Passeio sem fim

Mais do que uma história, "Cidade aberta" apresenta um narrador flâneur a refletir sobre os tempos atuais
Teju Cole, autor de “Cidade aberta”
01/12/2012

“Sou conferência ou romance? Thomas Mann ou Hemingway?”, pergunta o narrador de Paris não tem fim, de Enrique Vila-Matas, personificando o próprio livro. Já há algum tempo, muitos leitores se acostumaram a apenas considerarem tais questionamentos como meramente retóricos e prosseguirem na leitura. Afinal, definir o gênero de uma narrativa, determinar onde esta se posiciona em relação às fronteiras que separam as categorias literárias — fronteiras cada vez mais nebulosas — não costuma ser o cerne da fruição de um livro. Pouco importa se Paris não tem fim é um romance, uma conferência ou uma autobiografia, se A visita cruel do tempo é um romance ou uma coletânea de contos, se Chove sobre minha infância é um romance (como indica a capa) ou uma reunião de memórias: se o leitor achar que uma leitura foi especialmente satisfatória, ele não terá medo de indicar o título para os outros só porque não sabe definir o gênero em que este se enquadra.

Talvez seja uma questão de instinto. Contudo, assim como a fruição rege o instinto de que o livro deve continuar ou não a ser lido, o ritmo de leitura também é afetado pelo que o leitor sente que o livro é. Um livro de não-ficção, por exemplo, pode ser lido mais rapidamente devido à falta de necessidade de um uso mais intenso da imaginação; ou pode ser analisado mais detidamente por quem almeja memorizar alguns dos seus dados para melhorar sua capacidade de argumentação em certos debates. Um livro de contos pode ser lido na seqüência escolhida pelo autor e seus editores ou na ordem que bem aprouver ao leitor — assim como pode ser lido na íntegra, de uma só vez, ou ser alvo de uma degustação literária, que muitas vezes não permite a finalização da leitura: um conto é lido hoje; outro, daqui a uma semana; e assim por diante (até que três deles sejam esquecidos quando o volume é devolvido de forma definitiva à estante).

A possibilidade da degustação literária é uma constante na vida de certos livros: eles já saem da gráfica conscientes disso. Coletâneas de poemas, contos, entrevistas, crônicas, ensaios e novelas, a não ser quando ansiadas há muito (não conheço, por exemplo, ninguém que tenha adquirido o recém-lançado Ficando longe do fato de já estar meio que longe de tudo, de David Foster Wallace, e tenha lido apenas um pedacinho), são os exemplos mais claros de livros facilmente atingidos por essa atividade. A degustação literária, aliás, combina em seu conceito dois dos direitos inalienáveis do leitor prescritos por Daniel Pennac, em Como um romance: o “direito de saltar páginas” e o “direito de não acabar um livro”.

A divagação não é sem motivo. Cidade aberta, de Teju Cole, é um romance. É esta a palavra que há embaixo do título na página três, é por meio dela que o livro foi elogiado por James Wood na The New Yorker — “Um romance lindo, delicado e, por fim, original”, diz a citação na capa — e é exatamente isso o que ele é. O que não significa que seja exatamente assim que ele deva ser lido. No decorrer de minha leitura, percebi que estava lendo Cidade aberta como um livro de ensaios. E, por mais que o livro fosse bom, por vezes excelente, a leitura durou cerca de cinco meses — tal como costuma acontecer aos livros de ensaios.

Confundir narrador e escritor, tal como em críticas literárias que se inspiram eminentemente em dados biográficos dos autores para tecerem conclusões a respeito de suas respectivas obras, não é o meu intento. Não é porque Julius, o protagonista, tem ascendência nigeriana, foi criado na Nigéria, é negro — é interessante observar o quanto a narrativa demora para nos dar essa informação — e mora em Nova York, assim como Teju Cole, que o romance permite (ou peça para) ser interpretado de forma autobiográfica. Aliás, tal visão parece simplória demais para a proposta do livro. Ao comparar o romance a um livro de ensaios, quero apenas ressaltar que o narrador parece menos interessado em desenvolver um enredo, uma história que intrigue o leitor e o deixe curioso a respeito de onde aquilo vai dar, do que em narrar seus passeios e refletir a respeito do mundo que o cerca. Como se ele, Julius, estivesse escrevendo seus pensamentos e lembranças e, nesse sentido, produzindo um livro de ensaios.

Há uma gradação entre as camadas da narrativa. Elas não se dividem de forma grosseira: mesmo quando uma delas parece imprevista, o contexto ajuda na questão da transição, ou a separação entre as seções produz efeito semelhante ao fade típico do cinema. Contei quatro dessas camadas. No livro, há: 1) momentos em que sabemos mais sobre o protagonista — seu passado, seu presente, seus pensamentos; 2) conversas em que descobrimos outros personagens — muitos deles desconhecidos que resolveram contar parte da história de suas vidas para Julius, por verem nele a possibilidade de diálogo; 3) observações dele a respeito de pessoas que vê — na rua, por exemplo —, aliadas a inferências sobre como serão suas vidas; 4) descrições das paisagens vistas em seus passeios, com destaque para a vegetação e os pássaros — estes, um tema recorrente.

