Há muito a comemorar por ocasião dos cem anos de nascimento de Italo Calvino (15 de outubro de 1923) e não faltam iniciativas nesse sentido em Cuba (seu lugar de origem), na Itália, onde viveu e produziu a maior parte de suas narrativas e ensaios e no mundo todo, pela importância de sua vasta e prolífera obra.
A propósito de seu vínculo ítalo-cubano, encontra-se em fase de produção o documentário Cartas de Calvino, realizado por Esther Barroso. Em entrevista à Prensa Latina, a cineasta relatou que quis abordar o nascimento do autor em Santiago de Las Vegas, a experiência de seus pais na ilha caribenha, seguindo as marcas da família Calvino em Roma, Sanremo (na Ligúria) e, sobretudo, em Havana.
Também as novas edições de grande parte de sua obra (pela Oscar Mondadori) — muito lida nas escolas — receberam, na Itália, as capas sofisticadas do premiado artista gráfico irlandês Jack Smyth. Pela Einaudi, ainda, o recém-publicado Italo, de Ernesto Ferrero, investiga “quem era verdadeiramente Italo Calvino?”.
De toda forma, ainda que se multipliquem as homenagens, conferências, reedições e festas literárias em torno do famoso escritor, é impossível exaurir as diversas e infinitas frentes a que ele se dedicou, ao longo de toda a vida, ao universo literário, tornando-se exemplo singular em que ficção e ensaísmo se complementam como duas faces da mesma moeda.
A hipervalorização do leitor
E isso talvez se explique, num primeiro momento, por sua aspiração evidente a querer manter sempre vivo o diálogo com o público e a hipervalorizar o leitor.
De fato, para Calvino, entre as infinitas razões pelas quais a literatura não pode ser autossuficiente, está a da fundamental necessidade de cooperação do leitor. Para o crítico italiano Mario Barenghi: “Nenhum escritor contemporâneo refletiu, como ele, tão extensa e produtivamente sobre o papel do leitor”. O leitor em quem pensa é ativo, responsável e idealmente superior ao próprio escritor. A esse respeito, vejamos a seguinte reflexão, inserida no ensaio Por que se escreve?:
A literatura deve presumir um público mais culto, mais culto do que o próprio escritor; seja esse público real ou não, não importa. O escritor fala com um leitor que sabe mais do que ele. A literatura só pode jogar alto, só pode elevar as suas apostas. […]
Cabe ao leitor garantir que a literatura expresse o seu poder crítico e isso pode acontecer independentemente da intenção do autor.
Embora, hoje, a exaltação do papel do leitor seja argumento mais que evidente nos estudos de Teoria da Leitura, é necessário recordar que Calvino tratava das nuances e complexidades do tema bem antes que se consolidasse o debate crítico sobre a recepção das obras literárias. A reunião de seus vários artigos de temática variada sobre leitura e literatura vão de 1955 a 1980, ano da publicação de Una pietra sopra (traduzido entre nós como Assunto encerrado, Companhia das Letras, 2009).
Essa ênfase ao papel do leitor, reiterada nos ensaios, encontra várias formas de representação correlatas no universo ficcional. Basta que lembremos, por exemplo, do bandido João do Mato, no romance O barão nas árvores (1956-57), que será “regenerado” pelo protagonista Cosme, que o contagia com as leituras que faz em sua biblioteca suspensa, no alto das árvores, lugar em que passa a viver depois que decide fugir do reino da Penúmbria. João, perseguido pelos comandos da ordem do reino, fica tão envolvido com os livros lidos, que deixa de se interessar pelas enrascadas em que vivia metido. E mesmo quando afinal virá a ser capturado, pede ao menino-barão Cosme que termine de lhe contar, em voz alta, pela janela da torre em que o encarceraram, o romance Clarisse que havia começado. Mais do que a temida e inevitável morte que o aguardava, a maior angústia se revela como a de morrer sem poder concluir aquela leitura:
A prisão era uma pequena torre à beira-mar. Um bosque de pinheiros crescia ao lado. Do alto de uma das velhas árvores, Cosme chegava quase à altura da cela de João do Mato e via o seu rosto atrás das grades.
Ao bandido não interessava nada dos interrogatórios e do processo; de um jeito ou de outro, terminaria na forca; mas sua preocupação eram aqueles dias vazios ali na cadeia, sem poder ler, e aquele romance deixado pelo meio. Cosme conseguiu outra cópia de “Clarisse” e levou-a até o pinheiro.
— Aonde você tinha chegado?
— Ao ponto em que Clarisse foge da casa de má fama! Cosme folheou um pouco e logo:
— Ah, sim, aqui está. Portanto… — E começou a ler em voz alta, virado para a janela de grades, à qual se agarravam as mãos de João do Mato.
