O que amar quer dizer e Hervelino, do francês Mathieu Lindon, são duas narrativas sobre o afeto. O primeiro é dedicado à amizade de Lindon com Michel Foucault e o segundo é sobre a amizade do autor com Hervé Guibert, a quem carinhosamente chamava de Hervelino.
Foucault e Guibert são o foco dos relatos, de caráter memorialístico, mas não são as únicas figuras ilustres a povoar a narrativa de Lindon. O próprio Mathieu, filho do célebre editor da Les Éditions de Minuit, Jérôme Lindon, descreve o cotidiano de sua casa de infância como um lugar em que Samuel Beckett e Alain Robbe-Grillet apareciam para jantar. A Minuit se notabilizou por lançar escritores não só do calibre de Beckett e Robbe-Grillet, mas também nomes como Marguerite Duras, Bourdieu, Deleuze e o próprio Guibert, entre outros. A menção ao Lindon pai é importante pois, além de ser uma figura marcante em O que amar quer dizer, o caminho de Mathieu como escritor passa pela questão de ser filho de um famoso editor. Além da amizade com Foucault, a relação com o pai, caracterizado como um homem conservador apesar do olhar vanguardista para o literário, se destaca no primeiro livro.
Os relatos estão dentro da atmosfera intelectual e literária de uma elite francesa na qual um jovem escritor busca seu caminho enquanto se depara com encontros que marcarão sua vida e sua escrita. Há diversas referências literárias costurando e dando sentido à narrativa de Lindon, como na bela história do encontro entre a escritora norte-americana Willa Cather e a sobrinha de Flaubert (primeiro capítulo de O que amar quer dizer).
Os dois livros se enquadram na categoria do relato autobiográfico, mas há diferenças consideráveis entre ambos. Enquanto obra, O que amar quer dizer é um livro mais bem acabado que Hervelino e supera o próprio objetivo da homenagem a Foucault. Isso ocorre porque o autor consegue amarrar uma série de questões complexas que acabam por configurar sua própria identidade e seu modo de ser no mundo: assuntos afetivos, profissionais e familiares aliados à vivência da homossexualidade e da epidemia de aids nos anos 80 — doença que levou tanto Foucault como Guibert.
Hervelino está mais concentrado em fazer o registro de uma grande amizade. É um livro constrito ao período que Lindon e Guibert passaram em Roma, na Villa Médicis, por conta de uma residência artística. É também o momento em que Guibert sofre os efeitos da contaminação pelo vírus da aids, sempre amparado por Mathieu.
Foucault e seu apartamento
Consiste numa sala imensa, de mais de dez metros de comprimento, bordejada em toda a sua extensão por uma varanda envidraçada que lhe proporciona muita luminosidade, pois fica no oitavo andar, sem nada em frente. Na ponta desse enorme espaço está o recanto Mahler, com as poltronas onde, nos dias de ácido, nos enrolamos em cobertas para construir o que chamamos de nosso ninho, a tal ponto que o lugar lembra esse tipo de conforto familiar.
Pode parecer estranho citar a descrição de um imóvel para falar de uma amizade. No entanto, é impossível falar sobre O que amar quer dizer sem mencionar o apartamento de Foucault na Rua de Vaugirard, em Paris. O espaço está intimamente ligado a experiências definidoras na vida do narrador. É ali, por exemplo, que ele conhecerá Hervé Guibert pessoalmente e é a partir deste local que a relação com Foucault se consolida.
Lindon entra em contato com Foucault através de amigos comuns e passa a frequentar a casa deste como se fosse a sua própria. Mais que isso, a amizade que se constrói entre os dois leva o filósofo a deixar o apartamento sob a responsabilidade do escritor nos momentos em que viajava. O local se converte em um espaço para os mais diversos encontros, entre festas, jantares e muitas rodadas de LSD. Apesar da importância de Foucault como intelectual ser destacada, o prisma sob o qual ele aparece na obra não é esse. Foucault está no âmbito de sua intimidade. Está no papel do amigo, do conselheiro, do sujeito generoso, em uma relação de reciprocidade com Lindon. A diferença de quase trinta anos entre os dois pode sugerir a configuração de uma figura paterna em Foucault, já que no filósofo o narrador encontra a abertura, a empatia e a compreensão inexistentes na figura paterna real. É marcante o momento em que ele telefona ao pai para contar que o resultado de seu exame de HIV havia sido negativo e o pai simplesmente o ignora. O próprio Mathieu tece comparações entre Michel e seu pai em algumas passagens. Em certo trecho ele diz que Michel “o educou”:
Eu tinha vinte e três anos e ele me educou. […] Michel me ensinou com uma discrição tão absoluta que eu nem me dava conta daquilo que aprendia. A ser feliz, vivo. E me ensinou a gratidão.
Os seis anos de convivência e trocas entre os dois serão interrompidos bruscamente pela morte de Foucault em 1984. Para Mathieu, a ruptura marca o fim de sua própria juventude.
Na Villa Médicis
Alguns anos depois da morte de Michel, eu achava que chegaria o momento em que o tempo passado depois de sua perda seria superior àquele durante o qual havíamos convivido, e esse pensamento voltou muitas vezes. Quando Hervé morreu, esse dia já tinha chegado. E veio outro dia em que mesmo Hervé morreu há mais tempo do que o período em que fomos tão próximos. Com meu pai, evidentemente, isso está longe de acontecer (se um dia eu me tornar quase centenário). Os seis anos passados perto de Michel representam, em porcentagem, uma parte cada vez mais ínfima de minha existência, que mesmo assim aumenta sem parar no espaço mais sincero da minha imaginação.
O trecho citado é de O que amar quer dizer e reúne as três figuras marcantes sobre as quais os dois livros se debruçam. A reflexão sobre sobreviver aos dois amigos levados pela aids e a relação com o pai mobilizam grande parte dos relatos. Ao escrever sobre Michel e Hervé, Lindon também busca entender sua própria história, sua personalidade e seu lugar no mundo.
Em Hervelino, a amizade com Hervé Guibert é narrada a partir do período em que ele e Lindon moraram na Villa Médicis, em Roma, por conta de uma residência artística. Os anos finais na vida do amigo são o ponto de partida para que Mathieu narre a história da amizade. É o final dos anos 80 (Guibert morreria em 1991 aos 36 anos) e Hervé já começa a sofrer os efeitos da aids. O livro se concentra no cotidiano dos dois amigos na Itália, especificamente nas atividades da Villa Médicis. Aqui há uma série de menções aos livros de Guibert, cuja obra mais conhecida é Ao amigo que não me salvou a vida — relato que também aborda as consequências da doença. Para além da amizade pessoal, Mathieu e Hervé tinham o hábito de trocar manuscritos e comentar os livros um do outro, o que também denota uma parceria profissional. Hervelino apresenta, em sua parte final, uma série de dedicatórias de Hervé a Mathieu. Elas registram não apenas a intimidade e diversas situações vividas por eles, mas reforçam, para nós, o forte elo entre os dois.
O que amar quer dizer e Hervelino são dois livros que dialogam e se complementam, fazendo com que o leitor se sinta íntimo daquelas pessoas e lugares. Para o narrador, as obras compreendem o período de uma década definidora em sua vida, da qual ele pode ser considerado um sobrevivente e cujas figuras centrais sobrevivem através de sua escrita. São duas leituras muito comoventes.