Paulo Francis Sempre na trincheira

Há 10 anos morria o jornalista e escritor que optou por levar uma vida entre polêmicas, críticas e ironias
Ilustração: Ramon Muniz
01/02/2007

“Ele vai fazer falta.” Foi com essas palavras, estampadas na capa, que a revista Veja repercutiu, como se diz no jargão jornalístico, a morte de Franz Paulo Trannin Heilborn, ou simplesmente Paulo Francis, que, até fevereiro de 1997, ano de sua morte, foi um dos jornalistas mais influentes de sua geração. Influente não só para quem era jornalista ou gostava de acompanhar os cadernos de cultura. Francis era elementar para todas as pessoas que, quase como uma catarse, assistiam às intervenções do polemista no Jornal da Globo, a ponto de ele ser imitado por quase todos os humoristas (para quem não se lembra ou não viu, ele tinha um jeito para lá de peculiar de falar, enfatizando determinadas sílabas), além de ser sempre tema ou fonte de referência nas conversas sobre cultura (para ficar num exemplo simplório, ele foi duas vezes convidado do programa Roda Viva, numa época em que a TV Cultura tinha alguma dignidade). Em síntese, e para dar progressão a este parágrafo, era impossível passar incólume por Paulo Francis. Entre os jornalistas, havia aqueles que não suportavam sua suposta arrogância, enquanto outra parcela, também significativa, que buscava imitá-lo tanto no seu estilo, como macaquear suas opiniões sobre política, livros, cinema, artes, etc. Nesse quesito, Caetano Veloso, em entrevista a um programa na TV, não poderia ser mais incisivo: “Esses Paulo Francesinhos dos cadernos de cultura”. Mais recentemente, é o colunista da Veja, o escritor Diogo Mainardi, quem tem levado a pecha de herdeiro de Paulo Francis. Não é o primeiro, tampouco será o último. Não tanto pelo estilo, que é mais enxuto, mas, sobretudo, pelo fato de ser um polemista nato. Antes, no entanto, de entrar nesse campo, que é o do legado de Paulo Francis, é necessário entender por que Paulo Francis significou tanto para uma geração, chegando, inclusive, a ser uma das grandes fontes de exemplo dos blogueiros, que, tal como Francis, exercem um jornalismo cada vez mais autoral, no qual o estilo verborrágico e provocador não é só grifo, mas, sobretudo, gênero.

A história já foi contada várias vezes, inclusive pelo próprio Francis, no livro O afeto que se encerra. Nascido em 1930, Francis, tal como o Bentinho de Machado de Assis, quase foi seminarista. Dessa educação, apenas as memórias de uma juventude já inquieta, que não se submetia, Francis parece ter levado tão somente a personalidade forte, ora em construção. Daí, foi para uma juventude que se pode dizer transviada se imaginarmos um Brasil entre as décadas de 30 e 50. O intelectual se projetaria ali para uma formação que só se manifestaria muito tempo depois, na imprensa e nos livros que escreveu. Nesse ínterim, sempre de acordo com suas memórias, a experiência teatral lhe foi fundamental. Foi a partir de uma viagem pelo interior do Brasil que o irrequieto Francis descobriu o Brasil e seus limites não só geográficos, mas também sociais, políticos e institucionais. A viagem, talvez, seria equivalente ao encontro de um país ainda em formação precária, cujas expectativas se desvaneciam à medida que a realidade se mostrava mais bruta, menos urbana e civilizada, comparando com o sul do Brasil. A experiência com um grupo de teatro seria indelével, ainda, para a sua trajetória como jornalista, como ficaria claro muitos anos depois nas suas aparições noturnas na TV Globo, direto de Nova York.

A televisão, no entanto, não foi o start de Francis no jornalismo. O primeiro palco não poderia ser outro além do teatro, só que desta vez como crítico de imprensa. Para o bem e para o mal, a principal lembrança dessa época é a troca de sopapos que teve com Adolfo Celi, após o jornalista ter assinado um texto destrutivo sobre Tônia Carrero, sua desafeta de então. Já no ano passado, o autor Paulo Autran, em entrevista ao jornal Folha de S. Paulo, disse que deu uma cusparada, com prazer, em Francis (anos depois, o próprio jornalista afirmaria que o caso foi um grande equívoco, mesmo assim nunca fez de si uma vítima ou ficou pedindo desculpas infinitamente). Essa, contudo, não foi o grande ato de Paulo Francis como crítico teatral, como mostra o autor George Moura no livro O soldado fanfarrão, de 1996, obra que traça, a partir dos textos do jornalista carioca, um painel das mudanças de teatro no país. A despeito dessa leitura criteriosa (trata-se de um trabalho acadêmico), Paulo Francis reclamaria, para sempre, que seus livros sofriam de uma péssima vontade por parte dos críticos, que, ironicamente, preferiam o homem à sua obra. Mas mesmo essa reclamação, como se verá a seguir, tinha suas origens.