O processo foi demorado; o bandido resistia ao cerco da corda; para fazê-lo confessar cada um de seus inúmeros crimes eram necessários dias e dias. Todos os dias, antes e depois dos interrogatórios ficava escutando Cosme, que continuava a leitura.
Os livros como pássaros
Esse excerto bem ilustra, no âmbito ficcional, algumas das reflexões do ensaísta, representadas especialmente na famosa trilogia, que se tornou o verdadeiro marco nas potencialidades criativas do autor[1]: O visconde partido ao meio (1951), O barão nas árvores (1956- 57) e O cavaleiro inexistente (1959).
Muito além de termos aqui uma explícita ode ao ato de ler e aos benefícios da leitura do literário, Calvino também toca de perto o conceito do intelectual orgânico gramsciano, uma vez que o barão sobe às árvores, mas nunca se desvincula totalmente da realidade circundante. Tanto é que, para conservar os livros de suas bibliotecas pênseis, constantemente as muda de lugar, pois “ele considerava os livros um pouco como pássaros e não queria vê-los parados ou engaiolados, senão entristeciam”.
Outro ótimo exemplo, que também traz à tona a mesma temática, é o interessante conto Um general na biblioteca, que dá título à antologia de contos e apólogos, escritos entre 1943-1958. Algo desse enredo remete ao célebre Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, imortalizado no cinema por François Truffaut. De fato, há nas duas obras, ainda que de modo alegórico (e guardando as respectivas diferenças), a ambientação comum às épocas em que, sistematicamente, regimes ditatoriais e tirânicos se mobilizavam, de modo violento, contra a arte, a literatura e a cultura em geral. Como é sabido, os agentes desses sistemas se pautavam pelo policiamento ostensivo, censura, perseguição e queima de livros e execução de artistas, intelectuais e pensadores que, em tese, pudessem representar algum tipo de ameaça ao poder.
Da mesma forma, no conto em questão, a lavagem cerebral, levada a efeito nas mentes dos oficiais superiores da “nação ilustre” da Panduria, alega que os livros contêm opiniões contrárias ao prestígio militar. Diante disso, o Estado-Maior decide nomear uma comissão de inquérito, a ser comandada pelo general Fedina, militar severo e escrupuloso. O objetivo de tal missão seria o de examinar todos os livros da maior biblioteca do lugar.
No início, a maioria das obras examinadas era vetada e posta à parte. Mas, aos poucos, o que se verifica, diversamente do que se poderia esperar (isto é, a queima indiscriminada daquele acervo), é a verdadeira metamorfose por que passam os militares envolvidos no processo, em contato rotineiro e cotidiano com a leitura. Os generais da censura, ao contrário do que deles se exigia, capitulam diante da força arrebatadora daquela sedução:
[…] estavam tomando gosto por aquelas leituras e aqueles estudos como nunca antes teriam imaginado; por outro, não viam a hora de voltar para junto das pessoas, de retomar contato com a vida, que agora lhes parecia muito mais complexa, quase renovada aos olhos deles; e, além disso, a aproximação do dia em que deveriam deixar a biblioteca enchia-os de apreensão, pois teriam de prestar contas de sua missão, e, com todas as ideias que andavam brotando em suas cabeças, não sabiam mais como sair dessa enrascada.
Tais questões de Teoria da Leitura, que já faziam parte de algumas das inventivas ensaísticas do autor — lembremos que estamos falando de artigos e obras escritos entre a década de 1950 e 1980 —, atingem o ápice com o inovador romance Se um viajante numa noite de inverno (1979), considerado pela crítica como obra metaficcional, que desafia as convenções literárias tradicionais, mergulhando profundamente nas experiências de leitura e na relação entre o leitor e o autor, refletindo sobre a própria natureza da literatura.
A natureza da literatura
Mas afinal qual seria a natureza da literatura para o grande autor? O crítico italiano Mario Barenghi observa que todas as vezes em que se empenha em definir o literário, Calvino se fixa nos seus limites. Melhor dizendo, a definição de literatura, em sua concepção, é essencialmente pautada pela ideia de fronteira, porque ele tem, a respeito da mesma, uma ideia não totalizante.
A literatura, para o autor lígure, não envolve a totalidade da realidade e da experiência. Embora autônoma (na medida em que tem suas próprias regras), não é autossuficiente, nem completa em si mesma. Coloca-se como algo intrinsecamente parcial, que só adquire sentido quando consciente de sua parcialidade: que tem significado e valor porque continua a se confrontar com o que não é. As coisas que a literatura pode ensinar são poucas, mas insubstituíveis. A literatura nunca deve perder de vista seus próprios limites.
Nesse sentido, é absolutamente exemplar o título da conferência que Calvino ministrou, na New York University, em 30 de março de 1983 e que depois se tornaria título de outra de suas grandes obras ensaísticas: Mundo escrito e Mundo não escrito. No centro de seu discurso, temos o da ênfase à relação entre linguagem e realidade e o da tarefa destinada à literatura de contribuir sempre a uma incessante renovação de tal diálogo.
