Para todos os tamanhos

“Por que sou gorda, mamãe?”, de Cíntia Moscovich, narra as alegrias e tristezas de uma protagonista que engordou 110 tabletes de manteiga em quatro anos
Cíntia: história é muito bem contada e domínio da escrita.
01/02/2007

Domingo era dia de visitar a mãe do meu pai. Dona Romilda nos esperava a todos — filhos, noras, netos — debruçada na janela do apartamento, que ficava no andar térreo. A meninada passava pelo janelão mesmo, os shorts meio caindo, o sapato perdido no meio do caminho, as risadas sem fim… Ali, domingo sempre tinha um cheiro diferente. De tempero — cebola e alho cortados bem fininhos. E tinha barulhos muito peculiares. Da pressão com feijão dentro. Do batedor de carne. Da batata mergulhando numa travessa cheia d’água. E era dia de ver os tios, lembrar as histórias vividas há tantos anos e sempre com novos detalhes, personagens, músicas. Eram bons tempos, aqueles com domingos em que ninguém se preocupava com o número de calorias que tinha no ensopado e nas batatas “afogadinhas”, como a vó chamava. A mesa, pequena para tanta gente, ficava lotada de comida — coisinhas leves, como tutu de feijão, pernil, frango caipira, e um bolinho de sobremesa. As pessoas se viravam como podiam. No sofá, no banquinho, no chão. E comiam. Sem culpa, sem medo. A criançada lambia os beiços, os dedos e até o prato, se as mães bobeassem na vigia pelo mínimo de educação à mesa.

A mãe de minha mãe, a gente via com mais freqüência. Sextas e sábados regados a carteado e lanchinhos gostosos. Vó Tita não cozinhava, como vó Romilda. Preferia comer a refeição que os outros preparavam. E comer bem. Sempre. Um bom prato de chucrute com vina (para quem não é de Curitiba, vina é salsicha do tipo Viena, vem do alemão “wienerwurst”), ou uma cumbuca cheia de borsch (ou borsht — a versão da sopa de que ela gostava era a com beterraba e creme de leite — frios —, com guarnição de batatas — quentes), ou sopa de matzá, uma farinha sem fermento (que a gente chamava de sopa de bolinha). No lanche da tarde — sagrado, sempre por volta das 16 horas —, o que ela gostava mesmo era pão com margarina mergulhado no café com leite. E a netarada acompanhava. Enquanto ela contava as histórias — a gente ouvia sempre as mesmas e sempre pedia para que ela contasse, tudo de novo, as mesmas coisas — os pães iam sumindo do pacote. Ela dizia que a comida tinha que acabar junta: se sobrava pão, mais café. Como sempre o café acabava sobrando, mais pão para acompanhar. E, assim, o café da tarde durava até alguém começar a fazer o jantar.

Não é difícil de perceber que a minha família — dos dois lados — adora se reunir para comer. Algumas vezes, o alimento é só um “plus a mais” no encontro para matar as saudades. Mas, na maioria delas, a reunião é apenas um pretexto para comer, mesmo. Por isso, muitos dos parentes estiveram, estão ou estarão gordos em algum ponto da vida. Ou em todos eles, como é meu caso. Por isso, quando li o título da obra sobre a qual eu escreveria neste Rascunho, achei engraçado: Por que sou gorda, mamãe, da gaúcha Cíntia Moscovich. Seria um livro de auto-ajuda? Ri sozinha e comecei a leitura. A personagem-narradora — que, pelo que andei lendo, seria a própria Cíntia (se não for, ela conhece muito bem esse universo redondo) — é uma escritora que engordou 22 quilos em quatro anos. Vinte e dois quilos são muitos quilos. Equivalem a cento e dez tabletes de manteiga, diz o médico da protagonista. O que para algumas pessoas — como minhas parentas do interior do Paraná, sempre felizes em ver o pessoal cada vez mais roliço — é sinal de saúde e de vida, para a nossa saúde e vida é sinal de alerta. Enquanto a escritora vai perdendo peso, até eliminar aqueles tabletes de manteiga, vai narrando sua história familiar. A comida está sempre presente.

A menina nasceu em família judia. E muito se sabe sobre a alegria judia em reunir-se em torno de uma boa mesa. (Eu sei. Também tenho ascendência judia. Meu bisavô Júlio Schaia era judeu polonês. Veio fugido para o Brasil, onde conheceu a também judia, mas alemã, Guilhermina Stein. Eram os pais de Tita.) Era redondinha, quando mais nova. E que bonitinhas são as crianças roliças… Só quando são crianças. Quando crescem, têm de, de repente, entrar numa dieta braba para não virarem aberrações. Sim, porque gordos são vistos como aberrações. Ou, em graus menores, palhaços. Ou simpáticos. A graduação vai do simpático ao freak, dependendo do tamanho das calças. Enfim… Para não ficar do tamanho extra GGG das tias, irmãs do pai (personagens que aparecem em uma certa altura do livro em cena engraçadíssima — para quem não a viveu de verdade), a narradora faz, como praticamente todos os gordos do mundo, várias dietas, toma boletas e sobrevive de alfaces para perder os quilos a mais em sua juventude. Graças a isso, durante anos, viveu bem. Dentro dos padrões da normalidade. Casou, comprou cachorro e gato. Mas a comida, essa companheira cheirosa, saborosa, prazerosa, a estava sempre rondando. Nos últimos quatro anos, foi guardando quilos. Posso até imaginar que a distribuição deve ter ficado um tanto nas coxas, outro tanto no bumbum, boa parte na barriga, e mais um tanto naquela papada que deixa a pessoa com três queixos, mais ou menos. As calças iam apertando, as blusas iam encurtando e ficando mais coladas. Silenciosamente, o fantasma adiposo tomou conta daquele corpo. E ficou ali, até que o médico, carrasco, gritou aos quatro cantos: “Vinte e dois quilos! Cento e dez tabletes de manteiga. Quarenta e quatro espetos de picanha.” Quando conseguisse voltar a olhar no espelho, teria a visão do inferno.