Pouco tempo depois, o jornalista mudaria novamente. Desta vez, foi para a seara da política, onde atuava como comentarista e repórter político. Foi, para sempre, mais comentarista e menos repórter, à medida que não saía à cata de notícias, mas, antes, preferia a análise de fundo ao relato garimpado da reportagem. Nesse caso, o papel de Francis para o jornalismo brasileiro foi capital, uma vez que boa parte dos jornalistas que se formou anos depois tomou o caso do crítico como modelo, utilizando, muitas vezes, os mesmo recursos de Francis, tais como a ironia e a menção a histórias da vida privada que, não por acaso, explicavam os vícios públicos do país. À época do Golpe de 64, Francis, num primeiro momento, se esconde dos militares, mas, em verdade, só seria preso anos depois, quando já estava nas trincheiras d’O Pasquim, o principal veículo da chamada imprensa nanica, como ficou conhecida os veículos alternativos nos anos de chumbo. Essas e outras experiências de Paulo Francis estão amplamente documentadas nos dois livros memorialísticos do autor, o já citado O afeto que se encerra e o Trinta anos esta noite, este último lançado em 1994. A importância desses relatos deve ser levada em consideração, sobretudo se se deseja conhecer a tão pouco comentada atividade de Francis como romancista.

Tímido ficcionista
Com efeito, é uma produção relativamente tímida, posto que o jornalista assinou apenas dois livros de ficção ao longo de sua carreira, a saber: Cabeça de papel, de 1977, e Cabeça de negro, de 1979. Ambos os livros foram retumbantes fracassos de público tendo em vista a popularidade do autor como jornalista. Um Arnaldo Jabor, por exemplo, com seu Pornopolítica, permanece semanas e mais semanas entre os mais vendidos. Eram outros tempos, no entanto, assim como a natureza dos livros ficcionais de Francis pertencerem a uma outra estética, distante do que se havia publicado por aqui. Os livros revisitam a trajetória do Brasil a partir da perspectiva de dois protagonistas bastante peculiares, Paulo Hesse e Hugo Mann. Nota-se, nos livros, um ensaio de roman à clef, com personagens bastante peculiares e, até certo ponto, excessivamente estereotipados. Nesse sentido, é curioso como o livro prima por reconstruir cenários, usos e costumes, como o consumo abusivo e destrutivo de drogas, muito fidedignamente, ao mesmo tempo em que deixa no ar a identidade, se assim se pode dizer, das personagens relacionadas. Com efeito, esse não era o objetivo de Francis, mas, sim, mostrar como funcionava a engrenagem de certa elite brasileira, distante, porém afetivamente ligada ao país que, muitas vezes, teimava em desprezar.

Não se trata, entretanto, de obras de fácil leitura. Como aponta o jornalista Daniel Piza no livro Francis: Brasil na cabeça, publicado em 2003, Paulo Francis ensaia um texto bastante entrecortado, numa prosa arrojada, porém que carece, muitas vezes, de unidade. Trata-se, aliás, de uma espécie de consenso partilhado tanto por seus críticos como por alguns de seus admiradores. Por isso mesmo, é notável a interpretação dada pelo crítico literário José Onofre aos dois romances de Francis (o texto, aliás, consta das edições recentemente publicadas pela editora W11). Nas palavras de Onofre, “os dois romances se constroem em paradoxos, dos quais o principal é o próprio narrador, cuja arrogância de opiniões aparentemente se choca com a modéstia de suas escolhas na vida cotidiana, na profissão, no destino. A frugalidade das ambições reveladas não parece compatível com o despotismo da opinião, sobre tudo e todos. E é com um e com outro que viajamos por um certo Rio de Janeiro, um certo Brasil, ao mesmo tempo tão igual e tão diferente da imagem que fazemos deles: o sol disfarça o clima sombrio da vida nos apartamentos e vivendas; a festa abriga um assassinato; o gesto afetivo disfarça a armadilha”.

