Pássaro preso imitado pelo fim: a gaiola

A literatura de Altair Martins trata do encarceiramento mais amplo no qual a vida parece ter se transformado
Altair Martins
01/02/2005

As narrativas de Altair são sempre mitológicas. Tratam dos dilemas do mundo atual atacando-os pelas costas, elas desnudam nossos movimentos mais hipócritas sem nomear diretamente os objetos.

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Há cerca de três anos apareceram na imprensa comentários sobre uma nova categoria dentro da prosa de ficção brasileira: a chamada literatura carcerária. Entre os seus expoentes estão Hosmany Ramos, Jocenir, André du Rap e Luiz Alberto Mendes. Quem são eles? São presidiários e ex-presidiários que, dispostos a mostrar para a sociedade letrada a ferida aberta do nosso sistema carcerário, passaram para o papel os aspectos mais traumáticos da sua vivência nas casas de detenção. A prosa desses autores é propositadamente desafinada, fraturada, deselegante. Na maioria dos casos as suas narrativas, fortemente conduzidas pelo furor confessional, são relatos carregados de rancor e revolta, mas sem a carga literária capaz de torná-las alta literatura. Nenhum dos livros publicados até hoje, dentro do recém-nascido ramo da literatura carcerária, tem a força de, por exemplo, Recordações da casa dos mortos, de Dostoievski, Na colônia penal, de Kafka, ou Memórias do cárcere, de Graciliano. sE cHOVEREM pÁSSAROS, — conto de título singular (feito de três palavras grafadas com maiúsculas, cujas iniciais permanecem com letra minúscula, e concluído com uma vírgula), que integra a coletânea homônima deste gaúcho não menos singular, Altair Martins, pertence ao ramo da literatura carcerária.

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A ignorância, situação caracterizada pela escassez, pela falta de determinada informação, de determinado conhecimento, neste conto de Altair Martins é excesso, superabundância. Aqui ela transborda, vaza do livro, a ponto de molhar os pés até do leitor. Vários prisioneiros estão recolhidos numa espécie de campo de concentração sobre o qual poucos detalhes são fornecidos. Também não ficamos sabendo nada a respeito do crime cometido por esses homens que, subjugados pelas regras internas da narrativa, não têm nome nem passado. Que teriam feito de tão grave para merecer a pena que receberam? E o que é pior, certo dia um pequeno grupo desses enjaulados é separado dos demais e conduzido de suas celas para um pavilhão próximo, mas até então praticamente desconhecido. Ninguém sabe bem por quê, esse grupo terá uma pena extra: “para quem já era preso, parecia sem sentido ouvir que, a partir de então, seríamos aprisionados”. Ignorar os fatos mais cruciais da própria vida está tão entranhado no narrador e nas personagens que, em conseqüência disso, até o leitor vai se dando conta de que não sabe muito sobre si mesmo.

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O elemento bizarro, o reflexo grotesco e a máscara ensandecida fazem dessa narrativa a atualização contemporânea de certos mitos do passado longínquo. Aliás, todas as narrativas de Altair são sempre mitológicas. Elas tratam dos dilemas do mundo atual atacando-os pelas costas, elas desnudam nossos movimentos mais hipócritas sem nomear diretamente os objetos. Dois mitos são citados diretamente em sE cHOVEREM pÁSSAROS, um grego (Prometeu e a águia) e um judaico (Jonas e a baleia). Já o mito de Ícaro pode ser encontrado nas entrelinhas. Ou entre as asas artificiais dos pássaros que o grupo de prisioneiros fabrica. Porque o novo castigo imposto a esse grupo provoca o sofrimento fazendo uso principalmente dos garfos do mundo simbólico: a falta de liberdade dos prisioneiros torna-se duas vezes mais penosa no momento em que são obrigados a conviver com muitos pássaros engaiolados. E a duplicação do sofrimento não pára por aí. Cotidianamente retirados das celas e jogados no estômago da baleia (um velho pavilhão úmido e malcheiroso), esse grupo especial de prisioneiros passa oito horas por dia falsificando pássaros. Eles estão isolados num presídio, sim, mas também num mundo de aparências pautado por uma série de inversões: quem deveria voar está na terra, quem deveria estar livre está enjaulado, quem deveria ser mau é bom e vice-versa. Eles estão lá, forçados ao doloroso artesanato de construir pássaros de brinquedo, com isopor, arame, palito de dente, retalhos de papel e, é claro, penas, que devem ser coladas uma a uma.

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No meio do processo de confecção dos pássaros algo de estranho acontece: “Nessa fase em que eram só esqueleto de arame, as estruturas pareciam gaiolas tão justas que víamos pássaros engaiolados por si mesmos. Tornou-se fato que um pássaro preso começa a ser imitado pelo fim: a gaiola que o envolve”. O esqueleto do pássaro falsificado é a cópia fiel da estrutura que aprisiona os homens e as aves de carne e osso. Por homologia, a estrutura dessa narrativa carcerária também é feita das mesmas grades invisíveis e impalpáveis que na vida extraliterária nos isolam do resto do mundo.

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O conto de Altair não se limita a relatar fatos relativos à experiência carcerária. Ele vai mais longe. Ele mimetiza a própria experiência carcerária, procedimento que faz com que o leitor experimente na pele (como na narrativa de Kafka) parte do sofrimento dos prisioneiros. Esse é o ponto que distingue a alta literatura de todos os outros textos: na melhor ficção as experiências da vida não estão apenas no enredo, estão principalmente na forma. As vírgulas fora de lugar, os parênteses impertinentes, a quebra da rotina discursiva (o primeiro parágrafo foi parar lá na frente, entre o quinto e o sexto), a superabundância de imagens estranhas, a ignorância desse narrador nem um pouco onisciente, tudo isso se não chega a roubar completamente o chão do leitor pelo menos dá uma boa sacudida na terra. Aliás, essa sacudida de terra não está restrita apenas ao conto sE cHOVEREM pÁSSAROS,. Como o seu epicentro encontra-se noutro lugar — no centro nervoso que gerou esta e muitas outras narrativas —, toda a prosa desse autor acaba sofrendo e provocando no leitor o mesmo tipo de abalo. A bem da verdade toda a literatura de Altair Martins trata do encarceiramento mais amplo no qual a vida parece ter se transformado. Não importa se o enredo é sobre uma briga de casal, uma confusão no trânsito, a chegada de um cão ou as roupas penduradas num varal. A sensação de aprisionamento é a sempre mesma.

Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

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