A leitura conjunta de Uma vida em cartas e Como morrem os pobres e outros ensaios oferece uma série de preciosos detalhes a respeito da vida e da obra de George Orwell. No caso das cartas, é possível ter acesso a informações sobre o processo de adoção de seu filho Richard, sobre a atuação de Orwell na Guerra Civil na Espanha em 1936 e o tiro que levou na garganta, além de minúcias a respeito dos entraves editoriais que sofreu ao longo de sua carreira como escritor, seu processo criativo e seu ritmo de trabalho. No caso dos ensaios, o que chama a atenção de imediato é a variedade de tópicos e assuntos comentados por Orwell em seus textos, que apresentam análises longas e meticulosas sobre o sistema de classes inglês, o mercado editorial de revistas para meninos, o cotidiano de trabalhadores das colheitas de lúpulo e os matizes ideológicos que afastam e aproximam Hitler e Stálin.
Fica também mais claro em que medida o Orwell que entrou para a história como o autor de 1984 não é o mesmo Orwell dos anos anteriores, um autor muito distante da fama e da repercussão mundial. Seus dois romances de maior destaque, 1984 e A revolução dos bichos, foram escritos em seus últimos anos de vida, entre 1944 e 1949. Os dois livros que me ocupam neste comentário, Uma vida em cartas e Como morrem os pobres, mostram que os romances são resoluções possíveis de um percurso extremamente longo e complexo, um percurso que mescla em igual medida as reflexões políticas, as convicções ideológicas e as escolhas intelectuais de George Orwell.
Palavra e política
“Estou escrevendo uma pequena sátira que talvez o divirta quando sair, mas é algo tão pouco politicamente correto que não tenho certeza se alguém vá publicá-lo”, escreve Orwell em 17 de fevereiro de 1944, para Gleb Struve, fazendo referência ao que se tornaria A revolução dos bichos. Em 19 de março, o livro já estava pronto, e Orwell escreve a seu agente, Leonard Moore, para contar a novidade: “Terminei meu livro e lhe enviarei o manuscrito em poucos dias. (…) é uma espécie de conto de fadas, realmente uma fábula com significado político. Porém, acho que Gollancz não o publicaria, já que é de tendência fortemente anti-Stálin”. “Gollancz” é Victor Gollancz, o editor responsável pela publicação de alguns dos livros anteriores de Orwell. Conforme a expectativa do autor, ele realmente recusou A revolução dos bichos por motivos políticos e ideológicos, e essa recusa diz muito sobre a posição de Orwell, suas idéias e sua escrita. “A intelligentsia inglesa se opôs a Hitler, mas somente ao preço de aceitar Stálin”, escreve em uma carta de 18 de maio de 1944, enviada a Noel Willmett. “A maioria está perfeitamente pronta para métodos ditatoriais, polícia secreta, falsificação sistemática da história, etc., desde que ache que isso está do ‘nosso’ lado”, completa Orwell na mesma carta.
Nesse trecho, ainda que esteja comentando a recepção de A revolução dos bichos, já é possível entrever o estado de espírito que levará à escrita de 1984. Mas também é possível entrever bem mais do que isso, porque os temas da liberdade e da coerção já acompanham Orwell desde o início de sua carreira. Os primeiros textos de Como morrem os pobres, por exemplo, são sobre a vida dos trabalhadores, dos vagabundos e dos mendigos na Inglaterra, a forma como uma massa enorme de indivíduos é mantida sob controle e na penúria para manter os privilégios e os luxos de um número mínimo de aristocratas. Essa situação não foi vivenciada pelo autor apenas nos limites da Inglaterra, mas também na observação do Império Britânico como um todo, já que o escritor atuou como oficial da polícia inglesa na Birmânia, e pôde constatar que o sistema de controle era análogo, apesar da distância. Para Orwell, nenhuma experiência era isenta de implicações políticas. Cyril Connolly, escritor que foi seu colega de escola, o definia como um “animal político”, alguém incapaz de assoar o nariz sem tecer considerações sobre as condições de trabalho na indústria dos lenços.
Seja na Birmânia, nos albergues para vagabundos, nas prisões, nas escolas ou nos campos de concentração, Orwell acreditava que todo indivíduo era direcionado à estupidez política, à ignorância e à inatividade. Em um ensaio publicado em 1945, intitulado A poesia e o microfone, escreve:
O rádio é o que é não porque exista algo inerentemente vulgar, imbecil ou desonesto em todo o aparato de microfone e transmissores, mas porque todas as transmissões de rádio atuais em todo o mundo estão sob o controle dos governos ou de grandes companhias monopolistas que têm interesse ativo em manter a condição reinante e, portanto, em impedir que o homem comum fique muito inteligente. (…) Cada vez mais, os canais de produção estão sob o controle de burocratas, cujo objetivo é destruir o artista ou, ao menos, castrá-lo.
Daí seu fascínio pela idéia de revolução, pela visão da massa de trabalhadores com armas na mão marchando em direção ao centro do poder para destruí-lo — foi precisamente o desejo de ter acesso a essa visão que levou Orwell à Espanha em 1936, para lutar na Guerra Civil ao lado dos republicanos, eleitos democraticamente pelo povo e atacados pelo golpe militar de Franco.
