Penso, ao ler Chumbo, em uma avalanche de considerações sobre o olhar do viajante, do estrangeiro, sobre o distanciamento crítico, sobre ver de fora, etc. Trata-se de uma HQ sobre a ditatura brasileira, escrita e desenhada por um francês. Matthias Lehmann é filho de mãe brasileira com pai francês. Chumbo foi lançada primeiro na França e na Bélgica, em 2023, pela Casterman.
Há um certo esforço para dizer que não é um olhar estrangeiro, que Matthias Lehmann é franco-brasileiro. Tenho a suspeita de que isso pode ser só medo do policiamento do lugar-de-fala.
Lehmann é sobrinho do escritor Roberto Drummond, autor de Hilda Furacão e, por causa de laços familiares, sempre veio muito ao Brasil. Então alguma brasilidade ele tem.
Ninguém passa impune por estadias no Brasil, mesmo que apenas de férias.
Eu acho que esse possível “ver-de-fora” não é um problema. Também acho que a narrativa vivida, experimentada, é maravilhosa. Para mim, o que conta é como a história é contada. E Lehmann faz isso com maestria. É claro que o como tem relação com o quem conta a história, mas vamos deixar isso para outro momento.
A HQ dá conta de 1937 a 2003. Vai, grosso modo, do golpe que fundou o Estado Novo do Getúlio Vargas até o início do primeiro mandato de Lula. É bastante coisa, ainda mais se tratando de Brasil, o país que não é para amadores. No capítulo 4 é onde acontece o golpe militar de 1964. O Ato Institucional 5 (AI5) foi decretado em 13 de dezembro de 1968 pelo então presidente Arthur da Costa e Silva. Seguido, como todos sabemos, pelos Anos de Chumbo, que dão nome à HQ.
No hotsite — chumbo.art.br — tem uma timeline dos principais eventos relatados na HQ. Tem também um material riquíssimo, que inclui imagens dos sketchbooks e as fotografias históricas utilizadas como referência.
Usando como costura narrativa, Lehmann conta a história da família Wallace e vai tecendo as tensões que conhecemos bem, incluindo discordâncias políticas entre membros da mesma família. Às vezes chegando até a rompimentos de relacionamentos.
Acabamos, em março desse ano, de completar 60 anos do golpe militar de 1964. O fato de que essa história é tão recente torna ainda mais surpreendente a ascensão da extrema direita no país.
Li em uma entrevista que ele demorou quatro anos para finalizar a HQ de 360 páginas. Apesar de ele responder ironicamente que trabalhou rápido, não me parece muito tempo, confesso. Começou a ser escrita em 2019. É um dado importante, porque aqui no Brasil estávamos, justamente, no auge da onda bolsonarista, com dancinhas pedindo a volta da ditadura e do regime militar.
Lehmann menciona algumas figuras verídicas conhecidas e também vai beber na fonte do design, artes plásticas e arquitetura brasileiros. Como boa literatura histórica, a pesquisa está lá, alto e clara.
A divulgação da HQ pela editora diz que:
Todo o cuidado meticuloso com os fatos, ao longo dos muitos anos que a obra percorre, se reflete no uso de trechos de jornais, reproduzidos no traço marcante do quadrinista. Chumbo incorpora também uma representação encantadora dos hábitos populares, da cultura mineira, da publicidade e da música. O estilo versátil de Lehmann vai do realismo a expressões caricatas, que remontam duas de suas inspirações, Flavio Colin e Robert Crumb.
Influências
Além dos citados Flavio Colin e Robert Crumb, me parece claríssima a influência do sueco Art Spiegelman (Maus, 1986).
Do cenário artístico ainda, aparecem, direta ou indiretamente, em Chumbo: Alberto da Veiga Guignard; Allan Sieber; Cândido Portinari; Carlos Drummond de Andrade; Carolina Maria de Jesus; Chico Buarque; Cintura Fina; Clara Chotil; Clara Nunes; Cyro Monteiro; Fabio Zimbres; Fernando Sabino; João Vale; Lina Bo Bardi; Marcello Quintanilha; Marcelo D’Salete; Mário de Andrade; Nara Leão; Nicolaï Pinheiro; Tarsila do Amaral.
