Para sempre Bovary

Em "Vale Abraão", Agustina Bessa-Luís parte da imitação de Madame Bovary para construir um grande romance
Agustina Bessa-Luís dribla as dificuldades de escrever um romance sob encomenda e faz alta literatura
01/12/2004

Se a óbvia relação com Madame Bovary de Gustave Flaubert não pode ser percebida no título do mais recente lançamento da portuguesa Agustina Bessa-Luís no Brasil, Vale Abraão, pode ser provada pela história da sua composição. Em entrevista concedida a Jefferson Del Rios (revista Bravo, novembro/04 #86), Agustina afirmou que o cineasta Manoel de Oliveira pediu-lhe uma idéia para um roteiro “que fosse réplica atual de Madame Bovary, que já teve muitas adaptações para o cinema”. Em Portugal, o romance foi publicado em 1991 e o filme de Manoel de Oliveira é de 1993. Mas isso é a história externa do romance. Dentro dele, por outro lado, é possível transcender a encomenda na leitura do valor da imitação — “a imitação não são caretas, mas a afeição ao objecto imitado; o amor, portanto” (p. 240). O comentário digressivo não se refere só à Greta Garbo.

Temos uma Ema em Vale Abraão, casada com um Carlos médico, mãe infeliz de filhas mulheres, cercada de amantes, dívidas, etc. Tudo já conhecido nosso. O narrador não dispensa qualquer oportunidade para nos lembrar de Flaubert — “Enquanto Ema Bovary deixa perceber o equívoco, porque é um homem desencorajado da sua virilidade e esse se refugia no travesti, Ema Paiva era uma mulher-espetáculo” (p.216) ou “Ela sabia fazer rir os homens, e nisso não era uma Bovary bem copiada. Ema Bovary não tinha qualquer sentido de humor, e daí a sua impaciência estéril” (p.217). Ema Paiva era chamada socialmente de “a Bovarinha”.

A leitura de Vale Abraão convoca um mito literário, do nada a tudo na significação operada pela desleitura… Mais perto da publicação de Flaubert, Eça de Queirós viveu a força do mito no Primo Basílio e Silviano Santiago já nos ajudou a entender essa relação perturbadora, cujo foco não foi percebido por Machado de Assis, brilhante e injusto crítico do romance de Eça, para Silviano “a riqueza e o interesse da literatura não vem tanto de uma originalidade do modelo, do arcabouço abstrato ou dramático do romance ou do poema, mas da transgressão que se cria a partir de um novo uso do modelo pedido de empréstimo à cultura dominante” (“Eça, autor de Madame Bovary” em Uma literatura nos trópicos). Teresa Cristina Cerdeira também releu os textos, de Flaubert a Silviano, passando por Eça, e esclareceu “que Emma viva em Yonville e Luísa em Lisboa é facto que já aponta uma radicalização da ironia do autor português, pois equivale a dizer que entre as duas cidades nenhuma diferença se impõe.” (O Primo Basílio para além de uma história de família, em O avesso do bordado). A capital de Portugal e a insignificante Yonville se vêem assim tão semelhantes… Há algo mais doloroso, no caso de Eça, ligado à sombra do nome de Luísa no título que “honra” o sedutor — “são os Basílios e não as Luísas os que tragicamente assinalam o seu espaço em Portugal, onde ao feminino e ao masculino estão atribuídos, respectivamente, como uma espécie de fatalidade, o estigma de ficar e a liberdade de partir (…) Dinheiro, posição, cultura, renome, só cabem aos que partem” (O Primo Basílio para além…).

Se Vale Abraão é desbragadamente uma versão atual de Madame Bovary, vale perguntar qual é o caráter da sua transgressão, já que os exemplos citados acima que forçam a relação entre os textos assinalam também flagrantes descontinuidades. É fato que o narrador pisca para o leitor, como a lembrar a narrativa dezenovesca dos “caros leitores”, “patetas”, “amáveis”, etc. — “Dirão os leitores que uma mulher como Ema não existe. Eu direi que sim. A mulher, aos cinco anos, percebe o que há de exasperante e triste na vida, em todos os detalhes” (p. 235). A narrativa começa com uma descrição do espaço — as margens do rio Douro e Vale Abraão, até chegar a Carlos Paiva, seu primeiro casamento, viuvez e Ema. Nada de narrativas multiformes pós-modernas, nada mais que um palimpsesto reconhecido…, discursos bem marcados e no entanto um bovarismo contundente de condição. Diferente dos embates entre um modo de narrar romântico e impessoal, do realismo de Flaubert, e da condição do centro de algo que está à margem do todo, em o Primo Basílio.

