Pau de selfie

Garramuño defende que, em certas obras contemporâneas brasileiras e latino- americanas, percebe-se uma certa indeterminação, uma dificuldade de definição dos limites entre as formas de expressão, suportes e discurso, por parte dos artistas.
Florencia Garramuño. Foto: Divulgação.
07/04/2015

A pesquisadora argentina Florencia Garramuño, professora da Universidade San Andres, em Buenos Aires, PhD pela Universidade de Princeton, Estados Unidos, e pós-doutora pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), escolheu obras artísticas do Brasil e da Argentina e transformou em livro: Frutos estranhos — quatro ensaios que abordam, segundo a autora, a arte inespecífica.

Um nome novo para algo existente, manjadíssimo para estudantes de Comunicação e Estética.

Do que se ocupa? Investiga a imbricação das variadas formas de expressão artística, atualmente também trata das possibilidades numa variedade de mídias que servem de suporte. Mas o que resulta dessa imbricação, dessa invasão do espaço alheio, que arte é essa?

Exemplo: Esquilos de Pavlov, livro de estreia da artista plástica e a partir de então escritora, Laura Erber. Nesse trabalho, a autora utiliza a fotografia para tornar visível a narrativa. Outra utilidade para essa combinação é permitir um número significativo de interpretações.

Outros, como Abel Meeropol, fizeram o caminho inverso, seu poema Strange fruit nasceu quando o poeta viu uma foto de linchamento de negros nos Estados Unidos. Não demorou para o poema, nascido de uma foto, virar música e tornar-se um clássico na voz de Billie Holiday. Ainda surgiria um romance com esse mesmo título. Logo, a cumplicidade não é novidade. Desde que executada por artistas competentes, o resultado geralmente é expressivo, embora não seja essa a regra.

Para enfatizar a ausência de novidade na obra de Garramuño, sugiro que o curioso leitor faça uma pesquisa sobre o termo Remediação, definido por Paul Levinson como um processo que faz uso de novas tecnologias para melhorar as tecnologias precedentes.

Entram em cena os paladinos das novas mídias: internet, realidade virtual e mais e mais, erguem barreiras que as separam das mídias anteriores. Elas, as novas, oferecem novos parâmetros estéticos. Isso se não é óbvio, é o quê? Até onde sei, o novo traz novidades. Ou não?

Jay David Bolter e Richard Grusin buscam um meio termo, acreditam que as novas mídias se justificam por atualizar as antigas mídias, a isso chamam de Remediação. Vá atrás, curioso leitor, da obra da dupla: RemediationUnderstanding new media. Para isso, existe Amazon.

Frutos estranhos faz parte da coleção Entrecríticas, e repete o título de uma instalação de Nuno Ramos, essa picaretagem identificadora do estágio patético das artes plásticas, cometida no MAM, Rio de Janeiro/2010.

Diz a professora que as obras citadas nos ensaios apresentam como ponto comum a “unidade do não pertencimento”, elas se identificariam a partir de uma não indentificação. Demais para um tosco aprendiz como este que ora digita essas tristes frases. Tristes porque se ocupam de um vale-tudo na terra de ninguém, tudo se justifica, tudo pode, desde que o autor saiba ostentar seus títulos e premiações. Aí, a horda ignara ajoelha e aplaude. Separar o joio do trigo é prática pra lá de obsoleta.

Mas façamos uma tentativa. O que seria esse tal “não pertencimento” ?

Dificuldades
Garramuño defende que, em certas obras contemporâneas brasileiras e latino- americanas, percebe-se uma certa indeterminação, uma dificuldade de definição dos limites entre as formas de expressão, suportes e discurso, por parte dos artistas. Essa dificuldade ou confusão, caso você prefira, assim como eu, implica o tal do não pertencimento. Resultado: o inespecífico. Profundo, não! Não, um vale-tudo. Isso mesmo, não há regras. E à literatura, a nossa principalmente, que não anda bem das pernas há muito tempo, restou o papel de coadjuvante.

E por falar em literatura, quem está no balaio?

