Parábola do pai-de-todos túrgido

Leminski foi o mais versátil dos chefes de cozinha, capaz até de dar ao mundo duas iguarias de tempero e temperamento opostos: duas obras-primas irmãs, duas pontas da mesma cobra. Catatau é o caviar da elite, Agora é que são elas é o quindim da meninada.
Paulo Leminski, autor de “Anseios crípticos”
01/10/2004

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Foi o maior espetáculo da Terra. Exagero? Pode ser. De qualquer forma, foi o circo mais importante para muita gente. O circo que moldou as mais diferentes mentes, o elo afetivo que une até hoje os mais diferentes escritores que pintaram na década de 90. Quem não assistiu a esse espetáculo, não viveu.

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O circo da editora Brasiliense, o Circo de Letras. No picadeiro, por ordem de entrada: Bukowski, Kerouac, Hammett, Conrad, Salinger, Burroughs, Pasolini, Fante, Ferlinghetti e ele, Leminski, o primeiro nativo a pintar no pedaço. Com o romance Agora é que são elas.

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Esse circo funcionava ao lado das Cantadas Literárias. Quem se lembra delas? Quem não se lembra? Bordel de primeira, de bardos vadios e divas barbadas. Infelizmente, a má administração baixou a lona do circo e fechou o prostíbulo. Mas tem algo sobre o qual eu não quero falar.

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1984-2004. Duas décadas de Agora é que são elas. Aqui jaz o melhor romance dos anos oitenta. Que descanse em paz. Por que será que esse saco de gatos metalingüístico ainda não virou filme, peçam aos deuses econômicos para explicar. Afinal, o cinema brasileiro não sabe se virar sem a literatura.

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Aqui e ali, versões e inversões de Dom Casmurro, Memórias póstumas de Brás Cubas, Os sertões, Vidas secas, Memórias do cárcere, Lavoura arcaica, A grande arte, Estorvo, O xangô de Baker Street, Abril despedaçado, Cidade de Deus, O matador, Estação Carandiru, Desmundo, Olga, a lista é longa e a vida, de curta metragem.

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Por que será que o romance do nosso Paulo ainda não virou filme, cheio de sacanagem e peripécias como é… Mistério. Melhor para nós. Literatura mal adaptada e maldotada — míseros trinta e cinco milímetros, quando no auge — não dá tesão. Mas tem algo sobre o qual eu não quero falar.

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Quero falar desse rapaz que aí está, isso eu quero. Desse rapaz que em agosto fará dezessete. Dezoito, em agosto do ano que vem, quando já não estará morando em Ribeirão Preto, mas em São Paulo.

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Quero falar desse rapaz latino-americano, alto, magro, sem dinheiro no bolso. Desse rapaz que sabe que Belchior e cinema nacional são a mesma sacanagem. Desse rapaz que, plantado vinte anos no passado, apalpa os peitos da Norma recém-parida. Esse rapaz sou eu.

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Nesse dia, as sobras da chuva das cinco horas derrubavam as folhas frouxas dos cajueiros na porta da livraria Paraler. Essa folha magra e meio inclinada aí, segurando o exemplar do romance do querido Paulo, sou eu. Se as sobras da chuva das cinco horas sussurrassem no meu ouvido: “Esse livro vai mudar a tua vida”, eu daria risada.

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Não é que mudou mesmo?! Nosso dileto Paulo foi o mais versátil dos chefes de cozinha, capaz até de dar ao mundo duas iguarias de tempero e temperamento opostos: duas obras-primas irmãs, duas pontas da mesma cobra. Catatau é o caviar da elite, Agora é que são elas é o quindim da meninada. Este é o melhor petisco para o gourmet que quiser mais tarde apreciar aquele. E eu mordi a isca direitinho. Pudera, em que outro restaurante eu encontraria o bom e velho Propp dublando Freud nas cenas perigosas? Em que outro prato eu encontraria as suas clássicas trinta e uma funções narrativas enroladinhas feito sushi?

