A história a seguir foi contada pelo jornalista Joel Silveira ao repórter Geneton Moraes Neto. Enquanto Joel “o víbora” Silveira batia freneticamente à máquina, o jornalista e dramaturgo Nelson Rodrigues parou ao seu lado, estático, fritando o colega de redação com o olhar. E de repente diz: “Patético”. Instantes depois, já na sua mesa, era Nelson que batia à maquina e foi surpreendido por Silveira, que disse, enfaticamente: “Dramático”. Em que pese a crítica embutida nesta afirmação, é possível inferir que a obra artística de Nelson Rodrigues tinha influência mesmo nos seus escritos jornalísticos, como se buscasse nestes textos uma dramatização do real. Ao contrário da regra dos manuais de redação de hoje, Nelson Rodrigues não tinha como norte a isenção e a objetividade — dois paradigmas do jornalismo moderno. Pelo contrário. Dizia que detestava os idiotas da objetividade. E foi dessa maneira que suas colunas nos jornais Última Hora e O Globo causavam espécie e conquistaram inúmeros leitores e, ao mesmo tempo, ojeriza junto aos detratores — para quem, Nelson era um reacionário e conservador. Um recorte dessa produção pode ser encontrado agora com a republicação de A vida como ela é…, coletânea de contos organizada pelo próprio autor na década de 60. No livro, estão alguns elementos que tornariam a obra de Nelson Rodrigues, a um só tempo, original e perspicaz, principalmente porque soube “pescar”o sentimento subjacente à aparência, de maneira inteligente e detalhista.
No total, são 100 contos que foram publicados nos jornais. Não se trata, aqui, caro leitor, de informação redundante. O propósito deste resenhista nada mais é do que realçar o fato de o autor ter produzido boa parte dessas histórias num ambiente frenético de redação, algo inimaginável para boa parte daqueles que se assumem escritores hoje em dia. Por um lado, porque existe a crença de que, como arte, a literatura merece um status de criação que não pertence ao cotidiano, ao ordinário, ao comum. Os autores, portanto, deveriam ficar encastelados em busca da obra perfeita, da palavra certa. Por outro lado, ao fugir do comum, esses escritores fogem do contato com as pessoas, daquilo que realmente lhes toca o coração, de seus dilemas morais e crises emocionais. É como se a alta literatura só conseguisse lidar com temas que estivessem fora do âmbito do cidadão médio, sendo, dessa maneira, excludente por natureza. Ainda assim, ao contrário do que a crítica estabelecida apregoa, Nelson Rodrigues consegue expor o cotidiano das pessoas ao fazer literatura. É certo que sua prosa não é reconhecida tanto quanto seu teatro. No entanto, não há como separar um do outro, uma vez que ambos se utilizam do diálogo, da descrição psicológica e do relato coloquial para trazer um outro olhar para o dia-a-dia. A vida como ela é, afinal.
E as histórias, segundo Nelson Rodrigues, mostram que a realidade pode ser a melhor matéria prima para a ficção. O anjo pornográfico, nesse caso, faz com que seus contos estejam sob o signo da dubiedade, entre o literário e o não-literário, uma vez que abusa do realismo para narrar a alma encantadora das ruas e dos viventes num momento peculiar da história do Brasil. É dessa forma que se nota, por exemplo, como as aparências pertencem a um plano que, muitas vezes, simplifica a realidade, como se estas fossem esquemas que coubessem nas planilhas dos institutos de pesquisa ou no censo do IBGE. É como se o jornalista gritasse ao pedir para olhar o traço subjetivo em vez de se fiar na realidade propriamente, como se esta existisse num lugar comum. Tome-se como exemplo o conto Isto é amor, cujo mote é a suspeita de que Fernandinho, o noivo de Emilinha, é homossexual. Na história, o noivo é pressionado até que se assume como tal (embora não exista ali qualquer confissão explícita a respeito). Haverá, como sempre há, quem diga que o autor é preconceituoso por tratar desse tema de forma irônica e sarcástica; entretanto, é necessário observar o fato de Nelson Rodrigues não politizar a questão. Assim, em vez de ser maniqueísta e coibir (ou ridicularizar esse comportamento), ele prefere mostrar que Emilinha, mesmo assim, amará para sempre o noivo. A ponto de, colérica, esbravejar: “Se eu não me casar com ele eu me mato, pai”. Tal exagero também existe no comportamento de Alipinho, o rapaz criado entre mulheres e que, de súbito, é convencido (e conduzido) ao casamento. Dias antes à cerimônia, ele rompe com a resignação e tem uma atitude extremada: suicida-se vestido de noiva, ao som da marcha nupcial. Absurdo? Tanto quanto a realidade.
