Ainda em comemoração de bravos cinco anos de resistência literária, este jornal nos convidou para publicar um romance inédito, completo, em capítulos mensais nas páginas que, agora, todos procuram (até mesmo alguns dos mais enfurecidos signatários do abaixo-assinado contra o Rascunho, quando do “affair” Sebastião Uchoa Leite).
Aceitei o honroso convite e, a partir de julho, mês a mês, os leitores terão na mão (em primeiríssima), os capítulos de um romance que vai ser concluído à vista de todos, na tradição dos romances-folhetins do século passado, publicados em jornal, por escritores como Balzac, Machado e Dickens, entre outros.
Rogério Pereira diz que quer, com isso, reafirmar a fé na literatura, no ano em que o seu jornal — e também de Adriano Koehler, José Castello, Nelson de Oliveira, Eduardo Ferreira, Wilson Hideki Sagae, Rinaldo de Fernandes, Luiz Paulo Faccioli, Paulo Ambrósio, Andrea Ribeiro, Álvaro Alves de Faria, Paulo Polzonoff Jr., Fabio Silvestre Cardoso, Suênio Campos de Lucena, Ricardo Humberto, Marco Jacobsen, Ramon Muniz, Cris Guancino, e tantos outros que tosos os meses ajudam a construí-lo — alcança a muito longeva idade (para publicações literárias) de meia década, neste começo de século em que vigora o Mercado como o deus dos editores, das bienais e de “escritores” como Jô Soares, Pedro Bial e Jean Wyllis (é assim que se escreve?)…
Rascunho, agora, agita muitos (e imensos, como diriam os portugas) corações ansiosos. Passada a fase de lhe virar o nariz, de entronchar a boca já torta e fazer de conta que o jornal “não existia”, a situação muda para a corte e a louvação talvez interesseiras. Isso, de alguns nomes sabidos de cor e salteado. Em compensação, desde a primeira hora o jornal recebeu a adesão imediata dos espíritos livres e desinteressados, dos devotos e amantes da literatura, incapazes de sequer pensarem em levá-la para um motel qualquer de estrada.
Cinco anos são uma história, nesta época fast food e das coisas ligeiras & descartáveis.
Durante seus mil e oitocentos dias, até agora, o “velho” Rasca errou? Errou, sim — e feio —, aqui e ali. Por exemplo: na “polzonofada” contra o discreto, sério, digno e moderno poeta Sebastião Uchoa Leite tivemos um dos erros mais lamentáveis deste jornal que admitiu tal erro, acolheu o tal “abaixo-assinado” contra si (de fronte erguida e peito aberto) e seguiu em frente, tentando evitar um novo juízo apressado a respeito de obras, isoladamente. Bem, o “caso Uchoa” passou, vieram acertos (colocar em discussão a obra de João Gilberto Noll foi um deles) e — por que não? — vieram novos tropeços, nada muito grave e tudo superado pela total independência do Rascunho um dia imaginado por um grupo de jovens paranaenses exatamente como ele é hoje: livre, atento e forte.
Por isso, se o vosso projeto de escritor for ganhar todos os prêmios das academias que restam, vosso lugar não é, jamais, no Rascunho. (Será, talvez, à mesa do chá dos velhinhos caquéticos.)
Se o vosso projeto de escritor for “babar” as páginas culturais da Folha de S. Paulo, do Mais (cada vez menos) que se injeta, via USP, na vida cultural brasileira, então não adianta bater, também, na porta do Rascunho (da frente ou dos fundos).
Se o vosso projeto de escritor é ser — acima de tudo — escritor da mídia, escriba mediático e convidado da ilha de Caras (construindo vossa imagem antes de construir a vossa obra), nada mais errado do que procurar o endereço, o telefone e qualquer outro contato cá com o Rasca.
Enfim, se o vosso projeto de escritor é igual ao de tantos que, entrevistados no “JÔ”, puxam o enorme saco do humorista-apresentador, etc., então levai esse sonho para bem longe daqui, porque este é o antiespaço dos fins-de-noite de entrevistas com Gerald Thomas, “Gentileza”, João Ubaldo, um porteiro do prédio de Roberto Jefferson, Lêdo Ivo, o motociclista verdadeiro do filme sobre Che, de Walter Salles, o próprio Walter Salles, um professor de tupi-guarani, Robinho, Paulo Coelho, Ariano Suassuna e Wilza Carla. (Todos foram, já, render graças ao “Gordo”, no sofá onde até Fernanda Montenegro se disse “nervosa” por estar em pleno xangô de Globo Street.)