Não são muitos os personagens que aparecem mais de uma vez no livro, contando suas histórias. Nem mesmo a história de Julius parece querer levar o leitor a algum lugar — pelo menos, não a um destino certo ou algo fechado. Julius é um flâneur e isso ecoa na narrativa.

Encontros
David Foster Wallace, em um dos ensaios do livro citado anteriormente, revela sua opinião sobre o que é ser um turista massificado: “é se tornar um puro americano contemporâneo: alheio, ignorante, ávido por algo que nunca poderá ter, frustrado de um modo que nunca poderá admitir. É macular, através de pura ontologia, a própria imaculabilidade que se foi experimentar. É se impor sobre lugares que, em todas as formas não econômicas, seriam melhores e mais verdadeiros sem a sua presença”. Creio que a postura do flâneur se diferencia em muitos aspectos da figura do turista massificado: um quer caminhar e se perder um pouco, o outro quer chegar rápido aos pontos demarcados em um mapa, cada um num horário certo; um quer ter experiências pessoais e refletir sobre elas, o outro quer tirar as fotografias que provam que ele esteve realmente em determinado local; um quer, se possível, ter alguma espécie de comunhão inesperada com as outras pessoas, o outro quer que seus preconceitos sejam atendidos — e assim os parisienses serão sempre arrogantes e antipáticos, e os guardas da rainha não rirão seja qual for a palhaçada feita.

Há algo de muito interessante em acompanhar os passos de flâneur de Julius. Seus encontros — principalmente os que se dão com pessoas desconhecidas que, subitamente, começam a revelar algo precioso de suas vidas — nos levam a pensar em quanta coisa anda escondida por aí, imperceptível porque simplesmente não prestamos atenção. Os temas abordados nessas conversas não podiam ser mais variados: amenidades, o preconceito, o perdão, o futuro do meio ambiente, o terrorismo, a poesia, a memória, o multiculturalismo, o envelhecer, os relacionamentos, a religião, a morte, a vida em família, as mudanças. Não poucas vezes vai contra as idéias pré-concebidas do protagonista a respeito de seus interlocutores — justo ele que parece se orgulhar por perceber com muita clareza o quanto é estranho considerar algumas ações como naturais. No meio de um concerto há muito aguardado, ele discorre:

Quase todos eram brancos, como quase sempre acontece em tais concertos. É uma coisa que não posso deixar de notar; reparo toda vez e tento não ver. Parte do processo é uma complexa e rápida série de adaptações: repreender a mim mesmo por até mesmo ter percebido isso, deplorar os sinais de como nossa vida continua dividida, irritar-me por saber que tais pensamentos podem muito bem voltar a passar pela minha cabeça mais tarde, na mesma noite. A maioria das pessoas à minha volta ontem era velha ou de meia-idade. Estou acostumado, mas nunca deixa de me surpreender a maneira como é fácil sair da hibridez da cidade e entrar em espaços só de brancos, cuja homogeneidade, até onde posso ver, não causa nenhum desconforto aos brancos ali presentes.

Em certa medida, as duas primeiras camadas referidas são as mais interessantes: conhecer melhor o narrador e ter acesso a vozes tão díspares são ações bastante proveitosas. Há algo de enganador na terceira camada — principalmente quando nos damos conta das brechas na visão de Julius. A quarta, no entanto, divide opiniões: tais descrições tanto poderiam ser um reflexo da primeira camada — reagindo aos pensamentos e ações do protagonista, o que denotaria certo egocentrismo destoante — quanto poderiam ser vistas como os momentos em que nós, leitores, entramos mesmo na narrativa, em que vemos as mesmas paisagens de Julius, ao seu lado. E, se ele estiver disposto a ouvir, compartilhamos com ele nossas histórias e pensamentos.

Histórias
Durante a última FLIP, a minha primeira, descobri que, entre as mesas de autógrafos e as filas para a entrada nas tendas onde se dão as conversas com os autores, muitas vezes há pouquíssimo tempo para trivialidades tais como almoçar. Queria ter visto a conversa com Teju Cole, mas estava alimentando corpo e alma com uma seqüência de momentos únicos que não trocaria por nada. Enquanto ele falava de multiculturalismo na tenda, eu o vivenciava naquela mesa de almoço — ainda tenho as provas guardadas em meu moleskine, escritas em russo, grego e árabe.

No final, foi bom apenas ter lido o romance dele e acompanhado Julius em algumas de suas andanças. Assim, quando ele se voltava para uma árvore do paraíso ou para uma revoada de cambaxirras, eu tinha uma boa história para lhe contar.

Cidade aberta
Teju Cole
Trad.: Rubens Figueiredo
Companhia das Letras
320 págs.
Teju Cole
Nasceu em 1975. Foi criado na Nigéria e se mudou para os Estados Unidos para cursar história da arte na Universidade de Columbia. É escritor, fotógrafo e especialista em arte holandesa. Cidade aberta é seu primeiro romance.
Arthur Tertuliano

É escritor e mestrando em estudos literários pela UFPR. Escreve no blog O Leitor Comum.

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