É impossível, portanto, separar o contexto histórico vivido por Orwell de sua produção ensaística e ficcional, porque ele encarava o trabalho com a linguagem como uma das etapas principais do processo de emancipação política. A consciência da perversidade que sustenta as relações sociais e econômicas deve ser, em primeiro lugar, uma conquista individual, e essa conquista, para Orwell, passa necessariamente por um aprimoramento intelectual, por uma tomada de posse das possibilidades da linguagem. Nesse sentido, um de seus ensaios mais importantes é aquele intitulado A política e a língua inglesa, incluído em Como morrem os pobres. Para ele, a língua não é um “produto natural”, mas “um instrumento que moldamos para nossos propósitos”, um espaço de confronto e atrito permanentes. Toda padronização da linguagem com objetivos de controle social redundará, afirma, em empobrecimento intelectual, em dificuldade na criação e transmissão de idéias, “e esse estado reduzido de consciência”, escreve ele, “é, senão indispensável, ao menos favorável à conformidade política”. E continua:
Em nosso tempo, o discurso e a escrita política são, em grande medida, a defesa do indefensável. Podem-se defender coisas como a continuação do domínio britânico na Índia, os expurgos e as deportações russas, as bombas atômicas jogadas sobre o Japão, mas somente com argumentos que são brutais demais para a maioria das pessoas e que não estão de acordo com os objetivos declarados dos partidos políticos. Desse modo, a linguagem política precisa consistir, em larga medida, em eufemismos, argumentos circulares e pura imprecisão nebulosa. Aldeias indefesas são bombardeadas por aviões, os habitantes são expulsos para o campo, o gado é metralhado, as cabanas incendiadas por bombas incendiárias: isso se chama pacificação. Milhões de camponeses têm suas fazendas roubadas e são mandados para a estrada com não mais do que aquilo que podem carregar consigo: isso se chama transferência da população ou retificação de fronteiras. Pessoas ficam presas durante anos, sem julgamento, ou são fuziladas na nuca, ou são mandadas para morrer de escorbuto em acampamentos de lenhadores no Ártico: isso se chama eliminação de elementos não confiáveis. Essa fraseologia é necessária se quisermos nomear coisas sem evocar imagens mentais delas.
Liberdade e verdade
Orwell praticava — exaustivamente — uma espécie de controle, de atenção focada, que permanece absolutamente necessária ainda hoje. Ou seja, trata-se do exercício de continuamente relembrar a si mesmo e aos outros que todo tipo de informação que surge, seja em jornais, romances, ensaios ou artigos, é apenas uma parte muito pequena do que acontece no mundo, uma parte que, além de pequena, está diretamente associada aos interesses — freqüentemente obscuros — daqueles que estão por trás da divulgação dessa informação. Em seus escritos, Orwell consegue articular esse cenário a partir de duas perspectivas: aquela mais imediata, que diz respeito aos efeitos da circulação tendenciosa da informação no presente; e aquela a longo prazo, numa perspectiva histórica, que diz respeito à possível percepção da posteridade ao resgatar certos fatos. O próprio escritor viveu isso quando trabalhou na BBC ou na Birmânia, quando tornou-se colaborador de inúmeros jornais e revistas na Inglaterra e nos Estados Unidos, e sobretudo quando lutou na Espanha. Em uma carta de 15 de setembro de 1937, ele escreve:
A razão pela qual tão poucas pessoas entendem o que aconteceu na Espanha é o domínio comunista da imprensa. Além da própria imprensa, eles têm toda a imprensa capitalista anti-facista (jornais como o News Chronicle) do lado deles, porque ela percebeu que o comunismo oficial é agora anti-revolucionário. O resultado é que eles conseguiram impingir uma quantidade sem precedentes de mentiras e é quase impossível fazer com que alguém publique alguma coisa em contrário.
Para Orwell, a boa prosa está intimamente relacionada com a liberdade e com a possibilidade social da verdade. Nesse ponto, o autor segue o mote de Voltaire: “Discordo daquilo que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”. Um mote que ele reservava não apenas à manifestação da opinião alheia, mas sobretudo a sua própria — Orwell defendia seu próprio direito de estar equivocado, de voltar atrás e de mudar de idéia. Ele tinha consciência de que em seus escritos estava manipulando informações, fatos e opiniões ainda não completamente absorvidos, e por isso suas cartas e ensaios freqüentemente apresentam correções de rota, pedidos de desculpas e revisões de postura. É curioso perceber como, em Orwell, essa constante atenção aos eventos do presente imediato estava ligada, entre outros fatores, a um desejo de poder perceber as linhas de fuga que ainda formariam o futuro — linhas de fuga que vinham sendo cultivadas há décadas, ou mesmo há centenas de anos, e daí sua preocupação recorrente com a tradição e com os costumes (das características do chá inglês à prosa de Shakespeare e Dickens, por exemplo). São esses paradoxos tão produtivos, portanto, que justificam a leitura atenta da obra de George Orwell e destes dois volumes em especial.