Para (re)descobrir Samuel Rawet

Acervo no Rio de Janeiro ajuda a compreender a trajetória de um autor importante, mas ainda pouco conhecido
Ilustração: Samuel Rawet por Oliver Quinto
01/06/2021

Em outubro de 2019, o Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa (AMLB/FCRB), no Rio de Janeiro, em parceria com a PUC-Rio, organizou o colóquio Poiésis de Arquivo — Faces de Samuel Rawet, para discutir a obra e o legado do escritor nascido na Polônia, que em julho completaria 92 anos. O evento marcou o lançamento da exposição com itens do acervo de Samuel Rawet, aberto desde então no AMLB para pesquisas e consultas.

Os documentos reunidos estavam sob a guarda de Clara Rawet, irmã do autor, e de seu companheiro, David Apelbaum. Com a morte do casal, a doação foi concretizada em março de 2018 pelo filho Ariel Apelbaum, sobrinho de Samuel, sob a intermediação da professora, doutora e pesquisadora Rosana Kohl Bines. Os itens estão no mesmo local que abriga coleções documentais de Clarice Lispector e Carlos Drummond de Andrade, figuras canônicas admiradas por Rawet. Um espaço importante sobre um dos grandes escritores brasileiros da segunda metade do século 20, mas que, ao contrário de Clarice e Drummond, ainda é pouco conhecido pelos leitores.

Na ocasião do colóquio, Ariel Apelbaum lembrou dos últimos momentos do tio: “faleceu sentado, lendo um livro em francês”. Segundo ele, o corpo de Rawet imprimiu tão forte rigidez que travou as mãos. Foi encontrado dias depois sem vida em posição de leitura. A cena relatada reforça a importância da leitura e escrita na vida de Rawet, que assim como a linguagem empregada em seus textos, operou em situações limite, na urgência de respirar, tomar fôlego, seguir e sobreviver. Isolado de amigos e familiares em um determinado momento de sua trajetória, o hábito de ler e escrever foi além de um processo criativo, que se caracterizava num ritual de sobrevivência em meio a solidão e errância.

O depoimento do sobrinho aproxima-se da imagem de Rawet descrita pelo jornalista, crítico, escritor e amigo Fausto Cunha. Num relato distinto, Cunha contou que momentos antes de morrer, o autor transcreveu poemas da escritora mexicana Sóror Juana Inés de la Cruz. As folhas de papel estariam próximas ao corpo morto de Rawet. Teria dado os últimos suspiros copiando versos de amor.

O acervo
O acesso e interesse à obra do autor podem finalmente ser ampliados e renovados a partir do acervo, inaugurado 35 anos após sua morte. Mesmo pequeno — são aproximadamente 320 dossiês, formados por cerca de 500 itens documentais —, o valor simbólico do arquivo na trajetória do autor, marcada por rupturas e pela falta de um lugar de inserção na historiografia da literatura brasileira, eleva a importância do conjunto documental reunido no AMLB da Fundação Casa de Rui Barbosa.

Estão lá rascunhos e peças teatrais inteiras, edições de ensaios, datiloscritos de notas, novelas e contos — incluindo o conto inédito O aprendizado da Rosa (s/d) —, cadernos de anotações, recortes de jornais, correspondência, desenhos, anotações a mão, documentos pessoais, algumas fotografias, objetos relacionados à profissão do autor, que era engenheiro, e transcrições de diferentes tipos.

Rawet transcrevia poemas inteiros, trechos de discursos de autores que admirava, partes de gramáticas, pequenas frases, com apoio de suportes de natureza e dimensão diversas: desde pequenos papéis, cadernos, até largas folhas usadas nos projetos de engenharia.

Mesmo sem contar com a biblioteca pessoal do autor — perdida ao longo de suas andanças e em razão de um incidente ocorrido no depósito de guarda dos itens quando já havia falecido (episódio relatado por sua irmã Clara Rawet em entrevista encontrada no acervo) —, é possível imaginar, pelas transcrições e notas do arquivo, cenas de Rawet ao ler poemas de Alberto da Costa e Silva, Fernando Pessoa, Vicente Huidobro e Paul Celan; contos de Edgar Allan Poe; análises linguísticas do francês; prefácios como O significado de Raízes do Brasil, de Antonio Candido, presente no livro Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda; textos filosóficos e ficcionais de Jean-Paul Sartre e Walter Benjamin; e tantas outras leituras imaginadas.

Dos fragmentos da imagem e obra
“Fiel a si mesmo”, como escreveu André Seffrin no prefácio da coletânea Contos e novelas reunidos (2004), Samuel Rawet atravessou intensos rompimentos que contribuíram para construção da imagem de excêntrico, incompreendido, de difícil trato nos relacionamentos. O autor se afastou da família em um determinado momento, rompeu com o judaísmo de forma virulenta ao publicar o ensaio Kafka e a mineralidade judaica ou a tonga da mironga do kabuletê (1977), e passou boa parte de sua experiência como escritor em meio a dificuldades de inserção ao circuito literário de sua época.

