Para as meninas

Como explicar a suas filhas o porquê de você não acreditar em deus
Ilustração: Rafael Cerveglieri
01/08/2011

Introdução
Hoje é domingo, 7 de maio de 2006. Faz frio. Lá embaixo, vocês duas estão brincando com a Bel, que dormiu aqui. A mãe de vocês, Lu, está no supermercado comprando verduras e frutas para o almoço. Vai fazer um macarrão de uma receita de revista. Nesta noite dormi pouco. Peguei no sono lá pelas duas da manhã, logo interrompido por você, Manu, que veio ao nosso quarto. Estava com medo. Mamãe foi para a sua cama e você ficou lá, comigo. De manhã, devia ser umas seis horas, acordou com frio. Ajeitei o lençol e os cobertores, você logo adormeceu. Fui ao banheiro, deitei-me outra vez. Você, Lelê, foi quem me interrompeu às 7:15, chamando-me para assistir Mulan, DVD que comprei ontem para substituir a fita de vídeo já em péssimo estado. Era o filme que você mais gostava de ver. Pensei que eu o compraria daqui a muitos anos, perto do teu casamento, ou de algum fato importante na tua idade adulta, e seria o meu maior presente. Uma promoção antecipou meus planos.

Depois de ver o filme, já conformado em estar desperto, assisti um pouco de TV. Era corrida de Fórmula 1, umas notícias do dia anterior, uns minutos de um seriado americano. E nem precisei enfrentar a ira de vocês pelo controle remoto. Justo hoje que eu também não estava dando bola.

Semana passada, no dentista, notei duas pequenas manchas na minha língua. Eram dois pontos avermelhados, nada demais, como se a língua estivesse apenas descorando. O dentista não ligou, acho que não viu direito. Pesquisei na internet e as línguas que me mostraram os sites estão em estado bem pior. Câncer causado por cigarro, bebida, falta de higiene. Não incorro em nenhum desses fatores de risco. Diz lá que stress também pode causar isso. Sim, ando estressado. Eu e todos nessa cidade maluca que é São Paulo, nesse século 21 que começa. A Lu ficou meio preocupada, depois se esqueceu. Acha que pode ser queimadura, hipótese que não me havia ocorrido, e que aceitei, recordando-me até de ter bebido um chá de hortelã bem quente, fim de semana passado, na casa da avó de vocês. As manchas se juntaram, tomaram conta da metade da língua. No canto, formou uma linha amarela, bem clara. Não dói, não incomoda, deve ser mesmo uma queimadura leve em fase de cicatrização.

Pela manhã, durante o banho, em meio àquele vapor que inundava o banheiro, esses pensamentos fantasiosos de quem está sempre inventando histórias e batendo um papo consigo mesmo — e foi por isso que meu ofício se tornou escrever, algo que, por vezes, aborrece a sua mãe, com razão — me veio a hipótese de esse troço ser sério. Encerraria minha existência, não aconteceriam as tantas lutas que ainda tenho pela frente. E ainda que não tenha lavrado o campo, a casa limpa, a mesa posta, cada coisa em seu lugar — Manuel Bandeira num poema que sempre me vem à cabeça, Antologia, em que ele recorta trechos de diversos poemas seus, Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir —, minha preocupação seria só com vocês duas. Sua mãe é mulher forte e preparada, daria conta de enfrentar a vida e de criá-las muito bem. Imaginei que, além dos grandes momentos que tivemos e desse amor sem fim que tenho por vocês, deveria deixar-lhes um legado.

Meus poucos escritos, nossa casa, que é o grande bem material que a gente conquista, uma situação financeira que, se não permite excessos, nem tênis de rodinha, garante a vocês meios para estudarem e se aprimorarem, os valores que mamãe e eu tentamos passar para vocês, todos os momentos bons que partilhamos. Eu queria mais. Esse mais é este texto, que não chega a ser assim um legaaado, e que agora começo sem saber onde me levará. Ele é a síntese, ou melhor, a realização formal das minhas horas de silêncio, nos últimos meses, nos últimos anos. Um silêncio que talvez já tenha vindo comigo. Pequeno, contam que eu ficava no quadrado, só, horas, brincando muito bem com os objetos que ganhavam vida e movimento através das minhas mãos e das palavras que eu ainda não falava. O menino do quadrado, minha mãe ficou sabendo que era assim que a vizinhança me chamava, já que eu ficava num jardim de inverno, de frente para a rua. Nessas últimas semanas, tirando os dois argumentos de filme que tive de desenvolver, e que não devem dar em nada, também o livro novo em que tenho entrado com menos força que a necessária, projetos que dividem meus vazios, o silêncio tem estado mais quieto. Paradoxalmente, as conversas comigo mesmo estão altas, presentes, sempre, principalmente enquanto tomo banho e faço anotações no box, que logo o vapor d’água faz desaparecer. Às vezes, quando vocês me pegam falando sozinho, perguntam do que se trata, querem participar. Bem, eis o convite sempre negado a essa conversa. Tem um texto do Marçal Aquino, Pai. Chamam Ataliba, contam que seu pai havia morrido. No velório, ele nota uma senhora que nunca tinha visto. Ao fim da missa de sétimo dia, a aborda, ela conta que era amiga de seu pai. Ataliba a convida para jantar em sua casa. Acaba assim, Clara teve a impressão de que o marido estava sorrindo. E Ataliba estava mesmo. Ia começar a conhecer o pai. Talvez isso que escrevo não seja nada mais que um jeito de vocês me conhecerem.

