Imagine uma tragédia em três atos, em que o protagonista é um homem cujas várias falhas trágicas são castigadas, uma a uma, até que só reste a ele o amor que dedica à filha. Agora observe que os títulos dos atos (O aluguel, O sacrifício e O deserto) já indicam não um arco, mas uma queda contínua. E finalmente saiba que esse homem é seu vizinho, por quem você sempre nutriu certo desprezo, mas secretamente admirava. Ele se chama Jörgen Hofmeester, e sua filha, Tirza, personagem que dá nome ao romance de Arnon Grunberg, publicado na Holanda em 2006 (editado no Brasil pela Rádio Londres em 2015), considerado, em uma pesquisa entre críticos, acadêmicos e escritores europeus o romance mais importante do século 21, acima de As benevolentes, de Jonathan Littell, e de Sábado, de Ia1n McEwan, ambos vencedores dos mais prestigiosos prêmios literários no mundo.
Grunberg nasceu em Amsterdã em 1971, e passou a viver em New York nos anos 90. Apesar do seu sucesso entre os americanos, mantém fortes laços com a vida literária na Europa. Esse cosmopolitismo é uma das influências — ou será uma opção? — em seus romances e ensaios. Seu espaço é o urbano, seus personagens não têm tiques regionais, utilizam tecnologia em seu dia a dia, percorrem grandes distâncias, de carro, avião, ou trem, com frequência. Grunberg escreve o que conhece bem, a partir de sua experiência pessoal e do homem do seu tempo. Começou precocemente sua carreira literária: aos 17 anos, pouco antes da formatura, foi expulso do colegial; um ano mais tarde abriu sua própria editora e foi muito bem-sucedido.
O menino-prodígio logo chamou a atenção. Aos 23 anos publicou Blauwe maandagen (aqui traduzido como Amsterdã blues, Globo, 2003), premiado com o Anton Wachterprijs como autor estreante, e logo, sob um pseudônimo, recebeu o prêmio novamente, pelo romance De geschiedenis van mijn kaalheid (A história da minha calvície, ainda sem tradução). Sempre em um ritmo acelerado publicou treze romances, três livros de contos e quatro de ensaios, além de um roteiro de cinema e três peças teatrais, artigos em jornais e em blogs. Seu reconhecimento, a julgar pelos prêmios e resenhas, cresceu na mesma velocidade.
Tirza, premiado também em sua versão cinematográfica, é o nome de uma adolescente que começa a desabrochar, e que, para a frustração do pai, planeja, logo após sua formatura do colegial, fazer uma longa viagem à África com seu namorado marroquino. O relato, narrado bem próximo ao ponto de vista do pai, inicia-se no dia da festa de formatura. Os preparativos, da escolha e compra do peixe para o sushi até a decoração do jardim com tochas, foram meticulosmente planejados e executados por Hofmeester sozinho, já que sua esposa acaba de ressurgir inesperadamente após ter abandonado a família sem uma palavra, três anos antes.
A (ex-?)esposa, capaz de uma crueldade diabólica, disputa com suas filhas a atenção dos convidados. Julga-se irresistivelmente sensual, mas está mais para vulgar e grotesca. Deixa bem claro que a maternidade é um fardo que ela transferiu, sem remorsos, para o esposo. Como seria de se esperar, as filhas não a veem como mãe, não a respeitam e nem sentem sua falta. Tudo nessa família é descalibrado. As relações entre os quatro são de ódio ou indiferença, exceto pelo amor obsessivo que Hofmeester nutre por Tirza — nome hebraico oriundo do Velho Testamento, com o significado “ela é meu deleite”. Nela vê beleza e inteligência excepcionais, e a circunda com sua compulsão por controlar. Não consegue fazer o mesmo com a outra filha e a esposa, e ainda é por elas provocado e humilhado.
Sua humilhação não termina aí. Em um investimento mal feito, perdeu todas as suas economias. Devido à sua incompetência como editor, foi afastado do emprego, mas por questões trabalhistas o salário não é cortado. Incapaz de revelar a verdade à família, Hofmeester mantém as aparências: vai diariamente ao aeroporto, onde passa o dia a acenar para desconhecidos que embarcam. Nem na festa que planejou para a filha com tanto esmero consegue sucesso. Todas as suas conversas são desastrosas. Pouco a pouco, enterra-se na areia movediça que é o esforço para ser amável. A esposa, bebendo muito e seminua, parece enturmar-se melhor do que ele. Nas quase 300 páginas que Grunberg investe na festa e sua montagem, distribui sinais de que o campo é minado. Não há frase sem ação, todo diálogo é de alta voltagem — é um alívio quando a festa termina e o último convidado se retira.
Mais de uma década atrás, de maneira quase profética, Tirza evidenciou a fragilidade dos ideais humanitários de um europeu culto e moderno, mediante um delírio ativado por um fato real, hediondo.