Mais uma coisa:

— Você não está gorda.

Certo, meu estado não era transitório, a gordura nunca foi um episódio solteiro em minha vida, eu sabia, ele nem precisava ir adiante. Mas ele foi:

— Vamos fazer suas células adiposas murcharem. — Pediu minha atenção com a caneta no ar: — Sei que parece injusto, mas a natureza a fez assim. Você é gorda.

Uma vez mais, de novo.

Depois do susto, fibras, saladinhas, chás e exercícios diários. E uma refeição livre por semana (O que nunca — nunca —é uma boa alternativa para o gordo que tem cabeça de gordo. Cabeça de gordo funciona assim: “Tenho uma refeição que posso comer o que quiser? Pois bem: quero tudo!”, e come até passar mal. Muito mal. Quase a ponto de vomitar — mas não vomita… vai armazenar essa comilança para o resto da semana, e vai viver dia a dia pensando na refeição livre da semana que vem). A narradora de Por que sou gorda, mamãe? é guerreira. Consegue acalentar memórias regadas a comilanças e mesmo assim comer menos. Emagrece.

Espelho
Li a história de Cíntia Moscovich numa sentada. Foi fácil, agradável. Provavelmente porque tudo o que era narrado ali era muito próximo de mim. De minha história. Eu me vi dentro daquelas páginas. Reconheci os cheiros, as alegrias, as tristezas. Desde o momento em que a comida traz o conforto e as lembranças deliciosas de uma infância sem preocupações com o peso, passando pela adolescência (quando você quer se sentir mais bonita e precisa “dar uma controlada” no que come), até a desconfortável sensação de que as cadeiras do cinema estão ficando menores a cada filme e a constatação do inevitável: as lojas “normais” não têm mais roupas de seu tamanho e você tem de deixar até a mãe como garantia de pagamento para nas caríssimas lojas de gordo (para as mulheres, a roupa preferida nessas lojas é o conjunto de duas peças que parece capa de bujão de gás pintada à mão — provavelmente com a esquerda de uma pessoa destra — com flores gigantes ou bolas).

Numa academia de ginástica não há gordos. Na musculação, nas aulas de pula-pula, nos vestiários, nos corredores, tudo o que se vê são pessoas magras. Inimaginável que alguns desses tenham sofrido alguma vez na vida com peso em excesso. Constranjo-me diante deles, recuso-me a freqüentar vestiários e duchas. Ao contrário, enfio-me dentro de camisetas extragrandes que vão do pescoço aos quadris.

O pior é que nenhum desses magros transpira, parece sofrer ou tem o tempo livre contado. São risonhos, bebem água de garrafinhas de plástico, moram dentro da academia. Fazem exercícios olhando-se no espelho.

Quanto a mim, me recuso ao espetáculo decadente. Faço de conta que o reflexo dos espelhos é um espectro transitório. Daquele diabo inchado que mora dentro de mim. Odeio esse demônio.

Por conta dessa identificação com a narradora (há até menção a uma vaca do bisavô da narradora que se chama Chaia!), achei que seria difícil dizer se gostei do livro porque ele é realmente bom ou porque me vi nele. No entanto, o fato é que Cíntia escreve muito bem. Com segurança. Também porque domina o assunto — especialmente se o livro for mesmo autobiográfico. Mas especialmente porque domina a técnica da escrita. A gaúcha sabe usar um tema conhecido intimamente de uma forma agradável, sem tornar a narrativa cansativa para quem, diferente de mim, não conhece a dor do excesso de peso ou martírio de comer saladinhas (“Com o frio, comer salada dói na alma.”, diz a narradora à página 67).

A história é muito bem contada. Ou melhor, as histórias. Todas as interferências da memória familiar da escritora-narradora são tão deliciosas quanto um bom prato de tutu de feijão. O texto é simples e, apesar de ir e vir no tempo, acerta na mosca. Por isso, não posso ser injusta: o livro não deverá, não, fazer sucesso somente entre as mãos mais cheinhas. Prende o leitor magro também. Prende com personagens dos mais variados, que servem para todos os tamanhos. Bisavós fugidos da Europa Oriental para procurar um lugar em que houvesse liberdade — e que nunca faltasse comida; tias imensas que viram um espelho do terror para uma jovem aspirante a escritora; avós amorosos e, obviamente, cercados de comidas deliciosas por todos os lados. E tem a mãe. Ah, a mãe. A relação entre as duas fica bastante clara nas cartas que a protagonista escreve para a genitora. Demonstra a complexidade e a delicadeza presente em todas as relações de pais e filhos. A relação entre as duas — a mãe esbelta, solitária, ranzinza e hipocondríaca; e a filha gorda, submissa, frágil — é cheia de altos e baixos, amor e ódio… e de interdependência. Por mais que não pareça em uma primeira olhadela, é uma relação cheia de vida. “E viver engorda”.

Por que sou gorda, mamãe?
Cíntia Moscovich
Record
251 págs.
Cíntia Moscovich
Gaúcha de Porto Alegre. É escritora, mestre em Teoria Literária e jornalista. Foi diretora do Instituto Estadual do Livro, órgão da Secretaria de Estado da Cultura do Rio Grande do Sul, e editora de livros do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. É autora de O reino das cebolas; Duas iguais; Anotações durante o incêndio e Arquitetura do arco-íris.
Andrea Ribeiro

É jornalista.

Rascunho