Engana-se quem pensa que a realidade é dada — é adquirida com esforço. Percebe-se essa apreensão extenuada do real em Caveira 41, de Age de Carvalho, publicado pela coleção Ás de colete (o nome homenageia Zuca Saldanha), da 7Letras e Cosac & Naif, editada por Carlito Azevedo e que vem trazendo à tona poetas de força e pluma, leveza e autoridade de vôo. Esse novo livro tem unhas cortadas, polidas (as pontas das folhas são curvas), diferente das primeiras edições da série, de capa dura, que apresentaram as antologias de Adília Lopes e Cacaso.
Age de Carvalho, 45 anos, ainda é um culto para poucos amigos. Um caminho diferenciado na poesia brasileira, que o isola quando o deveria destacar. Escavador de correntes subterrâneas, oferece textos cifrados, misteriosos, que não aceitam a elucidação imediata e o código de barras. Paraense (como os geniais Benedito Nunes, Haroldo Maranhão e Vicente Cecim), radicado em Viena, fazia tempo que não publicava. Sua produção inicial saiu por editoras locais em Belém. Sua última obra, a antologia Ror, veio a lume em 1990 pela coleção Claro Enigma (Duas Cidades). Significa uma oportunidade de matar a saudade, coletânea de escritos de 1991 a 2000.
A realidade de seus versos é conquistada, apanhada aos sorvos, aos corvos. É uma peça de oratório, poesia tão pura que se assemelha a um transe. Age de Carvalho faz uma lírica do ainda, da duração, da permanência grave e atordoante que abre e fecha segredos. Todo poema é um ato de difícil escolha, de definição de vida e de imersão na voz. Lírica das margens da estrada, onde até a árvore é portátil e se carrega junto ao paletó. A pedra se movimenta, mas o rio é paralítico. Breviário do relance, não do olhar demorado nas coisas, pois o relance estranha as coisas em uma outra intimidade. É um olhar a esmo, não perdido, confiante no ato de ciscar. Quanto mais rápido o olhar, mais a ordem se desestabiliza. Há um estranhamento cultural e biológico, talvez derivada da estada do escritor no exterior e que gera uma posição deslocada de fora para o cerne. Tanto que a expressão “turista terminal”, presente em Caveira 41, sintetiza essa duplicidade e valorização de um angulamento novo. O crítico Júlio Castañon Guimarães observou tal impulso externo-interno: “A poesia de Age de Carvalho caminha num sentido em que, mais do que se valer da linguagem, revela estar penetrando na linguagem”. O atrito é exercido na imposição de falhas e na criação de uma mudez característica do teatro de Becket. De uma hora para outra, sente-se que a luz vai cair, algo vai quebrar entre os diálogos. Um poema do livro de estréia, A arquitetura dos ossos, anunciava esse mandamento: “serei inacabado e breve”. Domina um sentimento depois da esperança, uma serenidade que é a maturidade e que pode ser caracterizada como fé dos desastres. O acaso não será mais abolido. /A cantar: a trans-/ ferida faca n’água/ a nos abençoar/ de mão em mão.” As palavras são fraturadas, como pedras de um colar desfeito que ganham um outro brilho e velocidade quando isoladas. As assonâncias reforçam a miniaturização lírica, um enredo feito de fragmentos, com pouquíssimos adjetivos, disposto à autodestruição e ao despedaçamento. Sobressai uma linha de justaposição, um detalhamento sem a camisa-de-força narrativa hierárquica. As palavras aqui são menos palavras e mais sombras. Identifica-se uma economia melódica, uma unidade interna (rítmica e temática) que encordoa os versos (sempre esticados, prestes a se romperem). Nem tudo merece ser entendido, mas pressentido. Cada linha conceitua um autoconhecimento, um virar-se para dentro. Desde Arena, areia (1986), Age incorpora o título dos poemas como início ou extensão dos versos, dando uma idéia de continuidade e de baque.
As imagens são concentradas e tensionadas em descrições intensas, desarrumando perspectivas tradicionais e o quadro temporal. Nota-se a influência generosa de Max Martins, outro grande poeta paraense, co-autor de Fala entre parêntesis (1982) de Age de Carvalho, uma espécie de renga entre os dois autores. Martins é também ritualístico e propõe o poema como “fome de si mesmo” (O risco subscrito, 1980). Essa fome de leitura, intertextual, norteia a produção de Age de Carvalho, que lê Salvador Espriu e Jorge Guillén no bojo de Caveira 41. Lê para transmudar, citando e incorporando destinos e referências cruzadas. Um cruzamento de desperdícios, de carências, de outros escritores no corpo do texto. “’Acumulando destino’,/ diz o amigo-ego/ repetindo Guillén”. Em outro poema, a seguir, Age enfatiza o sentido de acúmulo: “Ser era/ não-estar, sete, os sinais/ acumulando ausência”. Nada é esquecido, a memória rumina lembranças, presságios, sinais. A busca autoral não é feita fora de si, mas de livros já metabolizados pelo sangue. Em A arquitetura dos ossos, há um dístico que funciona como revelação: “Espero reaver-me em mim mesmo”. Ou seja, desde o princípio, vinga-se um desejo de resgate, de reabilitação, de recuperação da unidade perdida.
O estilo curto pressupõe a contenção, aproveitando um despojamento oriental, herdade de Bashô e Lao Tsé. Fala-se como quem se cala. Falta-se como quem fala. Não é uma poesia de pensamento, mas pensamento de poesia. “É/ tempo de dizer: aqui,// sim,/ estou pronto”. Sua fala está impregnada de lacunas vorazes, de silêncios sequiosos, de bagagens extraviadas entre um aeroporto e outro, entre o quintal e a casa dos pais. “Já não me chamavas/ Filho,/ vivias/ e era tarde”. Firma-se uma postura judaica de exílio, que comove pela densidade dos apelos familiares. Os poemas exultam a carga dramática de conselhos, afirmações interrogativas ao pé da cama e do testamento. Isso reforça a genealogia dos contadores de histórias, da preservação da memória pela oralidade. Em Arena, areia, o poeta antecipava: “esta página, gueto da letra.” A palavra, reduzida pela experiência, firma-se como o único espólio possível. O resto foi perdido. As perguntas tornam-se respostas. “E/ então veio,/ baixamos,/ perguntei: posso?” No deslizar de sussurros e sigilos, a linguagem é confiada de boca a boca, em uma proximidade criminosa. “Sim,/ ainda sem Deus/ teu nome está perto,/ filho — o anel/ submerso, salvo.”
Age não está provocando o indizível como o alemão Paul Celan, não está perto do que não pode ser dito. Está rente do que deve ser dito. O autor suporta o peso da consciência além dos limites vocabulares, além das cercanias do mundo, e caça justamente o nome inadmissível, pronunciável mas relutante, o que o verso não quer dizer porque talvez seja o seu fim.
No andamento de Caveira 41, corre uma tristeza suave, uma música religiosa (“uma caixa-oração”), reconhecendo a evocação como um ato mágico de escutar a terra e seus mortos-vivos. “Ouves?/ Tudo pede perdão.” Perdoemos, portanto, o silêncio que não é poesia.
Ano Novo
De Caveira 41
De passagem
na plena idade,
sem tenda e estrela
e longe da selva,
perambulando num lavatório
de aeroporto à espera
da pantera,
vorado por dentro
a farejar o círculo
extravagante que conduza
à via nova
do início de tudo
quando avisto, brilhante-
perfeito, céu do êxito, luminoso aviso
em vermelho, Saída,
e solar-radiante
a flecha