Já se disse que ler um bom livro é, na verdade, ler-se. O livro — refiro-me aos melhores — possibilita ao leitor a fascinante possibilidade de, ao debruçar-se sobre suas páginas, voltar-se sobre os próprios sentimentos; mergulhar, esquecido de si, sobre suas idéias mais íntimas; resgatar do esquecimento experiências profundas: mesmo as que nunca viveu, pessoalmente, mas que são vivenciadas através de personagens, sejam elas um virtuoso rabino extasiado a perscrutar misteriosos fragmentos dos arquivos akáshicos, ou um botânico escocês que adentra a floresta amazônica em busca das raízes de uma sofisticada e antediluviana civilização, cujos vestígios perderam-se no pó dos tempos. E que a encontra em sua própria morte.
Para conseguir essa estranha alquimia, são necessárias algumas qualidades essenciais: que o livro seja bem escrito, embora até hoje não se tenha alcançado uma unanimidade sobre o que seja isto; que seus personagens sejam verossímeis e complexos, mesmo em sua aparente simplicidade; que a experiência humana, ali representada, ultrapasse uma configuração meramente particular, para ganhar um significado universal. Se, além disso, consegue-se proporcionar prazer ao leitor, em vez de torturá-lo, eis o paraíso.
Tais considerações me vieram à mente durante a leitura de Os arquivos de Deus, segundo livro do jornalista e escritor carioca Ruy Fabiano (1953). Trata-se de um volume de contos em que experiências humanas são levadas ao limite, seja do êxtase divino, seja do sofrimento físico, seja da culpa, da perversidade e do esquecimento. Nos seus melhores trabalhos, o autor dribla e deixa para trás, comendo grama, alguns cacoetes do chamado conto contemporâneo: a mera engenhosidade da linguagem, que, sem raízes, vazia de experiência e reflexão, voluteia sobre si mesma, na pretensão de uma originalidade inexistente; a adesão naturalista ao real, sem transcendência; a obscuridade, herdada dos vanguardistas do século 20, mas que revela dos seus autores, quase sempre, a incapacidade de se exprimir com clareza.
Histórias com maestria
Nos seus contos, tal como no romance Profanação (2005), Ruy Fabiano segue a tradição dos bons contadores de histórias, e o faz com a maestria de quem, ao longo de toda a sua vida profissional, como repórter, colunista político, editorialista e ficcionista sempre soube lidar com palavras: dar-lhes a devidamente destinação, como informação ou expressão.
Da sua longa experiência como jornalista, cobrindo o Congresso Nacional para o jornal Correio Braziliense e para a Agência Estado, o autor obteve outra característica valiosa para o ofício de escritor: o conhecimento apurado da condição humana, sobretudo de suas vilezas e contradições, e que se revela, em sua ficção, numa ironia devastadora, aliada ao humor fino e a uma imaginação exuberante. Características que não raras vezes tocam os limites da perversão e, até, do macabro. (Veja-se, nesse sentido, o conto A perna).
Trata-se, enfim, do que, antes da onda do politicamente correto, podia-se chamar de humor negro. Mas, também, eis a boa nova, num tempo profundamente descrente das qualidades mais altas do ser humano, Ruy Fabiano mostra, nas aventuras e desventuras de suas personagens, um sentido mais alto, afirmando, nas nossas letras, a idéia de que toda experiência traz um significado, um aprendizado. Aí está, talvez, a razão pela qual o leitor sai da leitura de Os arquivos de Deus com a sensação de que algo de muito significativo lhe foi acrescentado.
Encontra-se de tudo um pouco nas 209 páginas do livro. Como consta da orelha, “Os contos de Os arquivos de Deus versam sobre místicos e mistérios, vida e morte. Falam da busca de sentido e transcendência, do prosaico e do sublime, do convívio humano com seus mais densos enigmas. O profano e o sagrado no cotidiano”. Pode-se, mesmo, talvez erroneamente, identificar duas tendências no livro: aquela em que o sagrado dá o tom; histórias que, narradas de forma sentenciosa, aprofundam-se em questões teológicas e metafísicas, quando não esotéricas, mesclando o ensaio e a ficção. E outras em que a experiência mais prosaica, vivenciada por personagens comuns, nos subúrbios do Rio de Janeiro, é quem transporta o leitor para micro-aventuras do cotidiano retratada da forma mais crua e impiedosa em contos-crônicas de impagável nonsense.
Presença do mistério
Numa leitura mais atenta, verifica-se, no entanto, o engano de tal distinção: em todos os contos há um sentido comum: o da presença do mistério, dos acasos significativos, do imponderável. Como numa ciranda, os extremos do sagrado e do profano dão-se as mãos e o que se encontra, ao final de tudo, é uma lúcida indagação sobre os mistérios da existência.
