A mitologia em torno da cidade luz sempre hierarquizou Paris como a personificação dos sonhos de consumo e moradia da maioria dos estrangeiros, sobretudo brasileiros que lá aportam fascinados em busca de nova vida. Centro cultural do mundo ocidental, terra de museus, bibliotecas, boulevards, cemitérios e cafés antológicos, a capital francesa é também capaz de despertar senões em muita gente, principalmente os que, para sobreviverem na engrenagem da metrópole e obter os benefícios da cidadania, são obrigados a um calvário, passar por um longo processo de assimilação de seus valores, costumes, tradições, leis e exigências sociais que definem o que seria na sua cultura uma espécie de “french way of life” (ou “un mode de vie français”).
A jornalista e escritora Marcia Camargos, mineira de Belo Horizonte que se radicou em São Paulo, autora de mais de uma dezena de obras, entre títulos de literatura, ensaio, crítica literária e de cinema, viagens e infantojuvenil, considerada uma das referências sobre a obra de Monteiro Lobato, mudou-se para Paris há 4 anos. Sua experiência com a cidade e o país motivaram-na a compartilhar um olhar diverso dos clichês a que estamos acostumados. Escreveu um livro que esmiúça o dia a dia dos parisienses, uma imersão profunda nos escaninhos da burocracia, da vida social, administrativa e comercial e nos relacionamentos de um modo geral, desnudando a funcionalidade de uma cidade e os entraves, muitas vezes desestimulantes, que se põem como obstáculos à paciência e também à permanência dos que lá vão em busca de nova vida.
Com o intrigante título É chique morar em Paris?/Est-ce chic de vivre à Paris?, em edição bilíngue, os nove capítulos intercalados por fotos, mapas e ilustrações, realizam uma minuciosa cartografia, abordando os diversos aspectos que conformam a vida não só da metrópole, mas da própria França. Fornecendo uma visão não edulcorada da capital, vários mitos vão sendo desconstruídos, penetrando as vísceras de um sistema cultural arraigado e tantas vezes hostil ao imigrante, sobretudo se ele tem origem em países ou economias periféricas, num esboço menos apoteótico de como ser estrangeiro em hostes gaulesas.
Pedras no caminho
Numa linguagem que transita entre a literatura, a pesquisa de campo, o acesso a fontes e setores governamentais, entrevistas e depoimentos, formatada por uma objetiva análise jornalística, a obra vem permeada de detalhes, conselhos e informações importantes. A autora abre uma picada na selva de uma realidade desconhecida por muitos, fruto do longo aprendizado de viver longe do seu país. Com sofisticação estilística e um viés de crítica e humor, Marcia Camargos dá pistas de como não sucumbir num quotidiano emaranhado e labiríntico, com suas idiossincrasias e diatribes.
Nesse périplo geográfico e narrativo deparara-se com um ambiente permeado de surpresas nem sempre agradáveis, como a barreira do idioma, que exige do estrangeiro uma disposição hercúlea para enfrentar os tantos revezes que tem pela frente na esperança de um visto de residência, o acesso a um emprego razoável, a uma matrícula escolar, à abertura de uma conta bancária e à contratação de um aluguel, como também os gargalos na construção de amizades e afetos e respingos de preconceito e xenofobia.
Esse relato remete-nos a uma visão menos apoteótica e não idílica da Paris dos nossos dias, que já foi dissecada literariamente por alguns escritores, entre os quais Hemingway (Paris é uma festa), Enrique Vila-Matas (Paris não tem fim) e Manuel Scorza (A dança imóvel), mas que hoje em dia, diante das dificuldades para adaptação e recepção aos que lá chegam, para muitos jamais será uma festa, sobretudo nesses tempos nebulosos e excludentes de Macron e de gilets jaunes [coletes amarelos]. Eis a mesma sensação de despertencimento vivida por Albert Camus (1913-1960), escritor argelino que se radicou na França, cuja epígrafe abre o livro, mas que em outro contexto sugerido em sua peça teatral O mal-entendido, também deduziu o desconforto de experimentar essa insularidade e deslocamento: “… não se pode ser feliz no exílio ou no esquecimento. Não é possível continuar a ser sempre um estrangeiro”.