Obsessões
Nesse sentido, cabe destacar, ainda, o enfoque temático. A esse respeito, aliás, a crítica que se supõe progressista e moderna afirma, como de costume, que se trata de uma fixação em esquemas já experimentados e, sobretudo, moralistas, uma vez que Nelson Rodrigues atacava os desvios de conduta das personagens. Do mesmo modo, há quem sustente que o dramaturgo sempre insista nas variações de um mesmo tema: a infidelidade. Pois seria com surpresa se tais críticos vissem o mesmo Nelson Rodrigues assumindo que tinha lá suas obsessões e que sem elas não era nada. Já no que se refere ao moralista, isso é bastante discutível a partir do momento em que suas histórias estejam sempre em conflito com o status quo, com o pensamento dominante, acusando, justamente, o conservador que existe no ser humano de um modo geral. Mais do que obedecer a determinados esquemas ou fórmulas, os contos questionam e propõem um olhar cínico, derrubando os clichês e o pensamento médio. Não custa lembrar: é dele, Nelson, a afirmação que toda a unanimidade é burra. E é essa sensação, a de que verdades absolutas não resistem, que permeia as histórias, como se o próprio autor estivesse a abalar as certezas de seus personagens, como a do homem que não suspeita da esposa por achar que a conhece por inteiro, quando isso é bastante improvável. Ou, também, quando um de seus personagens assevera: “Nem se deve amar a própria esposa. Não é negócio. Só dá dor de cabeça. Compreendeste? (…) A esposa é companheira, sócia”. A atitude pode ser maquiavélica e, vá lá, reacionária, mas conseguir expor essas características é uma prova de talento e criatividade.
Existe uma confusão recorrente entre a crônica e o conto, como se o primeiro fosse um subproduto do segundo, o que talvez explique o fato de muitas pessoas confundirem as crônicas de jornal com contos. Apesar de contar suas histórias com coloquialidade, realçando alguns detalhes com o cômico — como o Valverde (Uma senhora honesta), cuja timidez “talvez decorresse de sua condição melancólica de asmático” —, os contos de Nelson Rodrigues se reafirmam como tal para além do estilo, posto que as histórias transcendem o factual ao captar detalhes muito mais inerentes à condição humana do que à frivolidade tão comum nas crônicas. Ainda no que se refere ao conteúdo, há que se mencionar o fato de as histórias contarem com um eixo começo-meio-fim extremamente claro. Não se trata tão-somente de uma seqüência lógica, algo que deveria ser comum a todos os escritores, mas, sim, de um componente da ficção que possibilita ao leitor mais atento uma noção (parcial que seja) dos interesses do escritor, talvez indicando, no caso específico de Nelson Rodrigues, uma crítica social à hipocrisia, como se lê no conto O monstro. Nessa história, o pai aceita uma imposição da filha com medo de ser delatado por sua conduta extraconjugal.
Em A vida como ela é…, os leitores não somente têm a oportunidade de ler o texto integral desses contos (a edição publicada pela Companhias das Letras privilegiou 45 contos), como também podem confirmar o que para muitos já é uma certeza: a de que Nelson Rodrigues é um dos grandes intérpretes da alma humana. O prazer proporcionado pela leitura, nesse aspecto, é uma prova incontestável de como o jornalista entendia a alma humana, utilizando, para tanto, recursos estilísticos poderosos sem jamais esquecer da dramaticidade nesses relatos. Para além da fórmula e da técnica, o que fica evidente é o talento do autor.