Entre as possibilidades de novos arquivamentos, o acervo abre formas de interpelar a figura, por vezes estigmatizada, do autor. A imagem do escritor solitário que desejava isolar-se do meio literário, por exemplo, contrasta com a correspondência endereçada a veículos para sugerir resenhas e adaptações de peças teatrais.

A adaptação de Bodas de sangue, de Federico García Lorca, com tradução de Cecília Meireles, enviada a uma emissora de TV, e as resenhas de Eu, Jesus e Memorial do Cristo, de Dinah Silveira de Queiroz, endereçada a um jornal de grande circulação nacional, e do livro A forma na arquitetura, de Oscar Niemeyer, revelam um pouco desse contraste.

O conjunto documental do acervo permite ainda traçar possíveis processos literários do autor sob novas articulações e perspectivas. É o que acontece com a produção ensaística do início da década de 70, época em que Rawet chegou a investir recursos próprios para publicação de seus livros, alguns deles impressos pelo selo Puta que o Pariu, editora que ele mesmo fundou quase como um manifesto às recusas e tratativas das editoras mais tradicionais da época.

Os textos desse período refletem temas caros ao autor, bastante contemporâneos nos dias de hoje, como sexualidade e gênero, identidade e alienação. Abordam ainda questões sensíveis relacionadas ao judaísmo, à família e à homossexualidade. No tratamento da escrita, Rawet rompe com a forma convencional do ensaio. Transita por autoficção, pela especulação filosófica e crônica, o que torna a experiência de leitura densa em certos momentos.

Se no livro de estreia Contos do imigrante (1956), coletânea mais conhecida do autor, a recepção da crítica dividiu-se diante das especificidades no emprego da língua nas narrativas rawetianas — parte as considerou hermética, parte inovadora —, a produção ensaística suscitou questões ainda mais amplas na análise da forma e do conteúdo a ponto de não receber olhares mais atentos. Passou quase que nula, tendo poucos leitores e publicações.

Fora do estigma da loucura ou além da simples provocação, o arquivo revela como Rawet buscou construir uma sólida e particular visão de mundo na tentativa de pavimentar possíveis caminhos para enfrentar traumas, dores e problematizações da sociedade à sua volta — temas abordados nos ensaios. A caderneta do escritor abrigada no AMLB reforça isso.

Nela Rawet fez anotações de 30 de julho de 1971 a 1° de maio de 1973 (algumas notas não levam data). Os fragmentos indicam a imersão do autor no campo da especulação de ideias, ou como ele mesmo denominou na sua “filosofia experimental”. Estão lá anotações em torno do conceito de consciência, tema que atravessa toda a sua obra. Os grifos saltam como uma espécie de urgência da palavra. “Grifo porque não consigo expressão mais adequada para o que pretendo me dizer”, escreveu no texto Eu-tu-ele (1972).

Seguindo as linhas do ensaio Alienação e realidade (1970), a consciência para Rawet é entendida como “a capacidade, vazia, criada pelo corpo e que lhe permite o conhecimento da relação do corpo com o mundo”. Manifesta-se, portanto, através das relações do corpo com o espaço material ao seu redor e o mundo das sensações, ao mesmo tempo em que é atravessada pelo corpo do outro, num fluxo onde a temporalidade é determinante. É ainda a condição criadora do sujeito. Uma saída possível diante da dor. Como o autor reflete já na primeira nota da caderneta:

A persistência de imagens traumáticas me provoca dor intensa, e me leva a colocar o problema de remover a disposição somática ligada à imagem. Anoto, para acompanhar melhor o processo de modificação. O primeiro obstáculo é a ideia de impossibilidade. Se aceito a ideia, me condeno, me limito numa cadeia causal, me diminuo como homem. Se recuso a ideia, constato que as imagens traumáticas, passado, são criadas por mim agora. Partindo da condição criadora da consciência, percebo uma saída possível. (grifo original)

Nas singularidades do arquivo é possível perceber como Rawet seguiu pela via de arquivar a si mesmo sem a finalidade de consolidar uma carreira de escritor, mesmo que amador, como ele mesmo se declarava, ou de fazer parte de determinados círculos literários. Assis Brasil, crítico que mais acompanhou sua trajetória, escreveu: “Sua vida [de Rawet] não foi de um carreirista, um deslumbrado pela medalha ou elogio”.

