A história do século XX incitou muitos poetas à busca de imagens que transmitissem seu protesto moral. É muito difícil, porém, conservar o saber do peso dos fatos e não sucumbir à tentação de tornar-se um repórter. São necessárias certa astúcia na seleção dos meios e uma espécie de destilação do material para conseguir a distância que permite a contemplação das coisas deste mundo sem ilusões. Não exagero quando afirmo que tal contemplação assumiu para mim uma dimensão religiosa. E também assim minha poesia tomou parte nos assuntos humanos deste período histórico em que, a mim e a meus contemporâneos, coube viver.
É com essas palavras/testemunho que se encerra Para isso fui chamado: poemas, antologia do polonês Czesław Miłosz, organizada e traduzida por Marcelo Paiva de Souza.
“Eu olho, olho. Para isso fui chamado:/ Para louvar as coisas, porque são.” Palavras que também evocam a barbárie do século 20, a própria história tortuosa e trágica que se assiste na explosão violenta do desumano presente no humano, ao mesmo tempo que problematizam a relação que os poetas e, por conseguinte a poesia, tiveram com esses nós da nossa história mais recente. É do espaço do poeta, então, que se está falando. Como a poesia trata dos sentimentos trazidos à tona e da vontade de “protesto moral” que não deixava de ser também uma exigência. Num mundo desnudado também de ilusões é preciso ter um olhar oblíquo para a Medusa, é preciso “destilar o material”, deixá-lo em decomposição, é preciso saber a medida justa da distância e pensar nos meios e expedientes da linguagem que vai voltar a esse mesmo material, agora já outro.
O polonês Miłosz percorre o século 20, nasce em 1911 num pequeno vilarejo na Lituânia, depois da Segunda Guerra se torna adido cultural na embaixada polonesa de Washington e depois em Paris, fazendo parte do corpo diplomático do novo governo comunista. Com um posicionamento extremamente crítico em relação ao clima imposto por uma elite política e intelectual, muito ligada a Moscou, não deixa de demonstrar seu ceticismo em relação às perspectivas. Em 1951, rompe com o partido comunista e pede asilo político na França, para depois se mudar para os Estados Unidos, onde irá dar aulas de literatura polonesa na prestigiosa Universidade de Berkeley e continuará a escrever poesia, prosa e ensaio. É de 1953 o ensaio The captive mind, dura crítica ao regime comunista e à ação de alguns intelectuais poloneses, o tema central é a relação entre cultura e totalitarismo. O período do exílio é marcado ainda pelo fundamental papel de mediador e de tradutor da poesia polonesa. Como em tantos outros escritores, de Dante a Walter Benjamin, o exílio é uma cicatriz. Miłosz falece em 2004, com os pés no novo século. O Prêmio Nobel recebido em 1980 tornou possível seu retorno à Polônia.
Um pobre poeta
O primeiro movimento é o canto,
A voz livre preenchendo montanhas e vales.
O primeiro movimento é a alegria,
Mas ela é tomada
E quando os anos mudaram o sangue
[…]
Molho a pena e repontam nela brotos e folhas, se cobre de flores,
E o perfume dessa árvore é impudente, porque lá, na terra real,
Árvores assim não crescem e é como um insulto
A toda a gente que sofre o perfume dessa árvore.
Uns se protegem no desespero, que é doce
[…]
A mim, porém, foi dada uma esperança cínica,
Pois desde que abri os olhos nada vi senão clarões e carnificinas,
Senão dano, humilhação e a irrisória infâmia dos soberbos.
Me foi dada a esperança da vingança contra os outros e contra a mim mesmo,
Pois eu fui aquele que sabia
E não tirou disso para si qualquer proveito.
O vivido na infância num pequeno vilarejo, perto do rio Niewiaza, vai de um cenário bucólico ao olho do furacão da história com a Primeira Guerra e os encantamentos e duros contrastes da vida.
Numa entrevista para a poeta italiana Antonella Anedda, em 1999, Miłosz parece confirmar estes versos do livro Salvação (1945), quando nega a possibilidade de fuga no idílio e afirma uma exigência de verdade. E é ele mesmo quem irá afirmar que o tema principal de sua poesia é o mal do mundo, o fato de se sentir culpado diante da dor do mundo. E o poema O que eu escrevia, datado de 1934, pode ser lido nessa chave a partir do abandono de qualquer traço idílico:
O que eu escrevia de súbito pareceu
ridículo. Eu não era capaz de exprimir.
Olhei para o mundo imenso, pulsante
[…]
Eu enxergava dentro de mim extensos vales
e podia, o passo alado e brônzeo,
lançar-me acima deles em muletas de ar.
Mas isso se foi, noite sem memória.