Vejamos, aqui, alguns exemplos, tomando como referência sete contos escolhidos entre os que mais impressionaram o autor desta resenha. Comecemos pelo segundo do volume, intitulado O encontro. Nele conta-se a história de Sebastião, jovem de 16 anos, que, ao atravessar sozinho, a pé, nos longínquos anos finais da década de 30, o desolado sertão da Serra da Borborema, na Paraíba, com destino ao Rio de Janeiro, encontra-se com ninguém menos que o terrível cangaceiro Sinhô Pereira, que, “dizia-se, não poupava os que tinham a infelicidade de cruzar-lhe o caminho”. Ao cruzar com o rapaz, que, perdido nas lonjuras, saúda sua chegada como a de um Anjo Salvador, este se vê exatamente nesta condição, confirmando a máxima de que, no sertão, “o Diabo é vizinho de Deus”. E vice-versa, já que, ambos, seriam “instrumento de misterioso processo de transformação, que faria com que cada qual levasse o restante da existência para avaliar e compreender”.
O livro de Cícero, interessante exemplar do gênero fantástico, mostra os estranhos acontecimentos envolvendo a raridade bibliográfica De Gloria, de Marcus Tulius Cícero, códice do século 13, luxuosamente encadernado, adquirido por um bibliófilo pernambucano e que, ao final, após muitas peripécias, conjectura-se ser um livro inexistente.
Em Uma estranha moléstia, após uma erudita explanação sobre as patologias do universo bibliológico, e seus exemplos ao longo da história, o narrador conta, na primeira pessoa, a compulsão da qual se tornou refém: a de ler, de trás para frente, tudo o que lhe diziam. Experiência adotada inicialmente como um método terapêutico que permitiria apagar da memória todos os grandes livros para poder reviver o prazer de reencontrá-los, mas que se propaga, como epidemia, levando todos ao perpétuo esquecimento.
No conto Moribundo, com exemplar estilo machadiano, um homem rico, em estado de coma, num leito de hospital, narra com ironia e desdém as escaramuças verificadas entre a filha mais velha e o seu provável substituto na presidência da empresa, em torno da decisão de desligar ou não os aparelhos que o mantêm vivo. Diz ele: “Nova reunião está marcada. Detalhe: será diante de meu pré-cadáver. Leda não admite ausentar-se do local; teme sabotagem hospitalar. Há muita grana em jogo e ninguém merece confiança; nem eu. Em mais de uma oportunidade, olhou firmemente minha carcaça estendida na cama e murmurou, em tom de apelo e ordem: ‘Não me morra, não me morra!'”
E, ainda na vertente do humor negro, três textos se destacam entre outras jóias do gênero:
A árvore genealógica, em que se conta as desventuras de um homem que enlouquece após ver frustrado seu projeto de vida: o de, na pesquisa de sua árvore genealógica, “sondar o passado, conhecer a própria origem, vislumbrar traços de nobreza perdidos no tempo, que o ajudassem a dar sentido, estima e amplitude a seu modesto presente de suburbano aposentado”.
A encomenda, em que um escritor brasileiro, em Roma, confunde-se no envio de dois pacotes para o Brasil: um deles contendo as cinzas de uma velha senhora, mãe de uma amiga sua; e outro contendo orégano italiano, solicitado pela mulher do seu editor. Curiosa peça de humor cuja descrição da trama, aqui, não faria jus ao estilo do autor. E, finalmente, encerrando o volume, o conto Glub, Glub, Glub…, no qual são narradas tragédias testemunhadas pelo narrador, sempre que, mergulhado em reflexões aquáticas, ouve uma determinada frase, proferida pelo seu amigo, pouco antes de morrer afogado na Lagoa Rodrigo de Freitas: Água é vida, fonte de toda a existência. “Após a frase, engoliu vida, isto é, água, até sucumbir nas profundezas geladas da Lagoa, como um entulho inflado. Vida, em excesso, mata, foi uma das minhas muitas e absolutamente inúteis reflexões, entre uma braçada e outra, na seqüência da frase derradeira”.
Em todos os textos do volume, Ruy Fabiano imprime o seu talento de contista, cronista e ensaísta, gêneros que muitas vezes se entrecruzam e se amalgamam, marcados, sempre, pela dose certa de erudição, ironia, humor, crítica social e, sempre, a reflexão, às vezes amarga, às vezes esperançosa, sobre os misteriosos desígnios da vida e da morte, com tudo que há de permeio.