A arquitetura, especialmente a de Belo Horizonte (MG), é uma “personagem”. A intimidade com a cidade vem da infância e da família de Lehmann. Você não precisa gostar ou sequer conhecer BH para se fascinar com os planos abertos de Lehmann.
A publicidade também tem uma participação significativa, pontuando o clima da época. O hotsite faz referência ao livro Linha do tempo do design gráfico no Brasil, de Chico Homem de Melo e Elaine Ramos (Cosac & Naify, 2012). Vemos anúncios de remédios, refrigerantes, cigarro. Até cartelas do jogo do bicho fazem uma participação, ilustrando bem as muitas incoerências brasileiras.
Engana-se, entretanto, quem achar que é uma HQ puramente histórica. Os dramas pessoais e as constantes cenas de sexo tecem uma costura narrativa que, bem à brasileira, mistura política, erotismo, arte, música, vida privada, ilegalidades, etc.
Silêncio
Lehmann é, antes de qualquer coisa, um grande artista gráfico. A HQ não é um silent book, mas utiliza em diversos momentos a narrativa silenciosa. O capítulo V — Guerrilha do Jequitinhonha — abre, contando a partir da dupla de título, com 16 páginas sem texto. O capítulo IX é outro exemplo da magnificência de Lehmann, com as suas nove lindas páginas demonstrando a fundição de uma estátua do personagem Severino, inspirado no tio do autor. Além de outras semelhanças, Roberto Drummond foi homenageado pela prefeitura de Belo Horizonte com uma estátua de bronze em tamanho real na Praça Diogo de Vasconcelos.
Imagino o quão difícil tenha sido fazer o capítulo VI: DOPS, Belo Horizonte, julho de 1970. Felizmente, as cenas de tortura não são tão explícitas e conseguimos continuar a leitura.
Preciso confessar que amei o papagaio Gramsci, que recita Lênin. Antonio Sebastiano Francesco Gramsci, além de marxista, foi também filósofo, escritor, teórico político, jornalista, crítico literário, linguista e historiador. Foi membro-fundador e secretário-geral do Partido Comunista da Itália. Gramsci morre no ano em que a narrativa começa. Colocar seu nome no papagaio é só maravilhoso.
A HQ é cheia de humor e de brincadeiras como a do Gramsci. Ainda bem. Ler essas 364 páginas seria uma tarefa e tanto se não fosse por isso. A história brasileira não é fácil de compreender. Ou de aceitar. Lehmann consegue, através do humor, do erotismo e das referências de época, nos conduzir por 66 anos de uma turbulenta, difícil e, muitas vezes, vergonhosa história.
A pesquisa profunda, minuciosa e detalhista transparece em cada quadro, em cada desenho, em cada fala.
Li em algum lugar que Lehmann optou pela narrativa em preto e branco para se afastar do clichê do Brasil colorido, tropical e alegre que permeia o imaginário europeu.
De uma forma geral, se afastar de clichês sempre me parece uma boa ideia. Chumbo se afasta de muitos diferentes, em muitas camadas de significação. É uma narrativa que, mesmo para nós que conhecemos bem essa história, sai do óbvio.
O site ActuaBD — referência em narrativas gráficas na França — abre a matéria sobre Chumbo questionando o que “sabemos” sobre o Brasil além de samba, carnaval carioca, capoeira, Lula e Bolsonaro? E responde: “Pas grand-chose.” Então apresenta a HQ e conclui que é uma publicação essencial e destinada a se tornar um clássico. Eu concordo.
PS: Senti, entretanto, falta de um sumário. Então, faço um aqui para vocês:
I – Congado – p. 3
II – Rebendoleng – p. 35
III – O suicídio de Getúlio Vargas – p. 75
IV – A revolução – p. 111
V – Guerrilha do Jequitinhonha – p. 151
VI – D.O.P.S. – p. 215
VII – Gotha – p. 251
VIII – Jogo do Bicho – p. 291
IX – A estátua – p. 345