Destilação e contemplação são, então, gestos necessários para este laboratório poético, que ficam registrados no título desta nova antologia Para isso fui chamado: poemas, que percorre quase 70 anos e 19 livros, trazendo inclusive dois poemas publicados póstumos (Uma frase e A tartaruga) e a Nota anos depois, que fecha a antologia.
Traduções
Na apresentação, Marcelo Paiva de Souza evoca a importância da poesia de Miłosz:
Em vez da inóspita ambição de exauri-lo, trata-se de conviver com esse mundo, em “sua exuberância e variedade”, em “surpreendente abundância de sentidos”, mas também em seus enigmas, suas contradições e seus não ditos. Na leitura dos textos poéticos aqui selecionados e traduzidos, cada leitor terá a oportunidade de pôr à prova essas considerações.
Sendo professor, tradutor e, sobretudo, pesquisador, Paiva de Souza não deixa de pensar nas primeiras recepções e traduções Miłosz no país, que datam da década de 1980, traçando um caminho que chega até seu percurso formativo e até a mais nova tradução. É também uma homenagem aos outros tradutores que vieram antes, cada um com seu tom e peculiaridade. Na seleção dos poemas está incluído De Walt Whitman: Ó viver sempre e sempre morrer, uma tradução do poeta americano feita por Miłosz para o polonês e traduzida aqui para o português. Olhar para este detalhe significa perceber a complexidade enfrentada na seleção dos poemas, que aposta num poliédrico e diversificado Miłosz, de diferentes expedientes, estilos, tons, temas. Marcelo Paiva de Souza enfatiza, de fato, em sua introdução o intenso trabalho desse poeta no campo das letras e oferece ao leitor brasileiro um percurso com lente de aumento nestes passos que atravessam o crucial do Século (Badiou).
Brodsky, outro exilado, deu talvez uma das entradas possíveis nesta escrita ao dizer que a poesia de Miłosz não reponde à pergunta “como viver”, mas sim ao questionamento de “pelo que viver”. A poeta Antonella Anedda, que possui uma forte relação também com Herbet e Mandelstam, ressalta que deixando de lado o “como”, há uma demanda premente pela ética, pela responsabilidade. É descartada a retórica, como fica claro na seleção desta antologia, e alguns dos instrumentos escolhidos pelo poeta são o sarcasmo, a coragem e o estoicismo: “Tem um gosto acre nosso convívio humano”.
O poeta não desvia diante da crise da linguagem, acentuada pela irrupção e pelos destroços da guerra. Miłosz não segue as veredas do emudecimento — alguns dos poemas de Para isso fui chamado deixam isso muito claro —, mas se debate com a incapacidade de dizer tudo. E este tudo é a um só tempo a dor do mundo, a solidão dos mortos, mas também a alegria, o êxtase. A reponsabilidade inclusive diante da escorregadia linguagem é uma resposta para tudo o que aconteceu, a toda e qualquer crueldade. Até os anjos foram despojados de suas roupas e asas (“Tiraram suas vestes brancas,/ Suas asas e até sua existência,/ Eu, no entanto, acredito em vocês, Emissários”), desnudados, resta somente a voz (“Essa talvez é uma prova” e “Ouvi essa voz muitas vezes no sono”).
Foi ao anjo, figura enigmática, que Carlito Azevedo dedicou algumas de suas cobiçadas oficinas e a aula inaugural da Escola de Letras da Unirio, em abril desse ano: “A parte do anjo: os que escrevem com o que escapa”. Um anjo às avessas. Falar de um mundo “outro” com as feridas da realidade e da história, que indaga as ofensas é talvez a tentativa do poético diante da dificuldade de lidar com o que acontece ao redor. E não se trata só de coisas grandiosas, mas daquele cotidiano mais infimo que tudo abala, como já conhecemos em Clarice Lispector.
Para Miłosz, no poema Uma aranha, essa situação parece se concretizar, pois a hostilidade em relação a esse animal existe, a tentação de matá-lo é forte (a aranha também aprisiona a mosca, “a picada mortal”), mas ela é deixada de lado, não se abre a torneira para a água levá-la. É dito que na casa há outro banheiro (mas isso não a salva):
E deixo como está. Em vez de abrir a torneira
E acabar com esse incômodo. Que se esforce,
Dou a ela uma chance. Por enfim nós,
Humanos, podemos no máximo não fazer mal.
Não pôr veneno na trilha frequentada pelas formigas,
Salvar as tolas mariposas que se atiram na luz,
Separando-as com um vidro da lamparina a querosene
Junto da qual eu escrevia. Diga, afinal —
Falo comigo mesmo agora: o impensado
é a salvação de quem vive.