As transcrições, notas e fragmentos de texto do acervo reforçam esse caminho de certo repúdio ao mérito. Demonstram o empenho de Rawet na investigação da linguagem a serviço da urgência da palavra como forma de manifestar a consciência no mundo. Empenhar corpo e leitura numa atividade extrativa indica gestos de escrita essenciais à dinâmica de vida do autor, solitária em muitos momentos, partida em conflitos e indissociável do desejo de se chegar à palavra exata. De ler, reler e escrever como que para sobreviver.

Jacques Derrida atribui ao mal de arquivo a pulsão de destruir e apagar a si mesmo como condição necessária para novos arquivamentos. Em dinâmica semelhante, os movimentos de escrita de Rawet parecem encenar a destruição de qualquer rastro que impeça a palavra de vocalizar conflitos e afetos a partir da concepção da linguagem como consciência. Por isso o empenho em desenvolver uma escrita errante, que toca o que há de concreto nas experiências, sem medo de se expor a polêmicas ou contradições. Lança-se a sorte na tentativa de obter um caminho na selva escura do inferno de Dante, sabendo aqui o preço que se dispõe a pagar.

“Uma consciência viva nunca pode ser totalmente destemida, só uma especulação autêntica sobre a consciência permite obter uma caminho na selva escura”, diz o fragmento da caderneta. (grifo original)

Na ficção, esta aposta surge nas narrativas guiadas por um fiapo de enredo, apoiadas em personagens de corpos expostos e abertos à existência, que caminham ora pelas ruas, ora pelos labirintos internos de seus próprios conflitos, onde o instante é determinante. São acometidos pelo momento. Um cotidiano em confronto com o que os cerca em meio à sensação de incômodo e inadequação. Como resposta, por vezes, silenciam-se, vagam solitários entre pensamentos.

Dos deslocamentos aos novos leitores
Samuel Rawet chegou ao Brasil em 1936, com sete anos de idade, ao lado da mãe e dos irmãos. O pai já os esperava em solo brasileiro. Deixou a pequena cidade de Klimontow, na Polônia, para morar na região da Leopoldina, no Rio de Janeiro. Enfrentou processos de adaptação tanto com relação à cultura local quanto à comunidade judaica ao seu redor.

Comum nas trajetórias de imigrantes judeus, a incorporação de uma língua estrangeira ocorreu para o autor ao mesmo tempo em que o iídiche, sua língua materna, ressoava nas tradições religiosas e familiares. Aprendeu português “nas ruas”, como gostava de ressaltar.

A trajetória de escritor iniciou de forma mais intensa em 1949, quando integrou o grupo literário Café da Manhã, liderado por Dinah Silveira de Queiroz. Foi colaborador da Revista Branca e do jornal A Manhã ao longo da década de 1950. É neste período que produziu a peça teatral Os amantes, que chegou a ser encenada por Nicette Bruno no Theatro Municipal do Rio de Janeiro.

O lançamento de Contos do imigrante, em 1956, celebrou um marco na renovação do conto brasileiro. Alfredo Bosi reconheceu a importância do autor em A história concisa da literatura brasileira e O conto brasileiro contemporâneo, relevantes publicações deixadas pelo crítico, morto neste ano.

A experiência do deslocamento, o sentimento do exílio e da errância estão presentes em toda a sua obra, encenados a partir da própria itinerância. “Foi nas minhas andanças que reformulei todas as questões, refiz todas as perguntas, sonhei todos os sonhos”, declarou.

Viveu em diferentes endereços no Rio de Janeiro e em Brasília, onde integrou como engenheiro de cálculo, profissão que exerceu simultaneamente às atividades literárias, o projeto de construção da nova capital ao lado de Joaquim Cardozo, Oscar Niemeyer e Lucio Costa. A engenharia lhe concedeu ainda vivências em Israel. A convite de Niemeyer, planejou edificações em Haifa e Tel Aviv. O olhar sensível para o espaço urbano colocou em muitos textos a cidade como personagem, interagindo com os conflitos humanos narrados.

Publicou 12 livros em vida. Ganhou o Prêmio Guimarães Rosa em 1969 com a novela Os sete sonhos. Escreveu contos, novelas, peças teatrais e ensaios. Morreu em Brasília em 1984, solitário em seu apartamento na cidade satélite de Sobradinho. Ficou esquecido durante décadas.

No início dos anos 2000, uma leva de publicações e compilações resgataram o nome do autor. Apesar disso, ainda é um escritor pouco lido e publicado. O acervo traz finalmente a possibilidade de renovação da recepção, pesquisa e de formação de leitores. Mostra caminhos para novas reflexões sobre o projeto literário do autor, ainda com lacunas a serem preenchidas na historiografia da literatura brasileira.

Bianca Bruel

É jornalista e pesquisadora, mestre em Literatura (PUC-Rio). Dedica-se ao estudo da obra do escritor Samuel Rawet com ênfase em seu arquivo literário. Defendeu a dissertação Arquivo, corpo e leitura: movimentos da escrita de Samuel Rawet (2020).

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