Eva Paiva se compraz em distrações que teriam exasperado Bovary, “Viagens como a que Ema fez a Carlão com a cozinheira eram as suas preferidas. Melhor do que Paris (…) estando os soutos carregados de castanhas e as ravinas cheias de ouriços abertos, isso era qualquer coisa que não existia em mais sítio nenhum” (p. 132). A linguagem que convocava termos locais de maneira absolutamente intencional dava-lhe uma graça que também escaparia ao projeto de Ema Bovary — “Gostava de deformar a cultura que recebera, fingia ser uma rapariga da vinha” (p. 153). Nos dois exemplos, não há um elogio ao campo, não há reconciliações extemporâneas com as serras, como foi mal lido o último Eça, mas o desejo por uma diversidade que só pode ser explicada pelo que Eva Paiva tem de deslumbrante. A palavra é tão perfeita quanto a poesia, pois o deslumbre pode ser dor, pela cegueira que causa, mas, no romance de Agustina, é carcomido pela cegueira que o transcende — “os cravos vermelhos vendiam-se até mais baratos, pela procura inferior que tinham. Era um sintoma. As sociedades aliam-se pelos factos e comunicam pelos sintomas” (p. 160). Os cravos de Abril, da Revolução que expulsou o fascismo, eram erva de rua a ser arrancada pois fazia feio.

A beleza deslumbrante de Ema é um equívoco na obra, largar-se à sua contemplação ou ao seu gozo era um prazer do qual homens e mulheres se esquivavam, pois, para se abismar, é preciso surpreender-se com a altura do desafio. O equívoco é perceptível pelo estado de miséria reinante que tem pouco a ver com a falta de dinheiro, é a miséria de sentido — “E agora, quando leio essas coisas sobre sexo em família e as maneiras de fazer sexo que são menos do que as de como cozinhar bacalhau, penso se as pessoas não estarão desvitaminadas. Se estão a comer bem ou não” (p. 207). O Desejo, sexual ou não, despertado pela beleza de uma adolescente de 15 anos, Ema, era “coisa de que se acautela a sociedade por a ter por desintegradora das suas regras” (p. 30), poderíamos acrescentar, confessáveis…, exclusivamente.

Ema cresceu sem mãe, “o antagonismo em que repousa o imperativo do amor” (p. 13), avisada de maneira clandestina da sua beleza: carros e motos se espatifavam na estrada invadida pela varanda da menina, em Romesal. Até o presidente da Câmara fora avisar ao pai, Paulino Cardeano, dos perigos que rondavam o deslumbre dos motoristas. Risco literal, “a beleza é aquilo que mais abate o nosso fingimento” (p. 22). Diante da noiva adolescente, o viúvo Carlos Paiva dissimulava a corte e fugia de estar com ela a sós — “há homens que nem submetidos a tormentos confessariam o seu amor por uma mulher, sobretudo tratando-se de uma mulher honesta” (p. 29). Também não honesta, é claro, porque, depois de casada, Ema envolve-se, entre outros, todos sabidos pelo marido, com Fernando Osório que lhe traz de bom apenas a possibilidade de fugir e morrer nas suas terras, o Vesúvio.

Do casamento, o amuo e os filhos, primeiro as meninas, que Ema ignorava, e tardiamente um menino, concebido com distração. Ema substituía a sua corte na casa do pai pela solidão do Vale Abraão de Carlos, onde o telefone só tocava para ele a princípio. Apesar disso, pajeada por dois escudeiros, que não se tornaram amantes, Pedro Lumiares e Pedro Dossém, a mulher do doutor Carlos Paiva, desliza da curva do Douro para outras paragens, sai em viagem. Assim, Eva Paiva se vinga de Bovary e Luísa. Em Vale Abraão, o marido esperava a revisar os contos morais de uma paciente rica, Maria Semblano, invejosa dos trânsitos sexuais do marido, do filho e de Ema, inveja nascida da virtude propalada.