O caminho que percorri foi longo, não sei precisar quando começou, talvez no primário, ou no ginásio, quando, mesmo escrevendo muito pouco, já havia tomado a decisão de ser escritor. George Orwell, na excelente reunião de ensaios publicada recentemente, Dentro da baleia, acha que o que leva alguém a desejar ser escritor, dentre outros motivos menores, é querer mostrar que se é bom, querer ir à desforra com aqueles que te subestimaram, querer surpreender as pessoas. Faz sentido…, apesar de achar que esse impulso é o mesmo que faz um sujeito que nasceu pobre ou remediado ficar milionário, ou uma menina que se achava desengonçada virar modelo de beleza e sucesso. Decidir ser escritor é decisão equivocada. Ser escritor não é aquilo que se deve almejar, escrever um grande livro, sim. Mais que um grande livro, deve-se entender o homem, a alma humana, desvendá-la através da palavra, da ficção. Dessas pérolas, estou atrás.

Dentro da ostra da qual sai esse escrito não há a pérola, talvez uma falsa, manufaturada a partir de um elemento estranho, uma bactéria, uma sujeira. É um atalho, não uma obra de ficção, o que tira sua força, bem sei. Mas é honesto, acreditem. Tenho certeza de que as reflexões que, porventura, aqui estiverem presentes, não são originais. Já foram feitas por muitos. Não fui estudá-los para começar este texto, embora vários deles tenham passado por mim, e mesmo os que eu não li, ou ouvi, talvez estejam presentes de alguma maneira aqui nessa peça despretensiosa. A gente é o resultado do coletivo. Não fui estudá-los, não por preguiça ou por achar que estudar é chato, é que faz tempo que algo a ser escrito não me incomoda da forma que fui atropelado pela necessidade de por logo no papel eletrônico o que me agita o ser. Estudar, aliás, é apenas a conversa da gente com gente que pensou antes sobre determinados assuntos. Estudar é se apropriar das experiências de um monte de seres humanos que viveram antes de nós. Para nos apropriar e ir além. Outro motivo, talvez mais importante, determinou a forma que irá tomar o Para as meninas. É que espero que os argumentos e idéias aqui descritos sejam legitimados por si só, por seus mecanismos internos, por sua coerência e lógica, e não pela palavra de outro autor. A gente tende a aceitar como dogmas palavras consagradas, o que, às vezes, além de nos abrir muitas portas, pode fechar algumas importantes. Nas discussões com o meu pai, na infância e, principalmente, adolescência, ele utilizava argumentos para conter meus enfrentamentos. Não chamava ninguém ao seu socorro, nem mesmo os números, nem mesmo a realidade, tampouco a autoridade, seja paterna, seja de professor universitário. Hoje, lendo algumas coisas que ele escreveu, como a introdução do seu Direito econômico internacional, agradeço o fato dele não ter jogado em mim todo peso de quem ele já era, de tudo que já sabia, e ter ficado nos argumentos que deviam ser auto-suficientes. Por que digo isso? Porque sou o pai de vocês e sei do peso disso. Vocês viram, um parágrafo inteiro para justificar minha ignorância e minha covardia. Covardia porque tenho medo de não poder enfrentá-los de igual para igual, afinal, filósofos e gente sábia são coisa séria e sabem lutar muito melhor do que eu. Se bem que gente sábia não luta. Pelo menos, não bem.

Sempre que me lembrar a gênese de alguma coisa que meus dedos transportaram para a tela do computador, direi, ainda que minhas impressões sobre o fato original sejam imprecisas, o que deve ocorrer com freqüência, eu lamento. Feito o filtro que sou eu, através do qual passam tanta informação, tantas cenas, acontecimentos, sonhos, histórias, relacionamentos, textos, tanta vida, filtro que recebe todos esses líquidos misturados como um só, um amálgama denso, aparentemente uniforme, filtro que funciona retendo e eliminando as impurezas, e liberando gota a gota, letra a letra, em português, o que formará esse escrito. Quando identificar a cor, o cheiro, a viscosidade do líquido de origem, farei a anotação, para que vocês, que são muito melhores que eu, possam, se quiserem, fazer caminhos e chegar a entendimentos muito mais consistentes.

Vamos lá, espera-nos uma jornada. Ao fim dela, através da razão, quem sabe eu esclareça ao menos a questão que tanto incomoda vocês. Por que não acredito em deus — sim, vou escrever a palavra em letra minúscula, assim como escrevo a palavra homem, considerando ambos uma categoria, não uma individualidade. E não sei se essa resposta é para vocês ou para mim mesmo. Vocês ainda são pequenas. É estranho imaginar que quando vierem a ler este texto estarão mais perto de mim em idade. Como se o texto me congelasse, congelasse esse meu mundo interior que irá dialogar com vocês. Nesses anos todos dedicados à literatura não descobri muita coisa, não descobri mais que dúvidas atrás de dúvidas. A dúvida é meu motor. Foi a dúvida que me fez escrever. Tivesse certezas, acho que eu iria ganhar dinheiro. Tivesse muita certeza, iria ganhar muito dinheiro, ou virava doutor numa coisa bem difícil, ou quem sabe jornalista. Mas uma coisa aprendi. A máquina do tempo existe, e atende pelo nome de livro.

NOTA
Este trecho é a introdução do ensaio inédito Para as meninas, de 2006, em que o autor conta para as filhas pequenas as razões de seu ateísmo.

 

Carlos Eduardo de Magalhaes

Nasceu em São Paulo (SP), em 1967. É autor de nove livros, dentre os quais Mera fotografia (1998), Os jacarés (2001), O primeiro inimigo (2005), Dora (2005) e Trova (2013). É editor da Grua Livros.

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