Pelas ruas de João Antônio

João Antônio inventava-se em ruas, e os passos hoje soam naturais, talvez não, se os governos, com sua máquina de marketing
01/08/2002

João Antônio inventava-se em ruas, e os passos hoje soam naturais, talvez não, se os governos, com sua máquina de marketing, de uma hora para outra encobrissem com eficiência as prostitutas, os guardadores de carros, os personagens que surgem nos botecos como quem finca o pé numa causa: o desapego, o deixar-se ir.

Seu olhar desdobra-se por estas ruas, ainda guardam um traço de rusticidade, embora muito do que foram esteja devorado pelos novos tempos. Com ele, não tem esse papo de que é preconceito contrariar o novo, ou o progresso. Não há, afinal, como se livrar das coisas boas do passado, como aturar a substituição de um Cartola pela música “estrangeirada, pré-fabricada por computador”. Não merece seu perdão nem mesmo a onda de turismo que crescia nas duas cidades presentes na sua prosa, Rio de Janeiro e São Paulo; “…tão bem arrumados quanto monstruosos, em grupos farisaicos ou autômatos, muita vez risonhos e distantes, fariseus nada tendo a tratar com a prostituição e que, num momento assim, são mais infames do que ela” (Abraçado ao meu rancor).

Caminha, e os olhos, aliados à experiência, são o narrador dos seus livros. “Um homem empanturrado não pode entender um faminto. Mas já sabiam antes de mim os russos e escreveram isso há mais de cem anos”, escreveu, valorizando um anseio vivo desde Tolstói a Lima Barreto (um mestre de J. Antônio), da busca por uma arte empírica, que tem na vivência um dos seus motivos, coisa que Tolstói sabia essencial na arte popular.

A cidade, as pessoas que a fazem, a linguagem na qual essas pessoas se inventam, são seus personagens. Não escapam a isso os discursos que bombardeiam a vida urbana. Dentro da sua lente, eles se tornam ficção da boa: as notícias de jornal, as propagandas e o marketing, o apelo ao consumismo, estão dentro de sua visão de mundo, e são postos à prova com ironia. Destaca-se a experiência do jornalismo, qual aconteceu com Lima Barreto. Ao contrário deste, é bom que se diga, João Antônio usou o jornalismo como motivo de diálogo. Em suas prosas de fôlego Abraçado ao meu rancor, Leão-de-chácara, e Ô, Copacabana, o enredo não é linear, o que há é visão de mundo, que não se rende à palavra fácil, bem comportada. Seu velho mestre buscava no texto jornalístico uma maior clareza para sua mensagem — armas que cada um dispunha em sua época.

“Quem aposta no caos acerta na mosca”, talvez tenha sido essa a fórmula para recriar um país mais verossímil do que o discurso organizado dos políticos e dos jornais. É verdade que suas críticas queriam também o choque com a ditadura, mas impressiona como passar por suas páginas (ruas) revela ainda sobre nossos dias, quando a ditadura seria (em tese) um passado impresso em livros de história.

Esse itinerário é árduo, Abraçado… o diz. O texto dá a impressão de que João Antônio resolve analisar, de maneira cúmplice, seu lado íntimo, mas também seu lado de homem público, escritor conhecido. Neste percurso, mostra-se decepcionado com o jornalismo, irrita-se com universitários que fazem uma pesquisa de campo sobre a pobreza — não compactua com o artifício dos estudantes —, seus passos são gestos de se conhecer. O escritor está revisitando São Paulo, cidade natal e, num espaço que não é mais seu, o homem só está observando; “Este viver nesta cidade é tão ruim que as pessoas trabalham continuamente para esquecer que vivem nela. É terrível, não esquecem”.

Chegando ao morro, onde nasceu, reencontra sua primeira identidade. “Penei minha infância aqui, nestas filas e trens encardidos, apinhados. Olhem, isto me bole. Daqui me saí, bandeei no mundo. Quando volto ao morro, quantas vezes, é subindo feito cabrito escabriado, meio na culpa, de assim…mas também com alegria, porque o pessoal diz, mal sabendo das coisas e me olhando as roupas, que sou feliz como um desgraçado”.

Esta perspectiva de mundo, de quem está em movimento, não deixa de me lembrar, entre as obras de Lima Barreto, o romance Vida e Morte de M. J. Gonzaga de Sá, pelos dois personagens, M. J. Gonzaga e o narrador, andando sempre, o que desencadeia uma série de reflexões do velho M. J. O rancor de Lima, às vezes colérico, não se esconde, está ali, latente, o sofrimento pessoal é mostrado sem medo do exagero. O texto de João Antônio abre espaço para um sarcasmo, para uma disposição de luta que as condições de vida de Lima não permitiram. Na visão sobre o preconceito, os dois se esbarram de novo, valendo a leitura dos contos Sufoco (J. Antônio), e O Pecado (Lima Barreto).

João Antônio não mistifica o pobre, nem prejulga os ricos. Seus personagens sofrem uma realidade que se acoberta em vários discursos. O escritor não era determinista ou fatalista, pelo contrário, seus personagens entram em choque com um mundo que cobra total adaptação; “esses pais burgueses juram e juram, suas filhas fugidas da casa eram meninas direitas, incapazes de se prostituir, pais jurando, os cachorros da mesma raça mudam de jeitos e até de latidos conforme o país — ou conforme o modo dos seus donos? (Abraçado…).

As ruas de João Antônio ainda vão passar pela incidência de épocas e maturidades diferentes. À nossa época, ao menos, se encaixam bem. José Castello, por exemplo, já havia estado por estas ruas antes, e, sobre elas, escreveu: “Jamais escondeu seu gosto pelo realismo, se bem que esse era um realismo de boxeador e não de retratista, pois ele achava que a literatura só interessa quando tenta enfrentar a realidade, desafiá-la, atiçá-la a se mostrar qual é”, (do livro Inventário das sombras). João Antônio deixou uma obra que sabe mais do conhecimento humano e pouco espaço oferta a esta dita modernidade.

Pedro Carrano
Rascunho