A literatura lida diretamente com a dificuldade de encontrar a fronteira do mundo não-escrito, em uma época em que a percepção da realidade parece estar colonizada (deformada, obscurecida, ocultada) pelas palavras. Ela persegue a necessidade de escapar do já dito e do já sabido, de escrever sobre o que ainda não se sabe, para tornar possível, ao mundo não-escrito, se expressar por meio da escrita. Portanto, o campo de atuação da literatura é o mundo a ser escrito.
A propósito, vejamos o que o alter ego de Calvino em Se um viajante numa noite de inverno, o escritor Silas Flannery, anotava em seu diário:
[…] Eu não acredito que a totalidade esteja contida na linguagem; o meu problema é o que fica de fora, o não-escrito, o não-escrevível.
Além dessa questão, a mesma conferência contém outro tema fundamental para compreender o que é literatura para o autor:
[…] na minha experiência, a motivação para escrever está sempre ligada à falta de algo que se gostaria de conhecer e possuir, algo que nos escapa. E como eu conheço bem esse tipo de estímulo, consigo reconhecê-la também nos grandes escritores. O que eles transmitem é o sentido da abordagem à experiência, mais do que o sentido da experiência alcançada: o segredo deles é saber conservar intacta a força do desejo.
A falta como estímulo
O que conta, portanto, é conservar a capacidade de desejar: o sentido da falta surge como estímulo, a limitação é entendida como impulso produtivo.
Não é, pois, casual que, entre os tantos títulos dos capítulos que aparecem ao longo da obra-prima As cidades invisíveis (1972), nos deparemos, exatamente, com: As cidades e o desejo.
Como se sabe, o livro nos apresenta o mercador veneziano Marco Polo, sendo encarregado pelo grande imperador mongol Kublai Khan a empreender viagens por seu império, para depois lhe descrever as cidades que este contém. Isso se faz necessário porque Khan não pode se mover da capital e de seu palácio, que são o centro do império. Mas as cidades que Marco Polo descreve são as cidades possíveis, aquelas que, por meio do procedimento da combinação dos elementos que constituem, por definição, a cidade, podem ser formadas. Polo não descreve nenhuma cidade existente, mas tenta exaurir, em suas narrativas, o catálogo das cidades que poderiam existir.
Ele é o detentor da palavra e é a partir dela que cria elementos, num intricado jogo combinatório de palácios, ruas, cúpulas, habitantes, paisagens, apresentando, ao imperador, o lugar sem limites e fronteiras do possível. Ora, este nada mais é do que o domínio da literatura, que não tem como próprio objeto a história e a vida como são, mas como poderiam ser. A literatura nos apresenta o conjunto de dados, fatos, espaços e lugares que poderiam ser e que a palavra faz existirem, a partir do momento em que os fixa no narrar, multiplicando assim, especularmente, o real ao infinito.
E aqui também, é possível verificar, nos diálogos entre Marco Polo e o imperador Kublai Khan, que o importante é permanecer na fabulação, fazer com que as histórias contadas pelo veneziano, inspiradas por sua imaginação e pelas formas do narrar, girem ao redor do que, em essência, constitui toda a potencialidade do fazer literário. É o que se depreende também do famoso diálogo que encerra o livro:
O Grande Khan já estava folheando em seu atlas os mapas das ameaçadoras cidades que surgem nos pesadelos e nas maldições: Enoch, Babilônia, Yahoo, Butua, Brave New World.
Disse:
— É tudo inútil, se o último porto só pode ser a cidade infernal, que está lá no fundo e que nos suga num vórtice cada vez mais estreito.
E Polo:
— O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço.
Nada melhor do que, em tempos como estes, tentar seguir o conselho de Marco Polo e fugir da alienação que oprime, embrutece e embota os sentidos, reconhecendo o que realmente nos liberta e humaniza e fazer com que perdure.
À pergunta, que deu origem ao título de outra de suas grandes obras ensaísticas: Por que ler os clássicos? (1981) , o autor responde:
De um clássico, cada primeira leitura é, na verdade, uma releitura.
De um clássico, cada releitura é uma leitura de descoberta como a primeira.
Consideram-se clássicos aqueles livros que constituem uma riqueza para quem os leu e amou; mas constituem uma riqueza não menor para quem se concede o privilégio de lê-los pela primeira vez, nas melhores condições para desfrutá-los.
Tais afirmações, por si só, já seriam suficientes para responder à indagação: Por que ler Italo Calvino?
Certamente ler e reler esse ficcionista, ensaísta, grande pensador do século 20, pode ser uma desafiadora e prazerosa aventura, por infinitas razões, mais do que necessária.