Há um detalhe fascinante em Ema Paiva, a lesão em sua perna esquerda, o aleijão do encanto, que a tornava parente do demônio, afinal “também Satã era representado manco, porque a formosura precisa de ter um aviso nela” (p. 86) e da inesquecível Dama pé-de-cabra de Alexandre Herculano:

E se eu te amasse mais que a minha mãe, por que não te cederia qualquer dos seus muitos legados?/ (…) Pois sabe que para eu ser tua é preciso esqueceres-te de uma coisa que a boa rica-dona te ensinava em pequenino e que, estando para morrer, ainda te recordava./ Do quê, de quê, donzela? (…)/o de que eu quero que te esqueças é o sinal da cruz: o que eu quero que me prometas é que nunca mais há de persignar-te (…)/ E levando a bela dama nos braços, cavalgou na mula em que viera montado./ Só quando, à noite, no seu castelo, pôde considerar miudamente as formas nuas da airosa dama, notou que tinha os pés forcados como os de cabra (A Dama Pé-de-cabra, em Histórias heróicas)

Em um momento de surpresa, o amante cai e vê a sua dama airosa convertida no diabo, ela se eleva carregando a filha, Dona Sol, e quase leva o filho. Mais tarde, este Inigo de Biscaia fará um pacto com a mãe para salvar o pai do cativeiro… Ema e a Dama pé-de-cabra são donas de rara beleza, mas só Diogo de Biscaia, casado com o demônio, tem noção exata do que está a renunciar, do significado a ser rechaçado para afirmar outro, o amor por uma mulher incomum. Nada tem a ver com a preguiça moral de Carlos, que continua a persignar-se sem que isso ameace a sua Perséfone. O demônio só pode ameaçar a fé que existe, no caso de Ema Paiva, temos demônio sem Deus.

Machado de Assis ficaria surpreso com a falta de força anímica em mais uma heroína portuguesa, disfarçado de cético diante da ameaça de deslumbramento, recolheria com regalo vingativo pérolas que denunciavam um novo títere: “era sobretudo marcada pela insuficiência do desejo. Faltava-lhe arrojo verdadeiro, vontade como um suspiro de recém-nascido que nos acompanha até ao ralo da morte e que mesmo aí se reconhece” (p. 98). Mas aqui é necessário desconfiar da certeza de um narrador tão aprumado, porque se o rosto dela “pode justificar a vida dum homem”, na opinião rara de Carlos, o amor também pôde produzir “a idéia de profunda e única realidade” (p. 113). Esta realidade é o encontro com o jovem Fortunato.

A relação com Fortunato começa no Vesúvio, outra possibilidade significativa para este espaço que é referência literal da perdição, do limite e do desastre. O rapaz era criado da casa de Fernando Osório e foi “durante muito tempo, (…) a volta à ingénua placidez da puberdade em que o fruto do amor é a compaixão” (p. 110), mas logo ele também aprendeu a guardar “a respeito das mulheres um sentimento esquivo” (p. 112) e passou a falar de Ema como doidivanas.

Volto ao equívoco do deslumbramento que é Ema Paiva para esclarecer que ele tem muito a ver a ausência daquela fé ou de Deus, e não falo de teologia, mas de estofo, como se tudo o que Ema representasse, sua beleza de Nefertiti, fosse um grande e absurdo desperdício. Esse desperdício faz sentido na representação do mundo que disfarça a insatisfação — “Não sei a quem pedir o que quero. Dantes pedia-se a um homem comida, roupa, amor, mas isso passou. Ganha-se a vida, tem-se um emprego, somos os donos da casa, vestimos calças como eles. Não temos mais a quem pedir, só a quem cobrar um salário” (p. 130). A humanidade vigiada e aparentemente impedida do gozo secreto de abismos e deslumbres tem a sua vazão revelada no romance pelo código da natureza. No Vesúvio, os cães e, em Vale Abraão, a gata vadia que se contorcia de cio à procura de Ema. Esses entes representam a rebeldia animal, surda aos ditames da comunicação que seqüestram partidos morais e conformismos (p. 237). Mesmo nos momentos de abandono de si mesma, havia na personagem de Agustina “um êxtase de que ela não dava conta, mas que atingia a natureza por inteiro” (p. 115). No desejo de separação das razões da natura os personagens elaboraram o equívoco.