Além deste ensaio de interpretação do Brasil, é perceptível, também, um detalhe que permeia todos os textos de Paulo Francis: as inúmeras, e muitas vezes desnecessárias, referências e/ou citações literárias, algumas delas nem sempre atribuídas ao seu autor original. Assim, logo nas primeiras linhas de Cabeça de papel, o narrador já assinala: “não reconhecemos Drummond” — este, não por acaso, era o poeta preferido de Francis. As citações a livros, autores, músicas, peças de teatro sempre foram um dos métodos de Paulo Francis tanto para seus romances como para sua obra jornalística. É a partir desse ponto, a propósito, que é lícito traçar um paralelo entre o romancista e o jornalista, ambos existindo intercambiavelmente no mesmo autor. Como se eles não se dividissem (e, efetivamente, eles não se dividiam mesmo), Paulo Francis exercitava os dois em sua prosa, aludindo a todo o momento à memória que, para todos os efeitos, parecia uma inesgotável fonte de dados, uma grande enciclopédia. Com efeito, é correto afirmar que o jornalista tinha, sim, uma articulação intelectual muito rápida, além de uma carga de leitura considerável; entretanto, é ingenuidade imaginar que a fama correspondia à realidade.

A propósito disso, ninguém melhor do que o multimídia Millôr Fernandes, um dos expoentes d’O Pasquim, para falar a respeito. Está lá, no saite (o estilo é dele, que fique claro) do humorista: “ampliava o que sabia, o que lia, o que via, enquanto o tempo, esse marcador de vidas do qual ninguém escapa, nos mostrava que não era suficiente para que lesse tantos livros, visse tantos filmes, fosse a tantas exposições, escrevesse tanto”. O próprio Francis, no programa Manhattan Connection, uma mesa redonda em que foi estrela maior por muitos anos, dizia, com certa empáfia: “Lia 8 horas por dia na adolescência”, para desespero dos demais debatedores que não conseguiam batê-lo nas convicções e nos dados que apresentava. E é aqui que se pode considerar que Francis articulava a expressão de sua opinião como sendo o eixo maior de todos os seus comentários. Os argumentos, nesse sentido, davam lugar a um estilo que se impunha como ato de vontade e gênero, em vez de informações checadas e citações corretas.

Vício e virtude
Tanto no jornalismo como na literatura, esse elemento era, a um só tempo, característica de vício e de virtude, trazendo, de um lado, os críticos ardorosos, e, de outro, os ferrenhos defensores do autor. No primeiro caso, não foram os poucos que quiseram desconstruir Francis, apontando suas incongruências em verdadeiras tertúlias nas páginas dos jornais. Entre as mais célebres, estão as disputas, se assim se pode chamar, com o crítico literário José Guilherme Merquior; com a filósofa Marilena Chauí; e com o também jornalista Caio Túlio Costa, esta última uma disputa que foi além do esperado tanto para o jornal quanto para Paulo Francis. Ao contrário do que se imaginava, Francis não conseguiu debelar o então ombudsman da Folha de S. Paulo somente com a virulência de seus argumentos. Uma vez encontrado um algoz que localizava seus pontos frágeis, como a carência de precisão jornalística e a importância excessiva que ele, Francis, atribuía a si próprio. “Suas crônicas valem o quanto vale os jornais nas suas poucas horas de vida”, escreveu Caio Tulio à época. De tão acalorado, o debate ganhou as páginas da revista Veja e da revista Imprensa, publicação especializada em jornalismo. Como saldo final, entre mortos e feridos, Francis mudaria para O Estado de S. Paulo e levaria para lá seu jornalismo polêmico, virulento e bastante comentado.

A despeito do tom acusatório, é correto afirmar que nenhum outro jornalista, talvez nem mesmo Daniel Piza (justamente pela proximidade que este teve com Francis, conforme consta do já citado perfil Francis: Brasil na cabeça), soube interpretar o porquê de Francis ser tão considerado e, ao mesmo tempo, temido e admirado. O trecho a seguir consta do livro O relógio de Pascal, um relato da experiência de Caio Túlio como ombudsman da Folha de S. Paulo:

Não pense que Francis tem compromisso com alguém. Ele se compromete apenas com a sua cabeça, esteja ela em situação boa ou precária — como ultimamente. Para usar termos que trouxe à baila, invocando a memória de Claudio Abramo, ele tem mesmo coragem de dizer o que pensa. Mas ele não pensa no que diz. Realmente, se ele realizasse ligeira releitura de seus artigos, se checasse dados, se verificasse a realidade para não deformá-la, seus textos seriam outra coisa. Jornalismo, quem sabe. Imbatíveis, talvez.