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Agora é que são elas não é um exercício menor, é um divertimento maior. As mais safadas borboletas e fadas, de Lear a Carroll, de Joyce a Lennon, estão pregadas com alfinetes nas suas páginas. A paródia paramenta os clichês — a menina vidente, a festa que não houve, a troca de identidade, o enredo labiríntico, os trinta e um capítulos em homenagem à Morfologia do conto maravilhoso — para a performance de picadeiro.

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Tudo é carnaval, tudo é carnavalização! Viva o circo! Salve o riso, Corisco! O protagonista anônimo, paciente do doutor Propp e amante de sua filha, vive cercado de antagonistas sinônimos, antônimos, atônitos. Há o sujeito da idéia fixa, que diz que o Pentágono implantou uma microbomba atômica no interior do seu cérebro. Há os seres gasosos dos pântanos de Canopus. Há a guerra intergaláctica.

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E há ela, a fêmea fatal, a mulher mais tesuda de todas, o sonho de consumo de todo rapaz de dezessete anos em 1984: “Então eu soube. Ela se chamava Norma. De normas, vocês sabem, o inferno está cheio”.

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Mais não falo. Se quiser ler esse livro, clique aqui. Se quiser ler a crítica desse livro feita pelo Bóris Schnaiderman, clique aqui. Se quiser ler o clássico de Vladimir Propp, clique aqui. Se quiser sair desta página para os pântanos de Canopus, clique aqui, acenda o cigarro e boa viagem. Mas tem algo sobre o qual eu não quero falar.

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Tudo bem. Já que insistem, vou falar… O romance histórico, o romance psicológico e o romance policial estão para a arte romanesca assim como a genuflexão está para a arte da postura.

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Mas adiantei-me. É melhor começar do início. Respeitável público, peço-lhe paciência, muita paciência. Porque vou tratar agora do tópico que, mais do que abordado, merecia ser abortado imediatamente. Esse sorrisinho maroto no canto da boca indica que os senhores já pressentem o que vem pela frente. Acertaram em cheio.

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É sobre… Uh, só de pensar me dá arrepio. Sim, os transgressores e os conservadores. É sobre eles que falarei a seguir. Oportunistas e prestidigitadores de primeira grandeza têm redigido ensaios e organizado antologias com essa rubrica: os transgressores. Hereges, blasfemadores.

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Alguém precisa erguer a bengala e pôr esses indigentes no seu devido lugar. Cambada de cabotinos! Aliás, a última vez que vi uma citação ao romance Agora é que são elas foi justamente numa dessas antologias. Segundo o seu organizador, o dileto Paulo seria nada mais nada menos do que o principal transgressor curitibano…

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Zeus seja louvado! Não, não. Sim, sim. É hora de jogar no lixo essas antologias demagógicas e botar os pingos nos is.

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Preciso que tenha paciência, prestimoso público. Meus queridos ouvintes, preciso que desviem as pupilas das coxas da minha pupila e as apontem para a minha definição concreta — a melhor, a verdadeira — da palavra transgressor.

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Imaginem três sujeitos: Moe, Larry e Curly. Ou se preferirem: Fulano, Beltrano e Sicrano. Fulano é rico, muito rico, vive com os bolsos do paletó cheios de torrões de açúcar. Beltrano e Sicrano são pobres, muito pobres. Como podem ver, ambos não têm torrões de açúcar nos bolsos, muito menos bolsos, afinal estão nus. Para não morrerem de fome, precisam comover Fulano até o ponto de fazê-lo atirar-lhes dois ou três torrõezinhos.

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Beltrano, ao modo dos servos medievais, está ajoelhado diante de Fulano. Sicrano, ao modo dos mordomos da aristocracia inglesa, está de pé.

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Como podem ver, nem Beltrano nem Sicrano adotaram postura iconoclasta, muito pelo contrário. Ambos conhecem o protocolo e todas as posições corporais possíveis, cuja instituição respeitam.

