Laura Erber, no seu primeiro romance, apresenta a questão inerente a toda boa literatura: o estranhamento. O personagem principal de Esquilos de Pavlov, Ciprian, é romeno, e toda a narrativa, ambientada na Europa, passa ao largo de referências ao Brasil. Este aspecto poderá levar o leitor brasileiro a uma pergunta difícil de ser respondida: o que caracterizaria, nos dias de hoje, uma literatura nacional? Talvez o que se possa dizer é que, quando se trata de boa literatura, ela escapa a definições generalizantes. Outra resposta poderia ser que tal estranhamento ocorre não necessariamente pelo fato de a narrativa ambientar-se em outros países, mas pela margem de novos sentidos que tanto a ficção como a poesia é capaz de oferecer. Além disso, a arte, quando tem o poder de fazer refletir sobre o nosso (não) lugar no mundo, torna todos — autores e leitores — estrangeiros.
O romance começa com uma reflexão que o narrador em primeira pessoa atribui à própria mãe, embora ela se mostre incapaz de colocá-la em palavras. Trata-se da necessidade da continuação da espécie; apresentada naquele momento, no entanto, sob a retórica do regime comunista ainda vigente na Romênia, e que justificaria a vinda ao mundo deste mesmo narrador. Ciprian acrescenta, falando do seu nascimento: “É o início de uma nova década e dizem que a pintura vai acabar. Dizem que a nova beleza está na forma das cidades e no rosto das pessoas. E dos carros”. O livro, já então, revela ao que vem. Tratará da arte contemporânea. O narrador continua, “não pensava em ser artista embora cursasse belas artes. […] Por sorte ou por miopia do partido comunista a biblioteca pública me empregou como secretário e larguei a faculdade”. O personagem passa a fazer nas bibliotecas o que chama de intervenções, atitudes que lhe vão permitir diálogo com os artistas de “vanguarda”. Estes sempre estarão à sua volta. Ele prossegue: “na biblioteca era mais fácil encontrar personagens que eu gostaria de ter sido ou encontrado. Pensamentos que gostaria de ter pensado ou escrito. E todo o nosso desenredo. O jovem que só era feliz na biblioteca foi uma espécie de cinéfilo dos livros”.
Mas Ciprian tem a trajetória alterada devido a uma bolsa de residência que obtém para se fixar temporariamente em alguns países da Europa. Ele deixa a Romênia e transita pela Alemanha, Dinamarca, França e Suécia. É na Dinamarca, porém, onde ocorre grande parte das peripécias do romance. O personagem, sempre que necessita, inclusive em se tratando de assuntos policiais, recebe misteriosa ajuda da maçonaria, fato para o qual nem mesmo ele sabe o motivo. Será por que seu pai fora um dia maçom?, ele se pergunta.
Seu pai merece um parágrafo à parte. No final dos anos trinta, travou contato com o surrealismo. Mas o mau encontro que teve com o movimento artístico perturbou-o até o fim da vida. Spiru é o seu nome, assinando vez ou outra alguns textos como Pulga, fato que o filho só descobre anos mais tarde. Spiru chegou a trabalhar com homens que viriam a se tornar famosos, como Paul Paun, Gellu Naum e Ghérasim Luca. Recolheu sucata para este último, que elaborava uma nova teoria da “circulação do desejo, incluída no livro O vampiro passivo, publicado pelas Edições do Esquecimento em 1945”. Spiru torna-se conhecido por publicar regularmente episódios de As aventuras do ursinho metalúrgico, obra que escreve por questões de sobrevivência. Não era através de narrativas edificantes, protagonizadas por um personagem que glorifica a ideologia sob a qual a Romênia ainda estava imersa, que Spiru buscava a fama. Mas um dia, ao fazer intervenções nas fichas do acervo de uma biblioteca particular na França, Ciprian descobre a verdade sobre o pai.
A questão principal do livro, no entanto, é a seguinte: o que é arte nos dias de hoje? Quais são as instituições que ajudam o artista contemporâneo e por que motivo elas atuam nesse sentido? O que é uma bolsa de residência num país estrangeiro? Percebe-se, ao mesmo tempo, o caráter mercantilista da arte contemporânea, e mesmo o descarte de alguns artistas por outros mais jovens. Muitos acabam produzindo fachadas de azulejos para milionários, e assim ganham dinheiro. Há também aqueles que contratam candidatos a escultores como assistentes e os exploram sistematicamente.
Condicionamento e liberdade
A referência a Pavlov, num primeiro momento, aparece em Ulrikka Pavlov, uma mulher que discursa aos artistas conclamando-os a abandonar a vida artística: “[…] abandonem as obrigações desse sistema que não faz mais do que impedir o artista de se desenvolver plenamente”. No final, a personagem acaba por agradecer Ole Ordrup, uma espécie de mecenas da arte de vanguarda na Dinamarca. Mas ela não lhe agradece pelo suporte, e sim pela invenção de um delicioso drinque que ela mesma teve a “honra” de batizar Esquilos de Pavlov.
Por outro lado, o narrador refere-se ao Experimento Pitesti, um programa de reeducação empreendido pelos comunistas romenos nos anos 1940 e 1950 contra os dissidentes do regime. O experimento era uma espécie de condicionamento comportamental em que a subjetividade era violentamente aniquilada. Tal programa empregava torturas difíceis de acreditar, mas o romance as descreve minuciosamente. As vítimas teriam sido, sobretudo, estudantes nacionalistas. Tudor de Gherla, um excêntrico poeta romeno que também participa de uma bolsa de residência na Dinamarca, teria sido uma delas. Em determinado momento do livro, a autora faz Ciprian dizer: “Tudor não era chamado de Tudor de Gherla pela poesia que escreveu na sua cidade natal ou sobre ela, e sim pela poesia que nunca conseguiria escrever”. A partir deste momento, a referência a Pavlov alcança outros patamares. E, portanto, a aspiração à liberdade não deixa de permear todo o romance, aparecendo sempre como necessária.
Estando em seu próprio país, a Romênia, antes da queda do comunismo nos países do leste, Spiru, o pai do narrador, defronta-se com uma rede de espiões e com a temida Securitate (uma espécie de braço da KGB soviética na Romênia). Já na Dinamarca, Ciprian se vê sob olhar desconfiado da polícia e dos habitantes locais, o eterno problema dos imigrantes e dos artistas de vanguarda. Neste país escandinavo, pintores, escultores e o que mais se pode chamar de artista reúnem-se em torno de uma bolsa concedida por um milionário que, na verdade, tem objetivos estranhos à arte. Na França, onde enfim Ciprian se estabelece e escreve suas memórias, ele já entrou pelos quarenta anos de idade e se considera um artista que sempre esteve patinando, sem conseguir decolar; nesse momento, já não é aceito como candidato a qualquer tipo de bolsa.
Laura Erber entremeia seu livro com fotos e gravuras, proporcionando-nos além da narrativa romanesca uma espécie de passeio por uma exposição. Tal fato não apenas dá um bom resultado, como também mostra o poder da autora em fazer um contraponto entre literatura e imagem, dois tipos de arte muito diversos e nem sempre amistosos.