páginas sem fim. O ideal é ler em um fôlego só — no máximo com uns respiros para uma ida ao banheiro e uma canecona de chá.

A narrativa, apesar de simples, é bem trabalhada. Não muito óbvia. Está na medida certa para quem gosta de histórias escritas assim, aos borbotões. Uma sucessão de pensamentos que se entrelaçam, mas que não têm, necessariamente, uma ligação lógica.

O livro poderia ser definido como um policial. Mas não é bem isso. Pelo menos não um daqueles romances policiais com ambientação noir, que todos estão acostumados a ler. Ou daqueles que tratam da violência como um retrato fiel das “cidades maravilhosas” da vida. É um livro que é, mas não é. Confuso, às vezes. Que procura saídas nas entradas. E vice-versa.

É narrado por uma mulher, Nita, uma fotógrafa que passou um tempão em Nova York, mas que sempre quis procurar uma saída para sua vidinha medíocre. Como todas as pessoas do mundo que saem sem rumo para encontrar saídas — ou entradas —, tinha um segredo. Que nem convém contar aqui qual é — apesar de ser bastante evidente para o leitor.

Nita namorava a garçonete Eva, enquanto morou no Brooklyn. Nada de muito especial. Era mais um daqueles relacionamentos água com açúcar só para passar o tempo, enquanto decidia se queria mesmo voltar para o Brasil. E queria. Quando tomou a decisão de voltar para a terrinha, o fez assim, sem mais aquela. Simplesmente saiu de casa e deixou Eva por lá. Sem nenhuma preocupação maior do que se assegurar de que estava levando as três blusas boas na mochila. “Eva estava olhando para as unhas, mascando chiclete, preferia que não estivesse mascando chiclete, mas estava, e a única coisa real naquilo tudo era o decote na blusa […]. Ela tinha chegado meia hora mais cedo, eu não contava com isso. Mas fiz o tlec e chamei o elevador, que pareceu levar muito tempo para chegar, fiquei em pânico naquela hora, ela vai abrir a porta, segurar a porta mais em cima do que eu seguraria, uma de suas poses, tinha várias, e me olharia nos olhos, e ia perguntar se eu ia voltar, ia ser uma merda. […]” (p. 54)

No Rio de Janeiro, assentou-se em um apartamento sujinho de um amigo. A desculpa para a volta era um trabalhinho. Faria uma picaretagem qualquer sobre os 500 anos do descobrimento do Brasil. Quem não fez? A volta é cheia de lembranças. De velhos amores, de velhos ódios. De um crime. O que acabou com a vida do Lia, marido da Lia. O Lia era um cara rico que desejou ser pobre. E conseguiu. A Lia era uma moça pobre que desejou ser rica. Não passou nem perto. Conseguiu ficar viúva. E só.

O velho amor: Nando, irmão do Lia. Um amor, assim, feito de momentos. Fragmentado como a história de Nita, Eva, “O” Lia, “A” Lia. Começou quando eram jovens e trabalhavam em um jornal carioca. Mas nem eles mesmos sabiam. Não souberam nunca. Nem no final.

Há idas e vindas nesse romance. Parece uma daquelas histórias em que a gente vai lembrando dos detalhes e de outras coisas que podem ou não ter uma relação com o caso em questão. Nita conta que a Lia foi estuprada. E, em seguida, fala sobre sua própria vida, sobre sua não-experiência com estupros: “Na verdade não tenho grandes experiências no assunto, por isso eu não sei, só imagino, por isso não vivi. Não foi um estupro, no meu caso, justamente, não foi, antes, em menina, no que pode ter sido o começo caminho que deu em Eva. Não dá para dizer que foi estupro, no meu caso, esse é o ponto.” (p. 40)

Em alguns momentos, o leitor sente-se um pouco perdido. O que pode ser um mérito na condução do romance. Elvira desnorteia quem está lendo. O deixa divagando. Durante toda a história, o leitor acredita piamente que haverá um grande final. Final feliz, não, que não combina com todos aqueles diálogos ou com as situações estranhas que acontecem no decorrer da história. Poderia ser trágico. Ou qualquer coisa marcante. Mas não há nada disso. Só há um fim. E tudo bem.

Coisas que os homens não entendem
Elvira Vigna
Companhia das Letras
159 págs.
Elvira Vigna
É uma jornalista carioca. Começou a carreira como escritora fazendo livros para crianças e adolescentes. Passou a escrever histórias policiais na década de 80. Parou. Dedicou-se apenas ao jornalismo. Hoje, escreve crônicas para O Estado de S. Paulo e resenhas de livros para o Jornal do Brasil. Publicou Assassinato do bebê Marte, Às seis em ponto e O jogo dos limites (juvenil).
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho