I. Obviedades (necessárias) sobre Machado
Bruxo do Cosme Velho; um mestre na periferia do capitalismo; observador agudo da sociedade, dos valores e da realidade brasileira; homem do seu tempo e do seu país; cético; pessimista; epiléptico; mulato; de família humilde; primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras — OK.
Machado de Assis é considerado um dos mais — e por muitos o mais — importante escritor brasileiro — OK. Ele discorreu, como poucos, sobre assuntos diversos num estilo completamente original — OK. Machado de Assis é atual, pois mais de cem anos atrás ele abordou temas que naquela época eram problemas da sociedade brasileira e até hoje perduram — OK.
Vamos às Histórias…
II. …da meia-noite
Em A parasita azul, conto longo, o primeiro das Histórias da meia-noite, de Machado de Assis, o protagonista Camilo, após oito anos de estudo e de farras na França, volta ao Brasil. Mas volta aborrecido, e não feliz, por deixar a Europa: “Quando veio a hora de desembarcar, fê-lo com a mesma alegria com que o réu transpõe os umbrais do cárcere”. Nem o espetáculo da corte do Brasil, o Rio de Janeiro, o animou, porque deixava para trás uma vida fácil, vivida sem o suor dos seus esforços, e deixava sobretudo todos os prazeres e civilidade do mundo lá de cima.
Do Rio, seguem, ele e o Sr. Soares (antigo conhecido de sua cidade natal que encontrara na Corte), para Santa Luzia, Goiás, ainda menos parisiense do que o Rio de Janeiro, como concluiu o desolado Camilo. Durante a viagem, o que entretém Camilo é o Soares, com as relembranças de sua vida. Nessas histórias surge a figura de Isabel. A partir daí, o leitor sagaz imaginará o que se seguirá, mas mesmo assim desejará continuar a leitura, porque Machado consegue nesse conto criar expectativa em meio ao óbvio.
Em sua cidade natal, Santa Luzia, com as festas que lhe fizeram, Camilo esquece por algum tempo Paris, a França, a Europa. Mas com o passar dos dias, depois de toda a cidade não falar de outra coisa a não ser da chegada dele, sobrevêm os muxoxos de Camilo. É aí — no ponto em que nem o muxoxo do leitor nem o do protagonista combinam muito com uma boa história literária — que se dá o encontro mais do que evidente entre Isabel e Camilo.
E mais: descrição de uma festa tradicional e religiosa; certos mistérios; paixão; revelações; alguns bons momentos de ironia; algumas peripécias — tudo isso o leitor encontrará adiante, se seguir com a leitura, e creio que seguirá, porque a narração de Machado é límpida, clara, e enfatiza o enredo, como um bom contador de histórias que ele é.
Em As bodas de Luís Duarte, como o próprio título sugere, a temática principal é o casamento. História romântica, sim, e despretensiosa, que gira em torno da descrição/narração de um casamento em que (quase) tudo é flor, com direito a final de telenovelas: “Mas o verdadeiro brinde dessa festa memorável foi um pecurrucho que viu a luz em janeiro do ano seguinte, o qual perpetuará a dinastia dos Lemos, se não morrer na crise da dentição”.
Sim, enredo e final de telenovelas, mas com uma ressavalzinha irônica, o que se entrevê em todo livro Histórias da meia-noite, além de um certo humor, característico de Machado, como se vê no seguinte exemplo, ao descrever um personagem:
A cabeça de Justiniano Vilela, — se se pode chamar cabeça a uma jaca metida numa gravata de cinco voltas, — era um exemplo da prodigalidade da natureza quando quer fazer cabeças grandes. Afirmavam, porém, algumas pessoas que o talento não correspondia ao tamanho; posto que tivesse corrido algum tempo o boato contrário.
Ernesto de Tal é outro conto longo, com personagens interessantes, entre eles Rosina e o dito Ernesto de Tal. Entre o namoro chocho dos dois (na visão dela), surge(m) outro(s) pretendente(s), a quem Rosina se mostra benquerente. Segundo a filosofia dela, quem não tem cão caça com gato, mas seu objetivo era ter o cão — e o cão não era, de modo algum, Ernesto de Tal. De acordo com o narrador, Rosina era galante e graciosa, viva e travessa, e possuía olhos espertinhos e caçadores, que não enganavam ninguém, exceto os namorados. Coitado do Ernesto.
Rosina achava Ernesto um palerma.
Havia apenas três meses que Ernesto namorava a sobrinha de Vieira (Rosina), que se carteava com ela, que protestavam um ao outro eterna fidelidade, e nesse curto espaço de tempo tinha já descoberto cinco ou seis mouros na costa. Nessas ocasiões fervia-lhe a cólera, e era capaz de deitar tudo abaixo. Mas a boa menina, com a sua varinha mágica, trazia o rapaz a bom caminho, escrevendo-lhe duas linhas ou dizendo-lhe quatro palavras de fogo. Ernesto confessava que tinha visto mal, e que ela era excessivamente misericordiosa para com ele.
Um palerma esse Ernesto. Para piorar a situação, Rosina conhece um “rapaz de nariz comprido”, que lhe merecia mais idéias conjugais do que Ernesto. Rosina que era esperta — queria casar, e casar bem. Mas pior que casar mal, era não casar. Assim, correspondia às investidas de todos a fim de escolher o melhor. Definitivamente Ernesto era o gato de Rosina, no mau sentido, no sentido do provérbio supracitado. Porém, não era doida de dispensar o tal do Ernesto. Rosina era só de Ernesto quando estava sozinha com Ernesto. E era só do rapaz do nariz comprido quando estava sozinha com o rapaz, etc.
Ernesto se desesperava à medida que acreditava que havia um rival: o rapaz de nariz comprido. Decidiu então, para acabar de vez com a dúvida, procurá-lo e se (des)entender com ele. Após um pequeno e necessário desentendimento, eles se entenderam, e descobriram tudo — Rosina os enganara vilmente. Decidiram, nesse caso, vingá-la: lhe mandariam os dois, e ao mesmo tempo, uma carta de rompimento, mas uma carta de igual teor. Resultado: Ernesto e o seu rival se tornaram amigos e Rosina fora abandonada.
Mas ainda lhe restava um recurso — após um mês Rosina envia uma carta para Ernesto. Como ele era fraco, passivo e facilmente (re)apaixonável, tudo se ajeitou. Três meses depois se casaram. Não pense o leitor que a amizade de Ernesto e do rapaz de nariz comprido acabou. É, este, inclusive padrinho de um filho de Ernesto. Ernesto é o tal.
Outro conto interessantíssimo — talvez o mais interessante do livro — é Aurora sem dia. É onde se percebe melhor o humor e a ironia sutil e perspicaz de Machado. É aqui que ele cria um personagem metido a poeta, explicitamente sem vocação, poeta puramente de inspiração, ingênuo, sonhador, pedante (de um pedantismo inocente), e que não tinha costume de ler — o Luís Tinoco. Depois de várias peripécias, maldizeres e indiretas — as e os quais não lhe afetaram em hora alguma — ele muda de vocação: a política. Eis um trecho:
A erudição política de Luís Tinoco era nenhuma; o protetor emprestou-lhe alguns livros, que o ex-poeta aceitou com infinito prazer. Os leitores compreendem facilmente que o autor dos Goivos e Camélias não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia atrás das grandes frases, — sobretudo das frases sonoras, — demorava-se nelas, repetia-as, ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, observação, análise parecia-lhe árido, e ele corria depressa por elas.
Porém, após um desgosto grande no primeiro dia de vida política e porque reconhecera quão pífios eram os seus versos — e sobretudo porque tomara consciência que não era “fadado para grandes destinos” —, Luís Tinoco desiste dos versos e da vida pública e se torna lavrador, casa e tem dois filhos. E torna-se, na visão de seu amigo Dr. Lemos, “uma criatura muito outra e muito melhor”.
Relógio de ouro é o conto mais curto de Histórias da meia-noite. Entremeada de equívocos e mistério, nele aparece Luís Negreiros, que chega em casa e se depara com um relógio que não era dele, nem podia ser da sua mulher. A partir daí começam as desconfianças do marido em relação a Clarinha, sua esposa. Esquecera ele que no dia seguinte era um dia importante em sua vida e que aquele objeto poderia ser presente de algum seu conhecido, ou conhecida. Embora todos os incidentes do enredo transcorram entre o casal, esse conto é o único que não gira em torno nem termina em casamento.
Ponto de vista é o conto mais inverossímil da obra e, provavelmente, onde mais se discorre sobre o casamento. O recurso narrativo usado por Machado é a troca de cartas entre duas amigas de infância, nas quais refletem sobre as próprias vidas, a lua-de-mel, os homens, o casamento. Inverossímil? Sim, a protagonista Raquel muda bastante, tanto seus gostos quanto suas convicções, no decorrer da narrativa. É essa mudança, porém, a essência do enredo: um rapaz que Raquel renegava é que se torna, no final, seu esposo. Mas essa mudança drástica, sem maiores explicações, não convence. É mero artifício narrativo.
Apesar da temática recorrente e da inverossimilhança, é possível enxergar nesse conto vários momentos saborosos, sobretudo pela sua fluidez (ora resultado da linguagem límpida de Machado, ora resultado do recurso utilizado, a troca de cartas). Nesse como em todos os contos de Histórias da meia-noite, o final feliz, o que não é exatamente um defeito, como muitos preconizam por aí. Há várias possibilidades de finais: dramáticos, insossos, trágicos (os mais habituais e os que se convencionou considerar os melhores), felizes, etc. Optar pelo final feliz pode ser uma necessidade (o caso das telenovelas), apenas uma opção pessoal (imaturidade literária?), ou exigência da própria história contada. No caso de Histórias da meia-noite de Machado de Assis, o que será?
III. Conclusão
Sugere-se, neste artigo, ler ou propor (aos alunos, por exemplo) a leitura das Histórias da meia-noite[1] não como um pretexto a outro objetivo: comparar os livros machadianos (românticos e realistas; da 1ª fase e da 2ª fase); conhecer a literatura brasileira; conhecer aspectos da vida brasileira do século 19 através da literatura, etc. Mas lê-las despretensiosamente e sem preconceitos. Talvez assim a leitura seja mais interessante e, a partir dela, aqueles (outros) objetivos automaticamente sejam alcançados[2].
Aí, sim, após essa leitura despretensiosa e sem preconceitos, podemos aprofundar na originalidade de Machado, como por exemplo em Memórias póstumas de Brás Cubas, cuja intenção do narrador de chamar a atenção sobre si mesmo, utilizando pilhérias, anedotas, normalmente com o intuito de criticar a pretensa superioridade da classe burguesa brasileira, da qual o próprio Brás Cubas faz parte… Enfim.
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Notas
[1] Aqui, uma questão de cunho filosófico, que algum leitor mais perspicaz poderá solucionar: por que o título Histórias da meia-noite?!
[2] Além do mais, essa leitura a princípio sem pretensões comunga com o que o próprio Machado escreveu em sua advertência do livro: “Vão aqui reunidas algumas narrativas, escritas ao correr da pena, sem outra pretensão que não seja a de ocupar alguma sobra do precioso tempo do leitor”.