Artimanha
Mas o alívio é artimanha para que o leitor baixe a guarda. O campo minado é mais extenso do que a casa de Hofmeester. Como de costume nos personagens de Grunberg, nesse romance eles não ficam limitados às fronteiras geográficas. Tirza vai viajar — com o namorado, para longe e por muito tempo. Hofmeester odeia o namorado da filha, que não consegue dissociar de Mohammed Atta, um dos pilotos que atacaram as torres do World Trade Center. Grunberg é antenado em seu tempo: a história passa-se em 2005, quando o 11 de Setembro ainda era muito presente no imaginário mundial. Mas isso não torna o livro datado, muito pelo contrário, considerando o que temos visto desde então. Não nos é dado esquecer.
Além da paranoia com o namorado, o pai não consegue enfrentar a despedida da filha, então encontra uma forma de estar com ela — e infelizmente para ele, com o namorado também — por mais alguns dias. Quando finalmente eles se vão, passam-se semanas sem notícias. Hofmeester resolve ir à Namíbia procurá-los. É especialmente relevante a escolha geográfica feita pelo autor. Em primeiro lugar, por ser de fato destino de milhares de jovens europeus sob os mais diversos pretextos, alguns genuínos. E também por representar um perigo difuso de guerras, estupros em massa, fronteiras móveis, o cenário perfeito para uma jovem holandesa desaparecer. O pai irá enfrentar isso tudo por sua filha, e defrontar-se consigo mesmo antes de retornar.
A perspectiva internacional do autor lhe confere a percepção de que as identidades nacionais ou étnicas precisam negociar com a expansão do território global para não desaparecerem. “Sou, afinal, um autor em tradução. Moro nos Estados Unidos, mas escrevo em holandês”, afirmou Grunberg em entrevista acadêmica. Mais de uma década atrás, de maneira quase profética, Tirza evidenciou a fragilidade dos ideais humanitários de um europeu culto e moderno, mediante um delírio ativado por um fato real, hediondo. O protagonista, que vê no marroquino uma grave ameaça à sua segurança, guarda na memória, para piorar, um episódio em que seu pai, holandês com evidente simpatia pelo nazismo, espancou em público um judeu até a morte. Através de uma rápida ironia, Tirza demonstra que a associação entre racismo e a cultura germânica lhe foram inculcados in natura: quando Hofmeester avisa Tirza que partirão em quinze minutos, referindo-se ao namorado, diz: “Espero que ele seja pontual, esse…” […]“Sim, papai, muito pünktlich, para um marroquino extremamente pünktlich”. Racismo e ressentimento, o caldo perfeito para uma tragédia. O leitor sabe disso, mas ainda torce por Hofmeester.
O personagem é complexo. Percebe-se a violência latente (às vezes nem tanto), a necessidade de controlar o incontrolável, a intolerância pelo outro, mas também enxerga-se a compaixão de que ele é capaz, ao chegar à Namíbia, perante uma criança que lhe oferece sexo. Nos dias em que ali fica à procura da filha, Hofmeester praticamente adota a criança, trata-a com delicadeza, com profundo respeito por seu sofrimento. Personagem de grande originalidade, Kaisa tem tamanho e voz de criança, mas a sabedoria para escutar de um ancião. Em seu silêncio e fome, faz aflorar o que resta de humano neste homem. Pouco a pouco, o leitor intui que esse Hofmeester não representa perigo, que seu lado violento já não vive. Só que não sabe onde e como foi a batalha desse homem consigo mesmo. A procura por esse momento obriga-nos a virar as páginas freneticamente, e ao mesmo tempo a desejar que o suspense não acabe.
Subjacente a esse drama de uma família holandesa em frangalhos está um outro, universal: a busca da identidade. Hofmeester não se sente em casa onde quer que esteja: nem em sua família, muito menos em seu trabalho, nem no aeroporto, onde cultiva a ilusão, e quando vai à África, leva seu desconforto consigo. A esposa que o deixou e agora voltou, tampouco encontrou essa paz, assim como Ibi, a filha mais rebelde, que precisou sair de sua casa e de seu país para isso. Tirza se dá conta que enquanto estiver ao lado do pai, não terá identidade própria. Sua rota de fuga passa por um namorado de formação cultural muito diferente da sua, e a transporta à distância de um continente.
O tema da identidade na narrativa reflete o drama atual de milhares de imigrantes que fogem da miséria ou opressão. Mas no caso de Arnon Grunberg, filho de pais judeus alemães radicados na Holanda após sobreviver o Holocausto, a dolorosa proximidade ao tema pode ter tido peso ainda maior. Ao definir Hofmeester como o ponto-de-vista do narrador, justamente o personagem mais obtuso, ressentido e desajustado mediante as mudanças em todos os níveis de sua vida, opressor e oprimido de quem todos querem fugir, o autor iluminou as noites da História tantas vezes repetida no Velho Continente.
