O gramático é um ser estranho que às vezes veste certa capa de praticidade. E aí começa a complicar a vida de todo mundo. A rigor, sua existência se deve à dinâmica da língua, para normatizar as inventividades da população que, de sua parte, move a permanente evolução de uma língua. Por meio de complicadores culturais, embora sendo a mesma nos vários lugares onde se manifesta, uma língua se reinventa em cada novo canto. Um pernambucano entende perfeitamente um gaúcho, mas ambos têm particularidades no falar que oferecem uma nova leitura cultural do mesmo fenômeno lingüístico. E aí está a riqueza de um idioma.
O imbróglio, perceptivo tão claramente em um mesmo país, se multiplica em dimensões incalculáveis quando atravessa fronteiras, vara oceanos, invade outros continentes. Mas aí vêm os gramáticos e propõem unificações que, a rigor, e talvez atingidas pelo tempo, tornam-se um entrave para a evolução natural do idioma.
Na rota de colisão às pretensões gramaticais surgem os escritores, usuários permanentes e caros do que podemos chamar de jeito de corpo que cada idioma ganha na conquista de um novo espaço. Num esforço bem interessante para firmar a defesa da diversidade, os escritores Marcelo Moutinho e Jorge Reis-Sá reuniram um grupo de autores para escrever o Dicionário amoroso da língua portuguesa. Para se entender a dimensão do livro, basta ler o aviso impresso na sua capa: “Trinta e cinco palavras. Trinta e cinco autores. Quatro continentes. Um só idioma. A celebração da diversidade”. Já para se conhecer a real grandeza do desafio, a leitura será mais longa, mas em compensação muito mais agradável e divertida.
O desafio foi seguido à risca. Cada um dos 35 autores elegeu uma palavra e sobre ela produziu um conto, um poema, uma crônica, um breve ensaio. Embora falando e escrevendo o mesmo idioma, o português, os escritores mantiveram suas particularidades. Assim a diversidade se construiu de maneira precisa e, sobretudo, legível. Da Água de Marcelo Moutinho ao Você de Henrique Rodrigues, as palavras ganharam dimensões inovadoras ao se mostrarem íntimas de seus eleitores. A Buceta de Fernando Molica quebra a gramática para se deixar grafar com u, e desperta todas as suas possibilidades eróticas. A Sandália de Ondjaki vê uma outra possibilidade, a dos caminhos. A Saudade de Antônio Torres vai além do lugar-comum de sua impossibilidade de tradução para revelar sua íntima sentimentalidade. A Palavra de Marcelino Freire se mostra pela ausência, pela conseqüência de uma miséria bem maior quando alguém deixa de dizê-la.
Do lirismo à agressividade
O livro se agiganta exatamente neste universo de possibilidades. Vai do lirismo à agressividade com a rapidez e a urgência que só a literatura bem construída permite. Raimundo Carrero pontua bem essa agilidade com a sua Sombra. Tudo começa com uma singela brincadeira infantil, o desejo de se livrar da própria sombra, para se chegar aos entraves todos de uma vida. É a palavra única, Sombra, que ganha outras vertentes e outros tantos sentidos num texto que surpreende pela possibilidade do riso.
“No piso das igrejas seculares é o pé sacrílego dos vivos que apaga a glória e a prosápia dos mortos, polindo pedras até transformá-las em espelhos de coisa nenhuma, alisando indiferentemente o mármore até devolvê-lo à sua lisa mudez de rocha”, escreve Alexei Bueno para falar do Oblívio, a fatalidade da passagem permanente, infinda, um quase sinônimo de morte, uma palavra tão constante nesta antologia. Armando Freitas Filho é quem a encara de frente, a palavra Morte. Com se escrevesse um verbete de dicionário, o escritor vai enumerando as peculiaridades da morte, sua certeza, sua crueldade, sua previsibilidade. No entanto, foge do óbvio ao catar a poesia que existe também na tragicidade: “A Morte aguarda no silêncio no intervalo entre uma entre outra entre cada batida do coração.”
Embora a maioria escreva contos e contos, há dois interessantes ensaios que, sem fugir do pressuposto da poesia, da literatura, refletem sobre a condição humana. A partir da palavra Moderno, Antonio Cícero busca compreender e explicar o sentido da modernidade. Tudo começa na lógica do tempo. A modernidade se explica no hoje, no agora, no instante preciso em que se vive. Passado o fervor, tudo se mostra antigo, ultrapassado, longe do moderno, fazendo do homem um eterno contemporâneo do antigo. É uma lição que, curiosamente, se une à escolha de Desidério Murcho, Verdade. Há no texto uma frase que pode resumir todo ele: “Não atender à justiça é uma das formas de não atender à verdade”. Este paralelo entre justiça e verdade dita as convicções do texto, uma bela análise sobre a consolidação da verdade cartesiana na cultura latina.
E assim caminha este suave, mas vigoroso, protesto contra as unificações gramaticais. Com muita poesia, os escritores tecem seu grito, fogem do silêncio que, num belíssimo dizer de Ana Paula Tavares, se aprendia no berço: “Fiar o silêncio era coisa aprendida pelas mães e passada aos filhos com o primeiro leite e o medo”. E fugir do medo é a principal ação de uma rebeldia.
Estes 35 escritores se rebelam em defesa da permanente diversidade.