Cada um tem o sonho (e o nervosismo?) que merece. Se o seu bate com tudo isso — e mais alguma coisa — então vá cantar noutra freguesia, porque, aqui, os que fazem o Rascunho têm a plena consciência de estar vivendo a última meia hora da cultura ocidental como até agora a conhecemos, nesta hora agônica em que tudo se inscreve no vaticínio terrível dos versos de Yeats (em A Vision, 1926):
As coisas se desfazem; o Centro não se consegue manter,
A mais sombria maré de sangue está solta
E, por toda parte, submersa está a cerimônia da inocência;
Falta convicção aos melhores, enquanto os piores estão cheios
De apaixonada intensidade.
O grifo é meu. Não posso deixar de grifar versos que são a radiografia íntima de muitos (a maioria) daqueles que nos cercam: “Falta convicção aos melhores, enquanto os piores estão cheios/ De apaixonada intensidade” — repito, para que as palavras penetrem na noite escura da alma dos “apaixonados” deste tempo de trevas.
Escrevi sobre ele(s), em O inglês do Cemitério dos Ingleses. Pensando bem, vem sendo o meu assunto permanente — a “última meia hora” que estamos a viver — nesta coluna e nos livros Aspades, ETs etc. (Campo das Letras, Portugal, 1997 e Editora Record, Rio de Janeiro, 2000), A cabeça no fundo do entulho (Record, Rio, 1999), A múmia do rosto dourado do Rio de Janeiro (Editora Globo, 2001), O grau Graumann (Globo, 2002) e Armada América (Editora Francis, 2003).
O poema longo Gerión e a Suméria — que saiu pela Companhia Editora de Pernambuco, em 1997 — também trata da civilização doente de confusão e contradição profundas, fazendo desanimar as melhores cabeças (enquanto as piores)…
Rascunho, porém, não desanima. Pelo contrário, ele é o melhor que nós temos, cá na triste Pindorama, em matéria de jornais literários, feitos com paixão sincera. Além do que, tem a atração dos suicidas pelas bocas de abismo, aprecia os riscos e não teme me convidar a publicar um romance, uma obra inteira, nas contadas páginas desta publicação feita com sangue-suor-e-lágrimas de papel que (nunca esqueçamos!) os mendigos usam, meses depois, para limpar a bunda (ninguém que escreve em jornal pode esquecer a ameaça da bunda dos mendigos).
Então, mendigos (e reis do baralho), aqui ireis encontrar, proximamente, os capítulos de um romance completo, em páginas e mais páginas, ao longo dos meses, para a vossa precária higiene. O romance (o meu) também é precário, e trata da atualidade (Londres, Recife, Bagdá), da vida e da morte, da distância de certas coisas e do passado dos viajantes pelo Brasil do século 19: é um dos seus temas, além do nada e do tudo, da boçalidade inglesa e da boçalidade brasileira, do eterno-feminino imortal e dos jardins aquáticos de jacintos que perecem (já jardins do Egito e jardins do bairro das Graças no romance esquisito que viaja para dentro). O Egito é de cartolina e está nas nossas cabeças; entre todas as fronteiras íntimas que o livro apresenta, junto do próximo e do longínquo, das regiões extremas e da água debaixo da cama (quando você sonha boiar sobre uma porta no rio de alguma enchente). Trata de Lawrence da Arábia, de Gilberto Freyre e da falsidade da versão oficial do acidente que vitimou T. E., fala de planetas que se afastam de nós e de outros que se acercam. Vocês conhecerão a moça chamada Ludmila (uma Lua que atordoa, de tão vulgarmente bela), e verão fantasmas, aparições vindo do ponto de encontro do pequeno cemitério que de fato existe, no Recife, o “Cemitério dos Ingleses”, espaço orgulhoso reservado para os vermes comerem carne branca britânica separada de morenas carnes brasileiras (lá se encontra sepultado um único nativo: o general Abreu e Lima, lugar-tenente de Simon Bolivar, ali enterrado porque o bispo recifense da época negou sepultura, em cemitério católico, para o general livre-pensador que resolveu ajudar o Libertador das Américas)…
Dedico o livro a Tomás Seixas, o poeta dos “grandes cemitérios ao luar”, e também aos mortos do meu particular cemitério plebeu de poetas (Tomás, Geraldino Brasil, Franco Maria Jasiello), cineastas — Ricardo Gomes Leite, Paulo Gil Soares e Alberto Cavalcanti — e bêbados.
Em tempo: O inglês do Cemitério dos Ingleses inaugura, tenho certeza, a edição de livros (futuros, nas livrarias) da Editora Letras & Livros, evolução natural do seu caminhar sobre o fio da navalha.