Na literatura brasileira contemporânea, o romance policial é quase uma impossibilidade. Seja qual for o gênero, cerebral ou o romance noir, a realidade é tão pesada que seus heróis não sobreviveriam à trama de corrupção e malícia que permeiam todos os setores da sociedade.
Um dos preceitos para se escrever literatura policial, constante nos escritos de Todorov sobre o gênero, é que o investigador não deve ser o autor do crime. Tratando-se da nossa realidade, o investigador do romance noir seria o mais apropriado. Mas a corrupção lhe seria tentadora. Ou, se não ela, ordens superiores precisariam ser obedecidas. O delegado não autorizou a operação, não quer problemas com gente importante da cidade ou da capital do país. E o tal herói seria cúmplice dos criminosos. Já o investigador cerebral, mesmo com acesso aos dados do crime e a testemunhas-chaves, seria logo descoberto pelos bandidos, sobretudo num tempo em que reina muita facilidade às informações.
Além desta extrema violência inibidora, pergunto se adiantaria o raciocínio lógico de um detetive cerebral no caso de um criminoso a quem é sempre permitido esconder-se nos meandros labirínticos da lei. No Brasil, há a ideologia de que não existem culpados, todos os criminosos se dizem inocentes. Mesmo diante das mais claras evidências, ele jamais confessa o crime. Além disso, a lei é tortuosa, permitindo as mais diversas interpretações (qualquer semelhança com a literatura é mera coincidência). Quem tem dinheiro pode ter bons advogados, talvez amigos do juiz, hábeis no emaranhado dos códigos, capazes de manejá-los ao bel-prazer. Por fim, a própria justiça, com suas múltiplas instâncias e inúmeras possibilidades de recursos, apresenta-se aberta a marchas e contramarchas. Nosso herói, exímio detetive, certamente não sobreviveria, na menor das hipóteses teria de se exilar em paragens plausíveis a Sherlock Holmes ou a Agatha Christie. Ao contrário, seria engolido num processo kafkiano.
Quanto ao detetive do romance negro, o indivíduo que usa métodos infringentes (usemos um vocábulo do universo jurídico) também não teria lugar. O problema não seria ultrapassar os limites da lei, mas resistir aos oferecimentos prestimosos que somariam a milhões em moeda corrente. Bastar-lhe-iam o salário de policial e a solução de casos intrincados para se sentir realizado, ou se encantaria com as benesses do dinheiro advindas de nomeações a cargos elevados, como só a capital federal pode oferecer?
Como são quase impossíveis heróis no nosso romance policial, caso encontremos um (uma exceção às vezes é permitida), quem seria ele? Afinal, é preciso que o gênero resista, não se pode ficar para trás. Se em todo o mundo há a tal literatura, como não existir em nossas sofridas bandas? Entra em cena, então, o verdadeiro detetive, o herói que não deixará de correr riscos, que estará na parada para o que der e vier: o escritor. Isso mesmo, em BelHell, de Edyr Augusto, o verdadeiro investigador, aquele que vai trazer a limpo a podridão existente por todos os lados, é o autor do livro. O romance, portanto, tem como narrador-organizador o próprio escritor. Lógico que, como sempre acontece na literatura, este é mais um artifício. Mas funciona, cai tão bem como o vestido macio e reluzente no corpo da personagem fatal do romance.
BelHell é fruto de um jogo de palavras. Por um lado, parte do nome da cidade de Belém do Pará, por outro, Hell, inferno em inglês, e com inicial maiúscula. O inferno poderia ser qualquer outra capital brasileira, onde as transações seguem a mesma lógica do dinheiro (muito dinheiro mesmo), da corrupção e do crime.
Chefão
O romance começa com o narrador-escritor sendo sequestrado por tipos estranhos: “Alguém me tocou o braço. Mano, o chefe quer falar contigo. Um carro ao meu lado. Vidros escuros. Abriu a porta. Me empurraram antes que eu pudesse esboçar defesa. Desculpa aí, cara, é só uma conversa”. O personagem é levado ao chefe do crime local, alguém que dirige seus negócios de um escritório clandestino, no centro da cidade. Quer saber o que este personagem anda investigando. Quer escrever a história sobre os últimos acontecimentos, crimes que envolveram gente de todas as classes sociais da cidade, desde os mais humildes habitantes, passando por um delegado, por um médico dono de vários hospitais e clínicas, por ricaços locais e das adjacências, por políticos, mulheres viciadas, até chegar ao governador do estado. Vício, jogo, corrupção, grandes assaltos, assassinatos em série dão o clima.
Bronco, o chefão, não apenas acredita nas boas intenções do escritor-personagem, mas aceita contar a própria história, desde que leia o livro antes de ser publicado, precisa verificar, não quer se ver envolvido. Marcam encontros de tempos em tempos para que a narrativa avance. Não iria botar nada que comprometesse, revela o escritor. “Olha só, esse teu livro pode dar em merda pra mim. Porra, tu vais escarafunchar umas coisas que ficaram para trás. Eu tenho uma porrada de gente que está torcendo por um tropeço, pra me pegar. Puta que pariu, eu sei que vou me foder.” Mas a verdade é que a atração pela literatura é mais forte, a vaidade de querer ver em livro a história da própria ascensão.
É digno de nota o trecho em que o dr. Clayton (o proprietário da rede de hospitais) está na mesa de pôquer do seu cassino clandestino, local frequentado pela alta sociedade local incluindo altos empresários, ricaços e políticos. De repente, escuta-se o ruído de uma sirene. Assustado, ele telefona imediatamente ao governador, são três horas da madrugada. Pergunta o que é aquela sirene perto do seu cassino. No final, diz que o governador está lhe devendo, porque o ruído fez que ele se distraísse na mesa de jogo e perdesse muito dinheiro. Resta ao governador apenas lhe pedir desculpas e dizer que a sirene era de uma ambulância.
Nada ingênuo
Edyr Augusto não escreve um livro para amadores. Além de seus personagens não serem inocentes, a história lança lama para todos os lados. Para completar, o romance tem uma estrutura narrativa que burla a ordem cronológica. Um dado a mais: os diálogos vão dentro dos parágrafos, no mesmo patamar de voz do narrador. Cabe ressaltar que tais estratégias, ao contrário de causar estragos, fortalecem a trama, mostrando que não existe ingenuidade em lugar algum, seja no mundo político, seja nas mentes dos empresários bem-sucedidos, seja na mente do homem comum, sempre disposto a seguir exemplos daqueles que habitam o andar de cima.
Um romance policial para a realidade brasileira, tão explosiva e avassaladora, também não pode ser ingênuo, ao contrário, precisa ser bastante transgressor. Assim, estará lá a tradicional verossimilhança, tão exigida pela comunidade de leitores do gênero. Isso, o livro cumpre com perfeição.