Pois bem, encontramos por lá títulos de Luiz Ruffato, Ricardo Domeneck, Carlito Azevedo, Tamara Kamenszain, Sylvia Molloy. O que fizeram para merecer isso? Excetuando Luiz Ruffato, eles eram muito cavalos, única obra de grande relevância entre as arroladas pela autora, os demais primam pela combinação de gêneros e misturas de ficção e realidade embora sem alcançar a ambiguidade de Philippe Forest, Christine Angot e Jean-Louis Fournier. Fico com esses para não ocupar mais umas dez linhas. Pois bem, alinhemos os nossos autores com os artistas plásticos Helio Oiticica, Nuno Ramos… Isso mesmo, caro leitor, você precisa gostar, pois todo mundo gosta. Mesmo que para isso seja necessário não entender nada sobre pintura, escultura, ah, mas precisa entender de instalação!

Mas atenção, apressado leitor, existe um detalhe extremamente importante em Frutos estranhos, e ele reside no subtítulo: Sobre a inespecificidade na estética contemporânea, algo como uma auto defesa. A ocorrência e utilização das novas mídias, a propagação das redes sociais, o leitor, um novo leitor ou o velho leitor forçosamente adaptado?, o leitor como cúmplice criador. Resumo utilizando palavras adequadas: Os antigos suportes, uma tela antigamente servia à pintura, um mosaico era destinado a um revestimento, decoração; atualmente podem, respectivamente, receber uma projeção em vídeo e um poema. Logo, os suportes ganharam outras utilidades e até mesmo novos sentidos. A interatividade é quase uma exigência, a obra, seja ela literária, temos livros onde o leitor está encarregado de concluí-lo; seja uma instalação onde a presença, a movimentação do espectador, agora coadjuvante, passa a dar sentido. Isso mesmo, estupefato leitor, inespecificidade na estética contemporânea.

Também podemos interpretar essa inespecificidade como estágio de um aprendizado, como usar as novas tecnologias de modo a produzir arte relevante. Combinar ingredientes é arte para poucos, e não podemos deixar de reverenciarmos a arte que se mantém através de séculos. E sem a mudança de suportes. Diga, honroso leitor, o que torna Bach atual, Cervantes, o que torna Rabelais um moderno? Este aprendiz não sataniza as novas mídias, mas há que saber utilizá-las, do contrário não passa e não passará de uma expressão confusa, e por vezes bastante barulhenta, da falta de talento.

Deixo aqui uma sugestão de obra onde você encontrará um tanto dessa inespecificidade, da combinação de novas e não tão novas mídias, um trabalho primoroso, envolvendo literatura, artes gráficas, música, a intervenção do artista/criador, capaz de mudar o rumo da história. Para isso um detalhe que viaja através dos tempos sem envelhecer se faz notar: talento. Melhor, talentos. Vale a pena, está em www.managana.org/editor/?community=sarria, concepção, direção e textos do professor da UFSC, poeta, romancista, Alckmar Santos. Vídeos e músicas do também professor Wilton Azevedo, da Universidade Mackenzie.

Afinal de contas Frutos estranhos é um livro de crítica literária, de artes plásticas, de antropologia, é o quê? Não é nada, se pensarmos nisso ou naquilo, ao mesmo tempo representa uma diversidade imensa de possibilidades. Para isso basta dizermos o seguinte: é um livro de críticas sobre as novas formas de expressão artística. Mas voltemos um pouco no tempo. Alguém há de lembrar de Glauber com a câmera na mão registrando o velório de Di Cavalcanti. Era arte? É arte?

Deixo uma questão: quem escreverá um ensaio sobre o pau de selfie?

Mas pau de selfie é arte, produz arte? Jamais subestime nossa mediocridade, inocente leitor.

Frutos estranhos — Sobre a inespecificidade na estética contemporânea
Florencia Garramuño
Trad.: Carlos Nougué
Rocco
128 págs.
Florencia Garramuño
É PhD em Romance, Languages and Literatures pela Princeton University e pós-doutorada pela UERJ. Dirige o Programa em Cultura Brasileira da Universidad de San Andrés, na Argentina.
Luiz Horácio

É escritor. Autor de Pássaros grandes não cantam, entre outros.

Rascunho