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O problema é que Sicrano, sabe-se lá por quê, está com o dedo médio da mão direita erguido. Ridículo. Que quererá com isso? Apenas chocar Fulano e Beltrano? Que não se chocam, claro que não, porque o dedo médio da mão direita erguido é algo que já viram dezenas de vezes ao longo da vida.

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Nada de original, compreendem? Afinal, esse gesto Sicrano aprendeu com o seu pai, que aprendeu com o seu avô, que aprendeu com o seu bisavô…

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Fulano, cheio de empáfia, atira três torrõezinhos a Beltrano, ajeita o monóculo, enfia a cartola na cabeça — ou a cabeça na cartola, tanto faz —, ameaça ir embora, pensa melhor, resmunga qualquer coisa, atira um mísero torrãozinho a Sicrano e agora sim vai embora, passar bem, au revoir.

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Vai embora aborrecido. Por quê? Porque acumular riqueza é atividade por demais extenuante, por demais árdua. Nos raros segundos de folga tudo o que Fulano quer, tudo de que precisa é do gesto simples, subserviente, balsâmico, que o revigore, que lhe dê forças para voltar a acumular.

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Em vez disso o que lhe dão? O dedo médio empinado. Tolice, apenas tolice! Que significa esse dedo ereto? Nada, absolutamente nada. Em termos artísticos, o zero absoluto. Não é comovente, não é revelador, não é ultrajante. É isso o que Fulano diz a si mesmo e aos sessenta botões de ouro do seu paletó. “Não entendo por quê, em vez de se ajoelhar como costumavam fazer nos bons tempos, o pateta aí insiste nesse dedo em riste que não significa nada.”

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Compreende, maravilhoso público, a que ficou reduzido hoje o transgressor de outrora? A essa figurinha pelada com o pai-de-todos aprumado, sem bolsos e quase sem açúcar. Ele não dá ouvidos ao bom senso. O bom senso vive aconselhando: “Deixe disso, meu filho. Veja, todos os teus irmãos estão com o dedo médio erguido, isso já não é mais novidade. Ajoelhar-se, como faziam no século dezoito e no dezenove, sim, voltou a ser novidade”.

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Que restará a Sicrano, depois que o mísero torrãozinho for só uma remota lembrança? A ele restará apenas chupar o próprio dedo duro. O romance histórico, o romance psicológico e o romance policial estão para a arte romanesca assim como a genuflexão está para a arte da postura. Nosso Paulo Leminski foi desses que, apesar da inutilidade da recusa, não se ajoelharam.

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Imaginação ereta, nosso Paulo deixou farta prole de menores que não se ajoelham. E não se ajoelham porque, mesmo não significando quase nada, a posição vertical é, digamos, cinco por cento menos indigna do que a outra. Nas atuais circunstâncias, venhamos e convenhamos, esses cinco por cento fazem toda a diferença.

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Cliques

  1. Agora é que são elas, Brasiliense, 1984. Atualmente só encontrável em sebos.
  2. “Em torno de um romance enjeitado”, em Uma carta uma brasa através (coletânea de cartas organizada por Régis Bonvicino), Iluminuras, 1992.
  3. Morfologia do conto maravilhoso, tradução de Jasna P. Sarhan, Forense Universitária, 1984. Também só encontrável em sebos.
  4. Na verdade, a maneira mais rápida e segura para se atingir os pântanos de Canopus, sem correr o risco de morrer na tentativa, é ler de uma só enfiada Agora é que são elas, Caprichos & relaxos e Catatau, como eu fiz em 1984.

* Texto incluído na coletânea A linha que nunca termina, organizada por André Dick e Fabiano Calixto, a ser publicada em breve pela editora Lamparina.

Catatau
Paulo Leminski
Travessa dos Editores
425 págs.
Nelson de Oliveira

É ficcionista e crítico literário. É autor de Poeira: demônios e maldições e Ódio sustenido, entre outros.

Rascunho