Fernando Osório, que nem sabia quem tinha escrito Os Lusíadas, é o amante favorecido pela duração da clandestinidade, seu equívoco consentido na representação de mundo que o romance dá a conhecer é empregar mais energia na sedução de homens de negócio que no abismo da beleza de Ema Paiva. Carlos negou a si próprio a felicidade conjugal e poderia dar os braços a Bentinho para quem Capitu era mais mulher que ele era homem. Esses e outros equívocos evidenciam a relação entre erotismo e violência.

O desejo por Ema aparece em diversos momentos ligado ao desastre: na perdição dos motoristas diante da varanda, no sorriso de Carlos diante do ranger de tábuas que ameaça os passos de Ema, no vaticínio de Maria Semblano — “Qualquer dia esbarra-se” (p. 163) e na morte da personagem afinal. O sacrifício era a vida dela e, embora pedisse apenas a alma dos homens…, sua ameaça era mais corrosiva — “Na passagem da atitude normal ao desejo existe uma fascinação fundamental pela morte. O que está em jogo no erotismo é sempre uma dissolução das formas constituídas (…) dessas formas da vida social, regular, que fundam a ordem descontínua das individualidades definidas que somos. Mas, no erotismo, (…) a vida descontínua não está condenada a desaparecer: ela é somente colocada em questão. Ela deve ser perturbada” (Georges Bataille em O erotismo — grifos meus).

Outra razão para equívocos eram os papéis feminino e masculino, a beleza algo feminina de Fortunato e o apego ao real pouco feminino de Ema são dois indícios — “O que fazia o insucesso de Ema com os homens era que o seu poder ilusório ficava comprometido pelo seu apego à realidade. Isto não era feminino, era um mal-entendido com o feminino tal como os homens o supõem” (p. 191). Ema confundia papéis e nem a leitura insistente da Dama das Camélias conseguia colocá-la no “seu” lugar.

Um senão. O destino das propriedades vizinhas do Vale Abraão é narrado com uma nostalgia dos xenófobos mal disfarçados da própria gente. Cada festa dada pelo emigrante nos salões dos velhos solares parece uma violação do velho mundo fascista elegante (apenas para a futilidade, é claro, do qual o núcleo de Ema fazia parte), atenção para o tom: “Todos os salões serviam para as festas de emigrante”, parece gente do outro mundo, vai ver que de nenhum mundo… Esse juízo incômodo que perpassa o texto evidencia o pensamento de ruptura que os filhos da terra desejariam que o emigrante entendesse. Não entra na contabilidade do belo Vale Abraão o dinheiro lavado no suor de quem teve que comer fora do ninho caseiro o pão que o diabo amassou… A ressalva a propósito do personagem Nelson depois da narração do casamento de uma filha de Marina é triste para um romance tão bom e tão amorosamente construído a partir da imitação… — “Não se tratava de emigrantes, mas neste caso, de Nelson e do seu estado-maior” (p. 110). Por que a ressalva? Porque esse povo estava em França, talvez…

Marina Colassanti já disfarçou de mulher um deus preocupado com a falta de alegria do seu povo, ele foi desacreditado a princípio, pois “fosse deus, teria vindo como guerreiro, herói, ou homem poderoso” (conto Com sua voz de mulher). No romance de Agustina, a impossibilidade do deslumbre tem a ver com a condição de insucesso que marca a mulher “ao ser engendrada no ventre da mãe” (p. 66), independentemente de ficar ou partir, não há escapatória para Luísa… É uma condição maldita em si mesma, que condena todas as filhas de Eva (ou de Ema?) a serem damas pés-de-cabra.

Vale Abraão
Agustina Bessa-Luís
Planeta
270 págs.
Marcella Lopes Guimarães

Professora Associada II de História Medieval na UFPR, membro permanente do PPGHIS/UFPR, Bolsista de Produtividade em Pesquisa 2 do CNPq. Escritora e criadora do blog Literistorias.

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