A linguagem dá sutil, mas indispensável suporte ao ritmo acelerado do romance. Entre Hofmeester e a esposa os diálogos são de um cansaço profundo, de quem há muito viu o pior do outro. Em uma das trocas de amabilidades, ela diz:
Você é simplesmente velho, já é há tempos. Você deixou de ser excitante. Mesmo até o ponto em que você era. Excitante, essa palavra significa alguma coisa pra você?
Perturbado
Já quando ele se dirige a Tirza o tom é de carinho, mas o medo — de perdê-la? — é claramente audível. Aos quinze anos a menina entra em anorexia nervosa, e todos dizem ao pai que ele precisa confrontá-la, mas ele não consegue. “Hofmeester esperou, esperou por si próprio, esperou até que soubesse o que tinha de dizer, mas não saía.” Nos silêncios, na linguagem dos seus pensamentos, revela até que ponto é perturbado. Após uma discussão com o professor de economia sobre os fundos de investimentos que levaram todas as suas reservas, Hofmeester o segura pela lapela do casaco, em um gesto breve mas de alta tensão, enquanto pensa sobre si mesmo: “Essa noite é diferente. Essa noite tudo foi esquecido. […] Essa noite ele é uma versão melhorada dele próprio”. A repetição dá o tom de discurso, mas ele fala consigo mesmo — na verdade, vê a si como orador e plateia. E ao professor, diz, ostensivamente referindo-se aos investimentos, mas delatando sua pulsão: “Você precisa ter cuidado com eles, de fato, […] como com uma arma carregada”.
É também com detalhes sutis que o narrador dá a dimensão das provocações que levam Hofmeester a acessos violentos — quem poderia condenar um pai por perder o controle ao deparar-se com sua filha adolescente em meio ao ato sexual — anal, ainda por cima! — com um homem maduro? O detalhe é cruel, mas eficiente. Os limites do amor paterno são questionados pelo próprio personagem, e claro, pelo leitor.
Ele não tinha sido um pai para sua caçula, era o que a esposa havia dito. Um amigo, um colega, um amante, um amante platônico, com certeza, mas mesmo assim, um amante, só não um pai. Agora ele tinha de tornar-se um pai. No mundo dos pais ele era um convertido, e como todo o convertido: um fanático.
De início, parece um pai como qualquer outro, melhor, até, mas em algum momento as conversas entre pai e filha ficam dissonantes, notas de alarme surgem aqui e ali. Onde é que eu errei, pergunta-se o leitor, que não percebi isso? Mas não é o leitor que errou e sim o autor que acertou.
O humor também faz parte da tragédia clássica. Aqui, aparece sempre associado ao protagonista, à sua incapacidade de perceber como é visto pelos outros. Em reconhecimento por 20 anos de serviço, Hofmeester recebe um par de meias. Reage de forma anódina, à la Akakievich. Apesar de todos os personagens, inclusive ele mesmo demonstrarem crueldade, Hofmeester é o único que inspira pena, através dos toques de humor. Como um adolescente, secretamente refere-se ao homem violento que reconhece dentro de si mesmo como “a besta”. Checa todos os preparativos da festa para que, quando os convidados “conhecerem o pai de Tirza, vão para casa pensando que pai legal a Tirza tem”. Além de breves — e necessários — respiros na tensão do romance, a linguagem do humor está a serviço da construção do personagem patético à beira da fratura.
A química da desumanidade permanece camuflada até que a crueldade e a psicose revelem os subterfúgios. Os personagens de Arnon Grunberg estão aí para que não nos esqueçamos disso. Deslizam com facilidade, de uma vida corriqueira à obsessão e violência. A sensação, no dia a dia, de que há por perto alguém assim, causa incômodo — obriga-nos a olhar no espelho. É esse incômodo que se busca na boa literatura.
Para distanciar-se de si, não basta ir à Àfrica, é no deserto que o homem se purifica. Hofmeester prepara sua saída ao deserto com a costumeira frieza. A metáfora da morte aqui tem uma intensidade coetzeeana. A cidade é ameaçadora. Os animais, as ruas, as pessoas, tudo é esquálido, temerário, indecifrável. Hofmeester percebe-se presa fácil sob olhares de mil predadores. No deserto há o isolamento, lá ele está longe do convívio com os vivos. Para o europeu cosmopolita, o deserto da Namíbia fica além da última fronteira, é onde se está exposto por inteiro. Mais frágil do que Hofmeester é a criança Kaisa, que parece flutuar feito miragem, uma vida quase vapor. Personagem de grande originalidade, essa criança vendida pela família, pelo país, pelo mundo, é justamente o anjo que segura a mão do adulto que guerreia com si próprio. Para ele, pode ser tarde demais; para o leitor, talvez não.