Para as meninas

Como se fosse uma conversa com minhas filhas, então pequenas, sobre as razões do meu ateísmo
Ilustração: Mello
30/04/2019

São palavras livres, estas daqui. Não creio estar fazendo um ato temerário, não há paixão nas letras que a tela do computador recebe, não são feitas para chocar, causar polêmica, tampouco é um manifesto a favor ou contra um pensamento. Mesmo porque os pensamentos estão muito fora de moda, hoje em dia, apesar da tendência dos seriados americanos mostrarem crimes solucionados pela engenhosidade e não mais pela macheza do personagem principal, ou desses passatempos que estão lotando as bancas de jornal. São desafios, sim, inventados, truques para nos divertir e enganar. Aliás, uma das coisas mais difíceis de se fazer hoje, em crítica, e raríssimos críticos se aperceberam disso, é separar a arte do truque. Não, truque não é arte, é truque. Arte é mágica. Truque é algo para fora, a arte para dentro.

Este é tão somente um escrito, entre as centenas de milhares que todos os anos o mercado põe em sua banca. Sem contar os milhões e milhões que jazem num canto qualquer, nos quatro cantos do mundo — penso em quantos Kafkas perdidos deixamos de conhecer. E que agora jazem nos blogs que a cada entardecer nascem na internet. Li outro dia que já são 56 milhões deles. Isso também diz muito do mundo de hoje. Todos têm ânsia de dizer coisas, poucos têm paciência ou vontade de escutar. Um texto destes poderia escandalizar há algumas décadas e hoje o que faz é perder-se feito O livro de areia, Borges outra vez. Isso tudo vale para minha pátria, que é a liberdade de pensamento, que é Darwin. Porque há outra, bem mais poderosa. Não me refiro à Guerra de civilizações, mesmo porque a história nos mostra que a mais fraca sempre sucumbe. E sucumbirá não ante ao poder militar, mas ao poder de sedução do conforto e do poder individual.

É uma guerra que nos ameaça, essa. Que já começou, faz séculos, que muda de forma, de jeito, de personagens. Uma guerra que se espraia lenta e não damos a importância merecida. A guerra que opõe Galileu e o Papa, Darwin e os religiosos, a liberdade e a opressão, os eleitores de Bush, que representam os Estados Unidos profundo, e os eleitores de Kerry, que são os americanos dos grandes centros, que, se não defendem o casamento gay, não se sentem ofendidos por ele, que tratam o aborto como uma questão individual e de saúde pública, e não como um valor religioso. São os grandes centros urbanos, impessoais, que já incorporaram uma nova moral, contra as cidades provincianas, as igrejas cristãs que dia a dia arregimentam mais fiéis com discursos radicais, os muçulmanos e judeus fundamentalistas que reagem ao mundo novo que chega. Entendo esse humano que continua a achar seu sentido na religião, só não sei por que vem junto a intolerância, a necessidade de catequizar os outros, a violência. Não, não temo a Guerra de civilizações. Temo sim a Guerra entre os diferentes estágios de civilização, dentro de uma mesma civilização. Temo a guerra de moral. A moral velha contra a nova moral, o novo código de sobrevivência da espécie. Talvez razão versus tradição. Temo os fundamentalistas e os que não permitem discussões. Temo aquele que mata os que dele discordam. Temo, sobretudo, o que pode ser uma caça ao humano de espírito livre. E precisamos temer mesmo.

Deuses a vigiar
Moramos em São Paulo e a liberdade que experimentamos aqui, em Nova York, Londres, Paris, São Francisco, Los Angeles, Roma, é exceção. A regra é o homem vigiado, provinciano, carregado de preconceitos, moralista. Moralismo é a superfície da moral, independente se há hipocrisia ou não. Um homem íntegro que renega a filha solteira por ter engravidado é igual a um sujeito hipócrita que faz a mesma coisa. Essa liberdade, um fenômeno do século 20, tem também seus dias contados, tantas as câmeras que nos vigiam. Diz que em Londres mais de 200 câmeras te flagram num passeio de meia hora pela cidade. Outro dia, um rapaz no interior dos Estados Unidos, olhando uma dessas imagens ao vivo geradas por câmeras em algumas cidades, no caso uma no interior da Inglaterra, achou os movimentos de um sujeito um tanto suspeitos. Telefonou para a polícia de tal cidade e foi efetuada a prisão. Outro caso é de um sujeito que estava na Alemanha e recebeu um aviso pelo celular que haviam entrado em sua casa de praia. Pelo computador, ele viu o ladrão tomando suas coisas filmado por uma câmera escondida em sua sala, ligou para um amigo em São Paulo, que telefonou para a polícia do Guarujá que fez o flagrante. Parece que a gente precisa se vigiar mesmo — e esse é um dos papéis fundamentais da imprensa —, parece que é de nossa natureza. E agora que não há mais deuses oniscientes que cumprem este papel, pois se tornaram tecnologia obsoleta de controle, inventamos novas formas de nos supervisionar. É possível que tenhamos inventado deuses apenas para nos vigiarem.

1984 foi um dos livros mais fortes que eu já li. O mundo que Orwell percebia estava inclinado ao totalitarismo, algo que se confirmaria. A cena do fio de cabelo, colocado acho que na porta, para ver se alguém entrava no apartamento, dá a medida de quão vigiada estava a pessoa. Uma das reflexões que vem do livro é que a liberdade experimentada por Orwell, e pelo homem contemporâneo, por nós, por vocês, é algo de poucas gerações. Naqueles tempos antigos tudo estava ao alcance de ser vigiado, o mundo era pequeno — como está voltando a ficar, pelo transporte e meios de comunicação. E antes ainda, naqueles tempos nômades, imaginem como todos sabiam de tudo. A gente precisa mesmo se vigiar… Aliás, somos nômades até hoje. Estamos sempre a partir. De uma amizade, de um amor, de uma família. Ir embora. De objetos, de fotografias, de lembranças, de lugares. De um emprego, de uma função. Do eu de ontem, o eu criança, adolescente, jovem, o eu pleno. Partir e não olhar para trás. Como numa peça de teatro, exercer novos papéis, e novos papéis, e novos. E, sobretudo, ser outros significados. Non tornare più. Non ci pensare mai a noi. No ti voltare. Non scrivere. Non ti fare fottere dalla nostalgia. Dimenticacci tutti. Se non resisti e torni indietro, non venirmi a trovare. Non ti faccio entrare a casa mia. Capisti? Diz Alfredo, na estação, aos ouvidos de Totó, que parte. O que Alfredo diz é para Totó ir embora, não olhar para trás, nunca nais voltar. Grazie… per tutto quello che ai fatto per me. O filme é Nuovo cinema Paradiso. Também a última cena do Pelle, o Conquistador, quando o garoto recusa a promoção e vai, pela praia, ganhar o horizonte. Revi os dois, recentemente, em DVD. O filme de Giuseppe Tornatore, apesar da música melodramática, que me cansou, ainda me causa impacto. O de Bille August, não. Envelhecemos, ele e eu.

Perdoem a digressão.

Carlos Eduardo de Magalhaes

Nasceu em São Paulo (SP), em 1967. É autor de nove livros, dentre os quais Mera fotografia (1998), Os jacarés (2001), O primeiro inimigo (2005), Dora (2005) e Trova (2013). É editor da Grua Livros.

Rascunho