Anos depois, outro autor, o também jornalista Fernando Jorge, investiu suas forças num longo ensaio sobre a vida e obra de Paulo Francis cujo título, não menos acusatório, era: Vida e obra do plagiário Paulo Francis. O texto se baseia numa análise transversal de todos os escritos de Paulo Francis, a ponto de Fernando Jorge, já no prefácio, se vangloriar, dizendo que conhecia os textos de Francis melhor do que ele mesmo. Com efeito, o biógrafo analisa cada livro do jornalista, chegando até mesmo a seus romances, sempre estocando na tecla de que Francis tinha como método a utilização de trechos de autores sem necessariamente citar a fonte. O próprio Daniel Piza reconhece a mesma coisa, mas doura a pílula ao afirmar que Francis era “menos original ou profundo do que fingia a ser”. Também talvez por isso, o jornalista tenha ressentido um pouco a publicação de Fernando Jorge, que, por sua vez, desfere ataques com força desmedida. Infelizmente, nesse último caso, o polemista não deu as caras para uma réplica…

Uma pergunta que não cala, assim como o afeto que não se encerra, é por que, apesar de todas essas contradições, Francis permanece mesmo 10 anos após sua morte. Em outras palavras, a tomar as palavras dos críticos como absolutas, Francis não resistiria ao julgamento da história, sendo condenado, junto com o jornal do dia anterior, para o ostracismo. E definitivamente não foi isso que aconteceu. Pelo contrário. Basta observar a nova onda de blogueiros e críticos culturais independentes que herdaram de Francis a forma incisiva de demonstrar suas opiniões. Nesse sentido, mais do que os jornalistas politicamente corretos, esses críticos optam por um ensaísmo de cunho mais pessoal, aludindo, como Francis sempre fez, à sua memória particular para justificar as coisas de que mais gostava. A questão de gosto, nesse caso, pertencia, sim, ao foro íntimo, e não era necessário evocar a teoria crítica para demonstrar apreço por Fitzgerald em detrimento à geração 90, por exemplo.

Mesmo na grande imprensa, surgiram jornalistas nesses 10 anos que, muitas vezes, evocaram Paulo Francis não só textualmente, mas, sobretudo, estilisticamente. Quem lê hoje Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi e, de certa forma, Daniel Piza, reconhece, em cada um desses autores, um pouco de Francis, seja na polêmica, seja no trato de assuntos tão plurais — de música erudita à história política, passando, claro, pela literatura. E como Paulo Francis não passou “oficialmente” esse bastão (algo bastante improvável), muita gente, hoje, quando quer espezinhar os nomes citados, logo se apressa em dizer: “É mais alguém querendo se passar por Paulo Francis….” A menção involuntária, nesse ponto, não escapa.

Para o bem e para o mal, amado ou odiado, Paulo Francis foi, talvez, o último jornalista brasileiro a ser bastante influente junto a uma imensa gama de leitores das mais diversas classes sociais, tendo, inclusive, um espaço privilegiado de página inteira nos principais diários do país (Folha de S. Paulo, O Globo, O Estado de S. Paulo), sem mencionar sua aparição para as “massas” a partir da TV Globo, alcançando até a TV a cabo. Aquilo não era o suficiente para Francis, que, como se lê nas entrelinhas de seus romances, gostaria de ter sido um grande escritor, apostando numa linha narrativa que poucos autores nacionais jamais fizeram. Em vida, apesar da grande audiência, não atingiu o reconhecimento como literato e intelectual. Um dos seus editores, aliás, comentou que um dia sua obra será relida pelos críticos de outra maneira. Enquanto isso, conforme consta do especial de janeiro da revista Bravo!, os editores da W11 prometem uma coletânea com seus artigos nos jornais e a publicação de seu romance inacabado (de certa forma, os leitores já podem se deliciar com alguns dos textos do jornalista relançados no livro especial d’O Pasquim, que em 2006 saiu pela editora Desiderata).

O entendimento da relevância de Paulo Francis não estará certamente na releitura de um enigma que consta de seus escritos. A resposta está na forma direta como o autor se direcionava para com os leitores, como se fosse numa entrega de uma visão de mundo a partir de sua interpretação dos fatos. Era sua visão de mundo que interessava. Ademais, é preciso ressaltar que muitos dos leitores mais devotos sequer conheciam a metade dos assuntos assinalados por Francis em suas colunas, chegando, por isso, às fileiras do jornalismo, talvez deslumbrados não só com um estilo de vida, mas com um desejo de ser tão culto, importante e, claro, provocador. Assim, mesmo com suas idiossincrasias, é correto afirmar que 10 anos depois, o afeto não se encerrou. E como vaticinou a revista Veja, naquela edição de fevereiro de 1997, o jornalista e escritor Paulo Francis faz muita falta.

Fabio Silvestre Cardoso

É jornalista e doutor em América Latina pela Universidade de S.Paulo. Autor de Capanema (Record, 2019)

Rascunho